Calma, calma: prometo que esta série não passa dessa semana! Teria dezenas de outros instrumentos para apresentar (o sarod, o bouzouki e o erhu, por exemplo!), mas já há clamores e protestos por uma série sobre a família dos sopros, ou pela volta de pianos e das orquestras tonitruantes.
Antes disso, o alaúde – talvez meu instrumento favorito entre os de cordas dedilhadas. Tenho várias gravações com Julian Bream, que não só é meu violonista preferido como também um dos melhores alaudistas que existem. No entanto, poucos álbuns de alaúde agradam-me tanto quanto este duplo de Konrad Junghänel, que já apareceu aqui no PQP tocando obras de Sylvius Leopold Weiss, o contemporâneo de Johann Sebastian que tanto o inspirou na sua própria lavra para o instrumento. E, se há inúmeras outras transcrições de obras bachianas para o alaúde – a integral das quais está na admirável série que Hopkinson Smith gravou, e que publicarei oportunamente -, o que vocês ouvem aqui é aquilo que o próprio gênio escreveu ou transcreveu, pouco a pouco, entre uma cantata e outra, enquanto fazia crescer sua prole.
JOHANN SEBASTIAN BACH – COMPLETE LUTE WORKS KONRAD JUNGHÄNEL
Johann Sebastian BACH (1685-1750)
Disco 1
Suíte em Sol menor, BWV 995 01 – Prélude
02 – Allemande
03 – Courante
04 – Sarabande
05 – Gavotte I & II en rondeau
06 – Gigue
Suíte em Dó menor, BWV 999
07 – Prélude
08 – Fuga
09 – Sarabande
10 – Gigue – Double
Celebramos hoje os trinta anos da derrubada do infame Muro de Berlim, naquele incrível novembro de 1989 que viu a Alemanha encaminhar sua reunificação após uma até então inimaginável cadeia de eventos. Logo no mês seguinte, Leonard Bernstein dirigiria as forças combinadas de orquestras e coros das duas Alemanhas e das antigas potências da ocupação em performances muito emotivas da Sinfonia “Coral” de Beethoven, notáveis pela substituição da palavra Freude (“alegria”) por Freiheit (“liberdade”) no texto da “Ode à Alegria” de Schiller, que serve de base para o movimento final. A iniciativa de Bernstein, sugerida por uma história apócrifa que atribuía a substituição ao próprio Schiller, numa versão alternativa da “Ode”, foi uma licença poética que, segundo o regente, certamente teria a aprovação de Beethoven. Nesses moldes, a Sinfonia Coral foi apresentada dos dois lados da cidade outrora dividida, com extraordinária repercussão, e esta gravação, feita ao vivo no dia do Natal de 1989, registra a última dessas performances. Realizada na Schauspielhaus da antiga Berlim Oriental (hoje conhecida como Konzerthaus Berlin) e transmitida ao vivo para dezenas de países, ela tem toda a riqueza e eventuais idiossincrasias que permeiam os últimos anos da carreira de Bernstein e faz parte do canto do cisne deste multitalentoso artista, que deporia a batuta em outubro do ano seguinte para falecer meros cinco dias depois.
ODE TO FREEDOM – BERNSTEIN IN BERLIN
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sinfonia no. 9 em Ré menor, Op. 125, “Coral”
1 – Allegro ma non troppo, un poco maestoso
2 – Molto vivace
3 – Adagio molto e cantabile
4 – Presto – Allegro assai
June Anderson, soprano Sarah Walker, mezzo-soprano Klaus König, tenor Jan-Hendrik Rootering, baixo Coro da Rádio Bávara
Membros do Coro da Rádio de Berlim
Coro Infantil da Orquestra Filarmônica de Dresden Orquestra Sinfônica da Rádio Bávara
com integrantes da Orquestra Estatal (Staatskapelle) de Dresden, Orquestra do Teatro Kirov (Leningrado), Filarmônica de Nova York, Orquestra Sinfônica de Londres e Orquestra de Paris Leonard Bernstein, regência
Nossa cornucópia dessas maravilhosas Suítes traz agora sua primeira gravação brasileira em violoncelo barroco, feita por Dimos Goudaroulis.
O incansável artista grego, que já deu o ar de sua graça por aqui com um bonito álbum duplo de violoncello piccolo, devota recitais inteiros a essas obras seminais.
Tive o privilégio de assistir a dois deles. O primeiro, num teatro pequenino, com iluminação muito econômica e ambiente intimista, em meio a só um punhado de pessoas, deu-me a nítida sensação de estar com os ouvidos encostados na caixa de ressonância, tamanha a proximidade com o instrumentista. No segundo, as Suítes – por definição, sequências de danças estilizadas – serviram de base para seis coreógrafos suarem suas malhas em torno de um impávido Goudaroulis.
Esta gravação reproduz com bastante fidelidade o que escutei nos recitais: prelúdios tocados com liberdade quase improvisatória, danças pulsantes, e uma proximidade que nos traz aos ouvidos a respiração do músico e, eventualmente, aquilo que o PQP Bach chama de “ruídos de marcenaria”. Goudaroulis executa a Suíte no. 6 num instrumento de cinco cordas, conforme instruções da partitura – o mesmo violoncello piccolo que, num lance de serendipidade, encontrou esquecido no ateliê de um luthier. No primeiro disco há uma faixa-bônus, com a transcrição da allemande da Partita BWV 1004, originalmente para violino solo.
O violoncelista grego Dimos Goudaroulis foi professor da Unicamp e entusiástico divulgador de seu instrumento no país que o acolheu. Responsável pela primeira gravação brasileira das Suítes de J. S. Bach em violoncelo barroco, apresentou com sucesso essas grandes obras como programa único em vários e, até então, impensáveis recitais.
Neste “O Tenor Perdido”, Goudaroulis explora o repertório do violoncellopiccolo, que seria (daí o título) o tenor em oblívio da família das cordas. No rico encarte que acompanha a gravação, o violoncelista descreve seu encontro com o raro instrumento, num caso feliz de serendipidade: um violoncelo “de criança”, que encontrou empoeirado num atelier de luteria, cujo som muito “pequeno” era insatisfatório com o encordoamento tradicional, até que lhe ocorreu a ideia de retirar-lhe a corda Dó grave e colocar-lhe uma corda Mi aguda, “como um violino grande” e – voilà! – o pequeno violoncelo, agora com o som “três vezes maior”, assim começar a “cantar no agudo”.
Acompanhado do ótimo cravista Nicolau de Figueiredo, Goudaroulis interpreta o que se considera ser repertório original para violoncellopiccolo, muito embora, como explica no encarte [já lhes falei que o encarte é ótimo? Comprem o CD e confiram!], nem sempre as partituras o indicassem como tal. O bonito timbre do “tenor perdido” brilha nas obras dos pouco conhecidos Valentini, Caporalli e Babell, nesta caprichada gravação de 2010.
[meus agradecimentos aos leitores-ouvintes Rameau e Nicholas, que gentilmente corrigiram a minha afirmação de que Goudaroulis fizera a primeira gravação brasileira das Suítes de Bach, e que imperdoavalmente não levou em conta precedentes ilustres como os de Aldo Parisot e de Antonio Meneses, e ao leitor-ouvinte Lucas, que me informou que Goudaroulis não é mais professor da Unicamp]
O TENOR PERDIDO DIMOS GOUDAROULIS – NICOLAU DE FIGUEIREDO
CD1
Giuseppe VALENTINI (ca. 1680 – 1752)
Allettamenti para violoncello piccolo e baixo contínuo, Op. 8
Dimos Goudaroulis, violoncello piccolo de quatro cordas (Alemanha, final do século XVII) Nicolau de Figueiredo, cravo (William Takahashi, cópia de um instrumento francês do século XVIII de Pascal Taskin)
Encerramos a série d’A Família das Cordas e voltamos à nossa programação normal?
Nah-nah: temos que postar alguma coisa do violoncello piccolo, que não será estranho àqueles que escutaram o bonito O Tenor Perdido, álbum duplo de Dimos Goudaroulis e Nicolau de Figueiredo.
Quem entre vós outros se dá o trabalho, entre os cliques frenéticos nos links de download, de prestar um pouquinho de atenção nos textos que escrevemos,vai lembrar que já contamos algo da história desse instrumento na postagem d’O Tenor Perdido. Como supomos, no entanto, que vocês sejam poucos, tamanho o disparate entre o número de downloads e o de comentários que recebemos, vou repetir. Aliás, eu não: deixo o próprio Goudaroulis repetir (até porque o Estadão não me deixa colar aqui seu interessante texto).
O ótimo Anner Bylsma lança mão deste tenor de bonito timbre e irrisório repertório para tocar transcrições de obras de Johann Sebastian Bach para flauta e violino solo. Bylsma usaria o mesmo instrumento para fazer, junto com o cravista Bob van Asperen, uma maravilhosa gravação das Sonatas BWV 1027 a 1029, originalmente para a viola da gamba, que algum dia será polinizada por este muito acessado, mas pouco comentado blogue.
ANNER BYLSMA – VIOLONCELLO PICCOLO – JOHANN SEBASTIAN BACH
Johann Sebastian BACH (1685-1750)
Partita no. 3 em Mi maior para violino solo, BWV 1006
Folheando o álbum de família das cordas, chegamos à nobre viola.
Antes que os violinistas venham com piadas e mais piadas, mando chumbo grosso para calar preemptivamente qualquer bullying: uma gravação das sonatas e partitas para violino solo de Johann Sebastian Bach, transcritas e executadas pelo violista Scott Slapin.
Se em sua versão original essas obras fizeram até o grande Sarasate tocar como um estudante em pânico no seu exame, na viola – maior e com cordas mais robustas – elas parecem inexequíveis.
Pareciam: o trabalho de Slapin é notável, e de tal maneira que alguns movimentos, especialmente os adágios e fugas das sonatas, chegam a soar mais idiomáticos na viola. Não há lentificação significativa dos andamentos, que são amplamente respeitados. As sonatas e partitas chegam mesmo a caber separadas em discos, ao contrário da praxe que, por questões de tempo, as coloca intercaladas. Sobraram energia e espaço, vejam só, até para tocar uma transcrição da partita para flauta solo – que disposição, ahn?
JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750)
THE SONATAS AND PARTITAS FOR SOLO VIOLIN and THE UNACCOMPANIED PARTITA FOR FLUTE Transcribed and played on viola by Scott Slapin
DISCO 1 – THE SONATAS
SONATA NO. 1, BWV 1001
01 – Adagio
02 – Fugue
03 – Siciliano
04 – Presto
SONATA NO. 2, BWV 1003
05 – Grave
06 – Fugue
07 – Andante
08 – Allegro
SONATA NO. 3, BWV 1005
09 – Adagio
10 – Fugue
11 – Largo
12 – Allegro assai
Um de nossos mais assíduos leitores-ouvintes pediu, dia desses, que repostássemos a gravação de Paul Lewis para as Variações Diabelli e a série das Sonatas para piano de Beethoven com Friedrich Gulda, por terem desaparecido no éter após o colapso dos servidores de compartilhamento.
Como não tenho a gravação de Lewis, e a caixa do Gulda tem um monte de CDs, vou usar o pedido do leitor-ouvinte como pretexto para postar a versão de Gulda para as Diabelli: elétrica e doida como o intérprete, e repleta do toque mágico desse bruxo do teclado, é das melhores que conheço para a obra genial.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Trinta e três Variações para piano sobre uma Valsa de Anton Diabelli, em Dó maior, Op. 120
01 – Thema: Vivace
02 – Variação I: Alla Marcia. Maestoso
03 – Variação II; Poco Allegro
04 – Variação III; L’istesso tempo
05 – Variação IV Un poco più Vivace
06 – Variação V: Allegro Vivace
07 – Variação VI: Allegro ma non troppo e serioso
08 – Variação VII: Un poco più allegro
09 – Variação VIII: Poco vivace
10 – Variação IX: Allegro pesante e risoluto
11 – Variação X: Presto
12 – Variação XI: Allegretto
13 – Variação XII: Un poco più mosso
14 – Variação XIII: Vivace
15 – Variação XIV: Grave e maestoso
16 – Variação XV: Presto scherzando
17 – Variação XVI: Allegro
18 – Variação XVII
19 – Variação XVIII: Poco moderato
20 – Variação XIX: Presto
21 – Variação XX: Andante
22 – Variação XXI: Allegro con brio – Meno allegro
23 – Variação XXII: Allegro molto (Alla »Notte e Giorno Faticar« di Mozart)
24 – Variação XXIII: Allegro assai
25 – Variação XXIV: Fughetta. Andante
26 – Variação XXV: Allegro
27 – Variação XXVI
28 – Variação XXVII: Vivace
29 – Variação XXVIII: Allegro
30 – Variação XXIX: Adagio ma non troppo
31 – Variação XXX: Andante, sempre cantabile
32 – Variação XXXI: Largo, molto espressivo
33 – Variação XXXII: Fuga – Allegro – Poco Adagio
34 – Variação XXXIII: Tempo di Menuetto – Moderato
Acrescentar obras novas de Beethoven a um acervo como o do PQP Bach é dureza, ainda mais quando se tem como colegas uns celerados com discografias nababescas como nosso patrão e o ilustre FDP Bach. No entanto, acho – ACHO – que esta ainda não apareceu por aqui: o arranjo para piano e orquestra, feito pelo próprio compositor, de seu célebre Concerto para violino.
Como era habitual a Beethoven, gênio tão ruminativo quanto pessoa proverbialmente desorganizada, a versão original do Concerto foi concluída em cima da hora para a estreia, muito pouco ensaiada, e o solista – um certo Franz Clement – teve que ler boa parte do solo à primeira vista. A relação do público na première, claro, foi uma geleira, e a obra foi esquecida durante muitas décadas, até ser ressuscitada pelo jovem Joseph Joachim em meados do século XIX. Numa tentativa de resgatá-la do ostracismo, Beethoven arranjou-a como um Concerto para piano, quase rasgando suas costuras ao tentar torná-la mais idiomática ao teclado. Fê-lo, aparentemente, com muito entusiasmo, a julgar pela curiosíssima, hiperativa cadenza que escreveu para o Allegro non troppo, que conta com uma nada sutil participação dos tímpanos – os mesmos que abrem, em discreto pulsar, o primeiro movimento.
O finlandês Mustonen é um bom pianista e muito aventureiro na exploração do repertório. Para acompanhar a curiosa reinvenção de Beethoven, escolheu um dos concertos de Bach, para o qual dá uma interpretação correta, tanto ao teclado quanto na regência.
BEETHOVEN – PIANO CONCERTO (VIOLIN CONCERTO ARR. BEETHOVEN) BACH – CONCERTO BWV 1054 OLLI MUSTONEN
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto em Ré maior para piano e orquestra, Op. 61a (transcrição do Concerto para violino, Op. 61, feita pelo próprio compositor)
01 – Allegro non troppo
02 – Larghetto
03 – Rondo: Allegro
Olli Mustonen, piano Deutscher Kammerphilarmonie Jukka-Pekka Saraste, regência
Johann Sebastian BACH (1685-1750)
Concerto em Ré maior para piano, orquestra de cordas e contínuo, BWV 1054
04 – [sem indicação de andamento]
05 – Adagio e piano sempre
06 – Allegro
Olli Mustonen, piano e regência Deutscher Kammerphilarmonie
Este magnífico álbum seria tocante mesmo sem as circunstâncias que, a seguir, passo a lhes descrever – e se o leitor-ouvinte é daqueles que prefere apreciar apenas o que escuta, sem se abalar com circunstâncias extramusicais, sugiro que passe direto ao download.
A fortaleza austro-húngara de Theresienstadt (em tcheco, Terezín) foi criada no século XVIII nas proximidades de Ústí nad Labem, ao norte de Praga. Afora sua função defensiva, também serviu como centro de detenção para prisioneiros políticos, mas foi durante o sombrio período da ocupação alemã da Boêmia (1939-1945) que o nome de Terezín foi definitivamente escrito na História da Infâmia.
Depois da anexação do território tcheco dos Sudetos (1938) e de garantir a influência sobre o estado-fantoche da Eslováquia (1939), o Reich transformou o restante do território da então Tchecoslováquia no Protetorado da Boêmia e Morávia, nominalmente autônomo e governado por tchecos colaboracionistas. Na prática, quem mandava no Protetorado era um Reichsprotektor, cargo que coube, entre outros, a dois dos mais truculentos membros dos quadros do Partido Nazista: Reinhard Heydrich (assassinado em 1942 por comandos tchecos) e Wilhelm Frick (executado em Nürnberg em 1946).
[agradecemos ao leitor Fehes pela correção do nome de Heydrich e do ano das mortes de Heydrich e Frick, enquanto pedimos desculpas aos leitores-ouvintes pelos erros que inacreditavelmente permaneceram aqui durante vários anos e revisões]
Tão logo tomaram as rédeas do poder, os nazistas começaram a esmagar os movimentos de resistência e expulsar os então mais de cem mil judeus tchecos de suas residências. A maior parte deles foi parar na cidadela de Terezín, que rapidamente viu sua população inflar para quase sessenta mil pessoas, amontoadas em condições degradantes e num espaço preparado para receber menos de sete mil. Além dos judeus da Boêmia, Morávia e Eslováquia, Terezín também recebeu deportados da Alemanha, Áustria, Países Baixos e Dinamarca, bem como prisioneiros de outros países.
Enquanto a fome, o frio e as epidemias ceifavam vidas entre os prisioneiros, o eficiente aparato de propaganda nazista vendia a imagem de Terezín como uma cidade-modelo, em que os judeus viviam em liberdade e celebravam sua cultura dentro do Reich: o emblema de um tratamento humano e respeitoso que era o antônimo exato do que recebiam. Numa ocasião especialmente infame, os nazistas “embelezaram” Terezín para uma inspeção da Cruz Vermelha e para um filme de propaganda, amontoando os prisioneiros famélicos e doentes em galpões para deixar à vista tão só os pouquíssimos internos em estado razoável de saúde. O resultado da medida, no auge de uma epidemia de tifo, foi mortífero.
Com o advento da infamemente denominada “Solução Final”, os guetos foram evacuados, e seus moradores, transportados para campos de extermínio. Além das 33.000 mortes devidas às péssimas condições de vida em Terezín, outras 88.000 pessoas que por lá passaram foram levadas ao encontro da morte em Auschwitz-Birkenau, Treblinka e Sobibor. No total, das mais de 150.000 vítimas do fascismo que viveram em Terezín, menos de 18.000 sobreviveram – entre as quais apenas 240 das 15.000 crianças.
Apesar da extrema dureza da vida no gueto, e dos abusos e censura rigorosa dos nazistas, a vida e a Arte floresceram em Terezín tanto quanto puderam. Artistas deportados continuaram a escrever, compor, pintar e esculpir suas obras. A pintora Friedl Dicker-Brandeis, notavelmente, deu aulas de Pintura e Desenho para muitas crianças, com o intuito de aliviar-lhes a opressão em que viviam. Estes jovens artistas, que em sua maioria encontraram a morte nos anos subsequentes, deixaram para a posteridade um pungente legado que não só descreve melhor do que quaisquer palavras os horrores que presenciaram, mas que também preservou seus nomes para a posteridade. Alguns destes preciosos desenhos ilustram esta postagem.
Sensibilizada com a história de Terezín, a diva sueca Anne Sofie von Otter rodeou-se de colaboradores para produzir este disco, inteiramente devotado a obras compostas por vítimas do terror nazista, a maior parte deles prisioneiros do gueto. Se algumas delas transpiram alegria, serenidade e escracho, é difícil nossas faringes não se apertarem ante a constatação de que a maior parte de seus compositores faleceu em 1944 – o ano da liquidação de Terezín. O que à primeira vista parece uma colagem com os gêneros mais diversos – de canções de cabaré a Lieder em tcheco e em iídiche, e até uma sonata para violino solo – ganha uma coesão admirável graças às interpretações muito sensíveis e reverentes.
No fim, ao extinguir-se a última nota do violino, o silêncio cala fundo, e é como se uma voz nos sussurrasse:
– Esquecer… é repetir.
NUNCA, pois, esqueçamos Terezín.
TEREZÍN/THERESIENSTADT
Anne Sofie von Otter, mezzo-soprano
Christian Gerhaher, barítono
Daniel Hope, violino
Bengt Forsberg e Gerold Huber, piano
Ib Hausmann, clarinete
Philip Dukes, viola
Josephine Knight, violoncelo
Bebe Risenfors, violão e acordeão
Ilse WEBER (1903-1944)
01 – Ich wandre durch Theresienstadt
Anne-Sophie von Otter, Bengt Forsberg, Bebe Risenfors
Karel ŠVENK (1917-1945)
arranjo de Moshe Zorman
02 – Pod destnikem
03 – Vsecho jde!
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg, Bebe Risenfors
Ilse WEBER
04 – Ade, Kamerad!
Christian Gerhaher, Gerold Huber
05 – Und die Regen rinnt
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg
Adolf STRAUSS (1902-1944) arranjo de Moshe Zorman
06 – Ich weiß bestimmt, ich werd Dich Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg
Emmerich KÁLMÁN (1882-1953)
07 – Gräfin Mariza – Opereta em três atos: Terezín-Lied
Christian Gerhaher, Gerold Huber
Martin ROMAN (1910-1996)
08 – Karrussell
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg
Ilse WEBER
09 – Wiegala
Anne Sofie von Otter, Bebe Risenfors
Hans KRÁSA (1899-1944)
Três Canções sobre poemas de Arthur Rimbaud, traduzidas por Vítězslav Nezval:
10 – Čtyřverší
11 – Vzrušení
12 – Přátelé
Christian Gerhaher, Ib Hausmann, Philip Dukes, Josephine Knight
Carlo Sigmund TAUBE (1897-1944)
13 – Ein jüdisches Kind
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg, Ib Hausmann
Viktor Ullman (1898-1944)
14 – Drei jiddische Lieder (Brezulinka), Op.53 – no. 1: Berjoskele
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg
Seis Sonetos de Louize Labané, Op.34
15 – No. 1: “Claire Vénus”
16 – No. 2: “On voit mourir”
17 – No. 3: “Je vis, je meurs…”
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg
Pavel HAAS (1899-1944)
Quatro Canções sobre Poemas Chineses
18 – Zaslechl jsem divoké husy
19 – V bambusovém háji
20 – Daleko měsíc je domova
21 – Probděná noc
Christian Gerhaher, Gerold Huber
Erwin Schulhoff [Ervín ŠULHOV] (1894-1942)
Sonata para violino solo (1927)
22 – Allegro con fuoco
23 – Andante cantabile
24 – Scherzo
25 – Finale
Daniel Hope
Avital dispensa apresentações, pois já passou por aqui com um belo álbum dedicado a Vivaldi e excelente repercussão (pelo menos em termos de downloads, pois, se fôssemos julgar somente pelos comentários, conforme há muito resmungamos, pensaríamos ter somente aquele fiel punhado de leitores-ouvintes). Como o compositor também as dispensa, pois é o Alfa e o Ômega de toda a Música, passo direto à gravação. Ah, e já que Sebastian não escreveu uma nota sequer para o bandolim, coube ao ótimo Avital também o afã de habilmente transcrevê-las. Talvez a Kammerakademie Potsdam esteja alguns degraus abaixo da orquestra veneziana que o acompanhou no álbum de Vivaldi, mas o risonho virtuoso israelense é tão bom que a gente não reclama.
Divirtam-se!
BACH – AVI AVITAL
Johann Sebastian BACH (1685-1750)
transcrições para bandolim de Avi Avital (1978)
Concerto para cravo, orquestra de cordas e baixo contínuo no. 1 em Ré menor, BWV 1052
01 – Allegro
02 – Adagio
03 – Allegro
Concerto para cravo, orquestra de cordas e baixo contínuo no. 5 em Fá menor, BWV 1056
04 – Sem indicação de andamento
05 – Largo
06 – PrestoConcerto para violino, orquestra de cordas e baixo contínuo no. 1 em Lá menor, BWV 104107 – Sem indicação de movimento
08 – Andante
09 – Allegro assai
Avi Avital, bandolim Kammerakademie Potsdam Ophira Zakai, teorba Shalev Ad-El, cravo e regência
Sonata para flauta e baixo contínuo no. 5 em Mi menor, BWV 1034
10 – Adagio ma non troppo
11 – Allegro
12 – Andante
13 – Allegro
Avi Avital, bandolim Shalev Ad-El, cravo Ophira Zakai, teorba Ira Givol, violoncelo
Temos trocentas gravações dessas Suítes para violoncelo em nossos porões, mas já que chegou a hora do contrabaixo em nossa minissérie, ei-las então executadas no grandalhão.
Não é qualquer um que se dispõe a tal empreitada, e Edgar Meyer, realmente, não é qualquer um. Sua técnica impecável e tremenda musicalidade resultaram numa gravação melíflua das Suítes, que soa mais delicada que muitas feitas no violoncelo (sim, Mstislav: estou olhando pra ti!)
Para esta gravação, Meyer escolheu as suítes primeira (em Sol maior), segunda (em Ré menor) e quinta (em Dó menor). A preferência pelas suítes mais meditativas e em tons menores parece justificar-se num instrumento maior e com cordas menos responsivas – e a singela Sarabande da Suíte no. 5, que Rostropovich considerava o non plus ultra da obra de Bach, soa como uma revelação. Não obstante, Meyer – que certamente confia em seu arco – intercalou-as com a radiante Suíte no. 1, que passa tocando quase sem transposição, no registro agudo de seu instrumento e sem quaisquer dificuldades aparentes, para volta e meia chamar o baixo profundo dos registros graves, daqueles que fazem até vibrar os sisos de quem os tem.
Se Meyer gravou as demais suítes, eu desconheço. Tomara que sim.
BACH – UNACCOMPANIED CELLO SUITES Performed on Double Bass – Edgar Meyer
Para desespero dos tantos que o detestam, Horowitz está de volta.
Defendo minha postagem: acho que os truques pianísticos de que Horowitz tanto abusava se prestam muito bem às obras de Scarlatti. O colorido e o staccato de Volodya, em especial, deixam estas deliciosas miniaturas ainda mais atraentes.
Horowitz, que já alimentava um séquito de ferozes odiadores desde o começo de sua carreira nos Estados Unidos, viu o coro do desprezo aumentar às custas de suas interpretações de Scarlatti, porque, claro, não podiam conceber que alguém executasse ao piano peças compostas originalmente para o cravo. A favor de Horowitz contam a amizade, as consultorias e a estreita colaboração com o cravista Ralph Kirkpatrick, a maior autoridade da época na obra de Scarlatti – o “K.” que acompanha a numeração das Sonatas (ou “Essercizi”, como preferia o compositor) nada mais é que a abreviatura de “Kirkpatrick”, responsável pela elaboração do catálogo cronológico dos “Essercizi”, que substituria a até então consolidada classificação de Alessandro Longo (“L.”).
Ok, não é um cravo, e sim um Steinway, e não temos um cravista, mas um feiticeiro prestidigitador com um sem-fim de truques pianísticos. Detestem-no ou não, Horowitz imprime sua cara a estas obras, e sob suas mãos elas me soam sensacionais.
Sim, eu gosto de Horowitz. Sim, tem gosto pra tudo.
Julguem-me.
Domenico SCARLATTI (1685-1757)
Sonatas (“Essercizi”) para teclado
01 – Em Ré maior, K. 33 (L. 424): Allegro
02 – Em Lá maior, K. 54 (L. 241): Allegro
03 – Em Fá maior, K. 525 (L.188): Allegro
04 – Em Fá maior, K. 466 (L. 118): Andante Moderato
05 – Em Sol maior, K. 146 (L. 349): Allegretto
06 – Em Ré maior, K. 96 (L. 465): Allegro
07 – Em Mi maior, K. 162 (L. 21): Andante
08 – Em Mi bemol maior, K. 474 (L. 203): Andante e cantabile
09 – Em Mi maior, K. 198 (L. 22): Allegro
10 – Em Ré maior, K. 491 (L. 164): Allegro
11 – Em Fá maior, K. 481 (L. 187): Andante e cantabile
12 – Em Lá maior, K. 39 (L. 391): Allegro
13 – Em Sol maior, K. 547 (L. 528): Allegro
14 – Em Si maior, K. 197 (L. 147): Andante
15 – Em Fá sustenido maior, K. 25 (L. 481): Allegro
16 – Em Ré maior, K. 52 (L. 267): Andante moderato
17 – Em Sol maior, K. 201 (L. 129): Vivo
18 – Em Dó maior, K. 303 (L. 9): Allegro
Arrisco dizer que Oscar Shumsky (1917-2000) é o menos ouvido dos grandes violinistas do século passado. Sua longa e intensa dedicação à carreira pedagógica certamente contribuiu para essa relativa obscuridade: foram décadas ensinando no Curtis Institute de Filadélfia, em Yale e na Juilliard School, até que voltasse aos palcos e estúdios em 1981, sob intensa aclamação.
Apesar de ter nascido na Filadélfia, o pedigree musical de Shumsky é inteiramente europeu: filho de judeus russos, aluno do húngaro Leopold Auer (aquele mesmo que esnobou o Concerto para violino de Tchaikovsky e que foi professor de Heifetz no Conservatório de São Petersburgo) e, depois, do russo Efrem Zimbalist no Curtis Institute. Criança-prodígio, foi chamado por Stokowski (com quem estreou aos sete anos de idade) de “o mais espantoso gênio” que já ouvira. Ao contrário de muitos prodígios, sua carreira adulta correspondeu às expectativas, e foi um artista extremamente ativo e requisitado durante toda a vida.
As Sonatas para violino solo do belga Ysaÿe, concebidas como retratos musicais de violinistas amigos do compositor, são tão atraentes quanto horrendamente difíceis. A nobreza e habilidade com que Shumsky incorpora as enormes dificuldades técnicas ao fluxo sonoro certamente hão de atrair os leitores-ouvintes para o rol de seus fãs.
Eugène-Auguste YSAYE (1858-1931)
SEIS SONATAS PARA VIOLINO SOLO, Op. 27
Sonata no. 1 em Sol menor (para Joseph Szigeti)
01 – Grave
02 – Fugato
03 – Allegretto poco scherzoso
04 – Finale. Con brio
Sonata no. 2 em Lá menor (para Jacques Thibaud)
05 – Obsession
06 – Malinconia
07 – Danse des ombres
08 – Les furies
Sonata no. 3 em Ré menor, ‘Ballade’ (para George Enescu)
09 – Ballade: Lento molto sostenuto – Allegro in tempo giusto e con bravura
Sonata no. 4 em Mi menor (para Fritz Kreisler)
10 – Allemanda
11 – Sarabande
12 – Finale
Sonata no. 5 em Sol maior (para Mathieu Crickboom)
“Oh, céus!”, dirão vocês, “depois de nos entupir de Glenn Gould, o cara vem trazer os sacrossantos CONCERTOS DE BRANDENBURG numa REDUÇÃO para PIANO a QUATRO MÃOS”?
Sim, pessoal – mas deponham as pedras, por favor: eu me explico!
Houve um tempo em que não havia PQP Bach, nem música online, tampouco internet, que se dirá então de gravações digitais: esse era o tempo de Max Reger (1873-1916), e nele só havia gravações muito precárias e caríssimas. Uma das poucas alternativas que restavam aos melômanos que desejassem escutar em sua casa a música orquestral de grandes mestres era manter em suas salas um piano e comprar arranjos de obras orquestrais para serem tocadas nele. Reger, que já tinha feito transcrições pianísticas brilhantes de obras de J. S. Bach para o órgão, tivera sucesso também transcrevendo as Suítes para orquestra do grande mestre para piano a quatro mãos. Quando o editor pediu-lhe para transcrever os Concertos de Brandenburg, sua primeira resposta foi um rotundo “não” que, depois de muita hesitação, virou um “talvez” que nunca o convenceu completamente. Sua correspondência dá conta com muitos detalhes das dificuldades que encontrou na abordagem dessas mais perfeitas entre todas as obras, e em particular de como achava difícil fazer uma “redução” de partituras em que cada nota parecia essencial. O maior desafio, naturalmente, foi o Concerto no. 5, que contém uma parte muito elaborada e difícil para o cravo. A solução que Reger encontrou foi preservar tanto quanto possível as partes do concertino (grupo de solistas) e podar o que fosse necessário do ripieno (o restante do conjunto instrumental). Quando as transcrições foram publicadas, seu autor foi ferozmente desgraçado pelos críticos, e seus gritos de ódio ecoam até hoje, mais de um século depois.
Escutando esta interpretação do duo Trenkner-Speidel, não consigo deixar de aplaudir (diriam nossos vizinhos platinos) los huevos e a habilidade do transcritor. A perda de colorido, claro, é inevitável e inerente à transcrição. No entanto, a competência de Reger traz oportunidades de apreciar o incomparável gênio contrapontístico de Bach duma perspectiva inteiramente diferente. Antes de catarem pedras no chão e se juntarem à claque dos críticos, ouçam-nas e tirem suas próprias conclusões.
JOHANN SEBASTIAN BACH – BRANDENBURGISCHE KONZERTE BWV 1046-51 Für Pianoforte zu 4 Händen bearbeitet von Max Reger
Johann Sebastian BACH (1685-1750)
arranjo de Max REGER (1873-1916)
Concertos de Brandenburg, BWV 1046-1051, em redução para piano a quatro mãos
A obra de Beethoven para duo pianístico não é lá grandes coisas, e a única peça de mais músculo neste disco -a transcrição, feita pelo próprio Beethoven, da Grande Fuga para quarteto de cordas em Si bemol maior – era justamente seu ponto mais fraco: o Duo Clavier, de interpretações corretas para todas as mornas obras anteriores, errava a mão ao dar à mais iracunda obra de Beethoven uma leitura staccato e mezzo piano que aplacava quase toda sua fúria. Felizmente, ao preparar o CD para postagem, percebi que ele estava irremediavelmente danificado na última faixa, e resolvi o problema (e salvei a postagem) transplantando um MP3 que já tinha há mais tempo, em que Frank Zabel e Stefan Thomas dão à obra-prima uma leitura mais digna de sua estatura.
Esses arranjos para duo pianístico eram um recurso importante para divulgação e execução doméstica de obras que, antes de surgirem gravações fonográficas, só poderiam ser ouvidas nas salas de concerto. Sempre que escuto esta transcrição, fico imaginando quais foram os motivos que levaram Beethoven, já gravemente enfermo, a fazê-la, uma vez que ele próprio considerara a Grande Fuga longa e complicada demais para ser o final de seu Quarteto Op. 130, preferindo publicá-la em separado como Op. 133. Se lembrarmos que o escândalo causado por sua primeira audição levou muitos críticos a considerarem-na prova cabal da surdez e demência do compositor, imagino que as primeiras edições da obra (e deste arranjo) tenham encalhado integralmente. E, por mais que a versão pianística, sem os ataques furiosos e a sonoridade pungente das cordas, seja algo mais branda que a original, ainda hoje, quase dois séculos depois de sua publicação, a mais visionária das obras de Beethoven soa-nos tão moderna e radical como, provavelmente, sempre soará.
L. v. BEETHOVEN – PIANO FOUR HANDS – THE COMPLETE WORKS
01 – Oito Variações sobre um Tema do Conde Waldstein, WoO 67
Sonata em Ré maior, Op. 6
02 – Allegro molto
03 – Rondo: moderato
04 – Seis Variações em Ré maior sobre “Ich denke dein”, WoO 74
Três Marchas, Op. 45
05 – no. 1 em Dó maior: Allegro non troppo
06 – no. 2 em Mi bemol maior: Vivace
07 – no. 3 em Ré maior: Vivace
Duo Clavier
Mauro Landi e Paolo Dirani, piano
Grande Fuga em Si bemol maior, para piano a quatro mãos, Op. 134 8 – Overtura. Allegro
9 – Fuga. Allegro
10 – Meno mosso e moderato
11 – Allegro
12 – Allegro molto e con brio
13 – Allegro molto e con brio
Duo Zabel-Thomas
Frank Zabel e Stefan Thomas, piano
Encerrando a série “A Quatro Mãos”, uma apoteose a quatro e a seis mãos. Bem, “apoteose” talvez seja um exagero, mas duvido de que alguém consiga negar que estes concertos bastante agradáveis e bem escritos não preencham bem uma horinha, se tanto, da vida do ouvinte. E, se imaginarmos a imensa dificuldade que deve escrever um concerto para piano, extrapolamos então o que não deve ser escrever para três deles e orquestra – só para então lembrarmos que o compositor destes concertos não fosse exatamente conhecido por dificuldades em botar música no papel, o que fazia quase como função fisiológica, nem em tocar espantosamente bem o piano e violino, manter prolífica e colorida correspondência, reinar supremo nas mesas de bilhar e, para arredondar a conta, ainda aprimorar-se na arte de frequentar lençóis femininos: criatura admirável, esse Amadeus.
Certamente não no nível do hiperativo, boquirroto e priápico Johann Chrysostomus Wolfgangus, mas ainda merecedor de nossa salva de palmas, é o pianista que se junta a Christoph Eschenbach e Justus Frantz na gravação do Concerto para três pianos, realizada enquanto exercia, em plena Guerra Fria e com o muro de Berlim ainda sólido, o nada refrescante cargo de chanceler da República Federal da Alemanha: o incansável Helmut Schmidt, falecido no último 10 de novembro, a quem esta postagem pretende modestamente homenagear.
MOZART – THE CONCERTOS FOR TWO & THREE PIANOS CHRISTOPH ESCHENBACH – JUSTUS FRANTZ – HELMUT SCHMIDT
Wolfgang Amadeus MOZART (1756-1791)
Concerto em Fá maior para três pianos e orquestra, K. 242 (cadências de Mozart)
Um país imenso como a China, um caldeirão étnico transbordando tradições que parecem tão antigas quanto o tempo, poderia prover ad nauseam instrumentos para nossa série. O pípa, que escolhemos, assemelha-se a um alaúde e é conhecido pelo menos desde o século II a. C. O Concerto de Tán Dùn, baseado em sua obra “Ghost Opera” (que foi gravada pelo Kronos Quartet e por Wú Mán, a mesma solista deste álbum), tem aquele jeitão de colagem entre influências ocidentais e orientais que é característico do compositor. Apesar de alguns momentos interessantes, particularmente aqueles em que as cordas imitam vocalizações e o som do erhu (mais sobre ele abaixo), parece faltar algum amálgama para unir seus diversos episódios. Nostalghia de Takemitsu, composta como um réquiem para o cineasta Andrey Tarkovsky, é bem melhor, ainda mais com o ótimo solo de Yuri Bashmet ao violino. Os três arranjos de excertos de trilhas sonoras, também por Takemitsu, parecem um pouco deslocados, o que aumenta a agradável surpresa que é o sereno Concerto-Elegia de Hikaru Hayashi na viola do versátil Bashmet.
Do meu instrumento chinês preferido, o erhu, eu ainda não tenho gravação em CD que prestem. Enquanto aguardo que aquelas que encomendei atravessem os sete mares e cheguem a Desterro, deixo-lhes um vídeo em que o Xu Ke, o maior virtuose moderno do erhu, debulha as duas pobres cordas de seu instrumento numa interpretação do Zigeunerweisen de Sarasate que, claro, só pode ser fruto de bruxaria:
TAN DUN – PIPA CONCERTO – HAYASHI – VIOLA CONCERTO – TAKEMITSU – NOSTALGHIA
Tán DÙN (1957)
Concerto para orquestra de cordas e pipa
01 – Andante molto
02 – Allegro
03 – Adagio
04 – Allegro vivace
05 – Nostalghia, para violino solo e orquestra de cordas
Yuri Bashmet, violino Moscow Soloists Roman Balashov, regência
Três Trilhas Sonoras para orquestra de cordas 06 – Music for Training and Rest (de “José Torres”)
07 – Funeral Music (de “Black Rain”)
08 – Waltz (de “Face of Another)
Moscow Soloists Yuri Bashmet, regência
Hikaru HAYASHI (1931-2012)
Concerto para viola e orquestra de cordas, “Elegia”
09 – Movimento I
10 – Movimento II
Yuri Bashmet, viola Moscow Soloists Roman Balashov, regência
Jan Zelenka já deu o ar peruquento de sua graça aqui no PQP Bach, o que é muito merecido: sua extensa obra sacra, escrita sobretudo para a corte da linda Dresden, e consistente música orquestral são testemunhos de sua maestria no contraponto e arrojo harmônico. Assim como o de seu contemporâneo Johann Sebastian Bach, seu estilo fortemente ancorado no do barroco tardio e calcado na polifonia era tido como antiquado, e sua obra foi esquecida após sua morte.
“Pena!”, dirão vocês, ainda mais depois de escutarem estas trio sonatas magistralmente escritas, talvez as maiores obras do gênero. Já havia outra versão delas por aqui, eu até tinha um CD tcheco para postar, mas lembrei dessa gravação do Heinz Holliger e… nada mais preciso dizer: Holliger, um Midas da palheta dupla, foi um dos responsáveis pela redescoberta de Zelenka, com uma leitura clássica das trio sonatas feita para a Archiv nos anos 70. Esta que lhes apresento é uma regravação digital da ECM, em que Holliger se faz acompanhar de um conjunto à altura de seu talento, que é quase o mesmo da gravação anterior. O destaque vai para a cravista Christiane Jaccottet, intérprete da primeira boa integral de Bach para cravo a que tive acesso, pois, como se lembram os velhotes como eu, os anos 90 foram medonhos, eu era duro, e quase só podia comprar Movieplay.
ZELENKA – TRIO SONATAS
Jan Dismas ZELENKA (1679-1745)
Seis Trio Sonatas, ZWV 181
DISCO 1
Sonata no. 1 em Fá maior, para dois oboés, fagote e baixo contínuo
01 – Adagio ma non troppo
02 – Allegro
03 – Larghetto
04 – Allegro assai
Sonata no. 2 em Sol menor, para dois oboés, fagote e baixo contínuo
05 – Andante
06 – Allegro
07 – Andante
08 – Allegro
Sonata no. 3 em Si bemol maior, para violino, oboé, fagote e baixo contínuo
09 – Adagio
10 – Allegro
11 – Largo
12 – Tempo giusto
Heinz Holliger e Maurice Bourgue, oboés Thomas Zehetmair, violino Klaus Thunemann, fagote Jonathan Rubin, alaúde Christiane Jaccottet, cravo Klaus Stoll, contrabaixo
Comprei este CD numa loja que protruía de um buraco na parede num bairro dilapidado na periferia de Bucareste, e… bem, ele está perfeitamente à altura das condições de compra.
O capa, como podem ver ao lado, parece ter sido feita pela avó de alguém no Paint, entre um envio e outro para as amigas de apresentações com mensagens de autoajuda feitas no PowerPoint. O som não é lá tão ruim, e é até uma surpresa (considerando como são as coisas em Bucareste) que o CD realmente contenha a gravação prometida: os Concertos para piano de Shostakovich e suas três pequenas Danças Fantásticas, na interpretação do próprio compositor. Todos os impropérios possíveis em romeno vêm em mente (“nu mă fute!”, em particular) quando a gente constata que o produtor da gravação não se deu sequer ao trabalho de dividir os movimentos em faixas separadas. O resultado dessa meia-sola é o CD desgraçado, e de só três faixas, que lhes apresento a seguir.
Espero que saibam relevar as limitações técnicas desta gravação de 1958 em prol do privilégio de escutar um dos maiores compositores do século XX em ação, e que perdoem ao compositor-pianista algumas rabanadas ao teclado para saborear a concepção peculiar de Shostakovich para estas suas composições – notavelmente os andamentos frenéticos que imprime aos movimentos rápidos. O acompanhamento de André Cluytens consegue, com muita competência, a proeza de realmente acompanhar o solista apressadinho. Dmitri Dmitriyevich, na certa, estava louco para terminar os takes para pitar e, tabagista contumaz que era (há relatos de que chegou a fumar CENTO E CINQUENTA mata-ratos num dia), talvez engatasse um prestississimo para se atirar o quanto antes nos ramos da Nicotiana tabacum.
Ao contrário do que já li em alguns lugares, as gravações de Shostakovich tocando suas próprias obras vão bem além deste volume aqui. Há um número considerável de LP soviéticos com partes de sua obra para piano e para conjuntos de câmara – incluindo a primeira de seu maravilhoso quinteto com piano, sonatas com Oistrakh e Rostropovich, trios e quartetos.
Se houver interesse de vocês, postarei algo mais do que tenho – caprichem, portanto, nos downloads!
Dmitriy DmitriyevichSHOSTAKOVICH (1906-1975)
1 – Concerto no. 1 em Dó menor para piano, trompete e orquestra de cordas, Op. 35 – Allegretto – Lento – Moderato – Allegro con brio*
2 – Concerto no. 2 em Fá maior para piano e orquestra, op. 102 – Allegro – Andante – Allegro
Dmitri Shostakovich, piano *Ludovic Vaillant, trompete Orquestra Nacional da Radiodifusão Francesa André Cluytens, regência
3 – Três Danças Fantásticas para piano, Op. 5 – Marcha (Allegretto) – Valsa (Andantino) – Polka (Allegretto)
BÔNUS: Shostakovich fala e toca um trecho de sua Sinfonia no. 7, “Leningrado”. Até onde vai meu russo, os créditos do começo dão conta do “Duplamente Laureado com o Prêmio Stalin – Compositor Dmitri Shostakovich” – ironia tétrica para com alguém tão desgraçado pelo truculento Djugashvilli. Pelo que pude entender, ele diz que sua sétima sinfonia foi inspirada pelo horror de 1941, que dedica sua obra à luta contra o Fascismo, à vitória e à sua cidade de Leningrado, e que tocará um trecho do primeiro movimento. Talvez o PQP possa pedir à sua musa que nos conceda a gentileza de uma tradução melhor daquilo que Dmitri nos tem a dizer!
Acabo de voltar do trampo, pronto para redigir uma resenha que preparara mentalmente entre um enfermo e outro, quando soube que o sensacional pianista Ivan Moravec faleceu hoje em Praga, aos 84 anos.
Suspendi, claro, meus planos originais e resolvi homenageá-lo, compartilhando com vocês a gravação mais legendária do grande artista tcheco: aquela dos noturnos de Chopin, feita em 1965 e periodicamente relançada, de selo em selo, com enorme sucesso.
Não é à toa: a leitura de Moravec para os noturnos é linda e inconfundível. Talvez haja rubato em demasia para o gosto de alguns, mas há lirismo de sobra, e há uma coerência da primeira à última nota da série. Moravec era absolutamente obsessivo com o som dos pianos que tocava e com o ajuste fino de sua mecânica. Viajava com sua caixa de ferramentas e, frequentemente, era visto trabalhando junto com os afinadores e técnicos nos intervalos de gravações, de ensaios ou mesmo de recitais.
Moravec nasceu em Praga no começo de uma década especialmente desgraçada para seu país, que acabaria com a brutal ocupação da jovem nação tchecoslovaca pelas forças de Hitler e sua anexação à esfera do Reich como o Protetorado da Boêmia e da Morávia. A expulsão dos alemães significou o pano rápido para o desfraldar da Cortina de Ferro, sob as saias da União Soviética, e o jugo de regimes autocráticos que restringiam enormemente as viagens internacionais de seus cidadãos, incluindo os artistas.
Ainda assim, gravações piratas do jovem Moravec circularam amplamente pela Europa Ocidental e pelas Américas, e com tal repercussão que o selo Connoisseur Society (o mesmo que tinha em contrato o maravilhoso Antônio Guedes Barbosa) atravessou a férrea Cortina e convidou o prodígio para realizar gravações. Naquele 1965, o clima político na Tchecoslováquia era relativamente ameno, de modo que o contrato foi firmado, e as legendárias sessões que ora lhes alcanço, realizadas em New York e Viena entre a primavera e o outono do mesmo ano.
Aquela calmaria política, claro, era parte do processo de gradual abertura que culminaria, três anos depois, com as reformas de Dubček, a Primavera de Praga e as sangrentas invasão e ocupação soviéticas. Moravec, mais uma vez, acabaria fechado atrás da Cortina de Ferro, lecionando em Praga, gravando prolificamente e, quando assim lhe permitia a nomenklatura, saindo para breves turnês.
Meus saudosos meses em Praga, que incluíram um longo inverno com pouco dinheiro a tiritar de frio, foram muito menos duros por causa de Moravec. Tive a suprema honra de assistir a recitais seus na divina Obecní dům (Casa Municipal) e no régio Rudolfinum. Suas gravações para o selo Supraphon, baratas como batatinhas, encheram-me de uma felicidade tal que, para ser mais plena, só se me forrasse também o estômago. E foi no encarte de uma dessas gravações que li pela primeira vez uma entrevista com o mestre. No meio da espessa sopa de letrinhas do idioma tcheco, havia uma declaração bastante óbvia, e de maneira tão ululante que até eu consegui entender:
– Você sabe… minha verdadeira paixão é cantar.
Depois que se escuta o que segue, só nos resta concordar.
In memoriam Ivan Moravec (9/11/1930 – 27/7/2015)
Fryderyk FranciszekCHOPIN (1810-1849)
NOTURNOS PARA PIANO
Ivan Moravec, piano
CD 1
01 – Três Noturnos, Op. 9 – No. 1 em Si bemol menor
02 – Três Noturnos, Op. 9 – No. 2 em Mi bemol maior
03 – Três Noturnos, Op. 9 – No. 3 em Si menor
04 – Três Noturnos, Op. 15 – No. 1 em Fá maior
05 – Três Noturnos, Op. 15 – No. 2 em Fá sustenido menor
06 – Três Noturnos, Op. 15 – No. 3 em Sol menor
07 – Dois Noturnos, Op. 27 – No. 1 em Dó sustenido menor
08 – Dois Noturnos, Op. 27 – No. 2 em Ré bemol maior
09 – Dois Noturnos, Op. 32 – No. 1 em Si maior
10 – Dois Noturnos, Op. 32 – No. 2 em Lá bemol maior
01 – Dois Noturnos, Op. 37 – No. 1 em Sol menor
02 – Dois Noturnos, Op. 37 – No. 2 em Sol maior
03 – Dois Noturnos, Op. 48 – No. 1 em Dó menor
04 – Dois Noturnos, Op. 48 – No. 2 em Fá sustenido menor
05 – Dois Noturnos, Op. 55 – No. 1 em Fá menor
06 – Dois Noturnos, Op. 55 – No. 2 em Mi bemol menor
07 – Dois Noturnos, Op. 62 – No. 1 em Si maior
08 – Dois Noturnos, Op. 62 – No. 2 em Mi maior
09 – Peças Póstumas para piano, Op. 72 – No. 1: Noturno em Mi menor
Não tem erro: quaisquer que sejam os intérpretes, essa Sinfonia Concertante para violino, viola e orquestra de Mozart é garantia de deleite e, no meu caso, de olhos muito suados.
Quando há solistas do gabarito da pequena notável Julia Fischer – toda confiante no meio dos grandões aí do lado – e escudeiros como o violinista e violista Nikolić (spalla da London Symphony Orchestra) e o regente Kreizberg (que infelizmente faleceu muito jovem), a coisa fica descontroladamente boa.
Deve ser a trocentésima quarta versão desta obra-prima disponível aqui no PQP Bach, e quem acompanhou as postagens das versões anteriores conhece o alto apreço em que nosso patrono a tem, especialmente seu Andante usado de modo magnífico pelo cineasta Peter Greenaway em sua própria obra-prima, Afogando em Números.
Eu, Vassily Genrikhovich, não fico muito atrás. Assim como o patrão PQP, acredito que a entrada dos solistas no primeiro movimento – uma linda e melíflua frase em oitavas – seja um dos momentos mais arrepiantes em toda música.
Mas os Dominantes que manejam este pobre títere de carne e tripas quiseram ainda mais e, num dia inesquecível para mim, num momento que mr liquefez as pernas, Eles não permitiram, claro, que a música fosse outra. O resultado é que, até hoje, este Allegro maestoso (e as lembranças associadas) me abilola a ponto de ver passarinho verde.
Sim, hoje estou pra lá de piegas, com os pés bem firmes na Melosolândia, quase a ponto de botar para tocar um LP do Wando, mas que se danem vocês e seus duros corações: o meu está aqui, bem flechado e irremediavelmente empalado por um violino, uma viola e uma orquestra.
Wolfgang Amadeus MOZART (1756-1791)
1 – Sinfonia Concertante em Mi bemol maior para violino, viola e orquestra, K. 364 – Allegro maestoso
2 – Sinfonia Concertante em Mi bemol maior para violino, viola e orquestra, K. 364 – Andante
3 – Sinfonia Concertante em Mi bemol maior para violino, viola e orquestra, K. 364 – Presto
4 – Rondó em Dó maior para violino e orquestra, K. 373 (cadenza: Julia Fischer)
Julia Fischer, violino
Netherlands Chamber Orchestra
Yakov Kreizberg
5 – Concertone em Dó maior para dois violinos e orquestra, K. 190 – Allegro spiritoso
6 – Concertone em Dó maior para dois violinos e orquestra, K. 190 – Andantino grazioso
7 – Concertone em Dó maior para dois violinos e orquestra, K. 190 – Tempo di menuetto: Vivace
Julia Fischer e Gordan Nikolić, violinos Netherlands Chamber Orchestra Yakov Kreizberg, regência
Um agradável álbum e mais algumas figurinhas para o rol de compositores do acervo do PQP Bach, em obras desencavadas de arquivos da Saxônia e Turíngia pelo solista Albrecht Mayer, primeiro oboísta da Filarmônica de Berlim.
Nenhuma dessas obras que voltam à luz é pérola comparável ao Concerto K. 314 de Mozart, mas todas elas oferecem ótimas oportunidades para o Mayer brilhar com seu bonito som. Ainda que os concertos de Hoffmeister e Lebrun sejam talvez os que menos chances tenham de reencontrar a poeira, foram o rondó de Koželuh e o adágio de Fiala (e o belíssimo timbre do corne inglês) aqueles que cá comigo deixaram o melhor retrogosto.
LOST AND FOUND – CONCERTOS PARA OBOÉ DO SÉCULO XVIII
ALBRECHT MAYER, oboé e regência Kammerakademie Potsdam
Estamos no último minuto do 18 de outubro, e ainda em tempo de celebrar o septuagésimo quinto aniversário do Sr. Nelson José Pinto Freire, nascido no rio Grande, não o Rio Grande donde eu venho, mas o que banha a pacata Boa Esperança das Minas Gerais, um cidadão do mundo, e certamente um dos compatriotas que nunca nos deixará sem respostas se alguém nos perguntar o que de bom tem o Brasil, além de butiás e jabuticabas. Parabenizamos o célebre Sr. Freire e abraçamos o gentil Nelsinho, alcançando-lhe nossa gratidão pela longa e profícua carreira, que não para de nos trazer alegrias nessas já tantas décadas que o veem elencado entre os maiores pianistas em atividade. Além do quilate artístico, o mineirinho Nelson é um amor de criatura, ouro maciço. Discreto, caseiro e reservado, vive para a arte e para os amigos. Agora há pouco cheguei a brincar com os companheiros de blog, imaginando-o a bebemorar seu aniversário, entre um cigarro e outro, com a grande amiga Martha Argerich, parceira de vida e arte há seis décadas, só para depois me lembrar de ter lido numa entrevista que ele parou de fumar há alguns anos, por querer manter-se por muito tempo ainda ativo: menos em recitais e concertos, pois a rotina de viagens lhe aborrece muito, e cada vez mais em gravações, depois de por tanto tempo relutar em fazê-las, e legar ao futuro uma resposta a quem quer que pergunte “como tocava Nelson Freire?”.
Numa bonita postagem, o Pleyel já afirmara que muito se poderia “falar do talento de Nelson para escolher peças de bis, parte essencial de recitais à moda antiga”. Pois neste fresquíssimo álbum, nosso cintilante compatriota apresenta-nos parte de seu arsenal de tira-gostos, digestivos e, também, fogos de artifício para arrematar concertos e recitais, abarcando o longo arco de tempo entre os gênios de Purcell e do tabagistíssima Shostakovich. O pianismo é, naturalmente, de chorar de bom, e ao final da guirlanda de peças a gente só consegue se admirar por lhe descobrir mais um talento: o de fazer um recital coeso só com tantos, e tão diversos, e diminutos bombons e bagatelas.
Que sirva de exemplo para tantos outros. E muitas outras.
Christoph WillibaldGLUCK (1714-1787)
Arranjo de Giovanni Sgambati
1- Orfeo ed Euridice: Melodia
HenryPURCELL (1659-1695)
2 – Hornpipe em Mi menor
Giuseppe DomenicoSCARLATTI (1685-1759)
3 – Sonata em Ré menor, K. 64
4 – Sonata em Si menor, K. 377
Zygmunt Denis Antoni Jordan deSTOJOWSKI (1870-1946)
5 – Aspirations, Op. 39: no. 1, “Vers l’Azur”
Ignacy Jan PADEREWSKI (1860-1941)
6 – Miscellanea, Op. 16: no. 4: Noturno em Si bemol maior
Richard GeorgSTRAUSS (1864-1949)
Arranjo de Leopold Godowsky
7 – Seis Lieder, Op. 17: No. 2, Ständchen
Edvard HagerupGRIEG (1843-1907)
Das “Peças Líricas” para piano:
8 – Livro I, Op. 12 – no. 1: Arietta
9 – no. 2: Valsa
10 – no. 5: Melodia Popular
11 – Livro II, Op. 38 – no. 1.: Berceuse
12 – Livro III, Op. 43 – no. 2: Viajante Solitário
13 – no. 4: Pequeno Pássaro
14 – no. 6: À Primavera
15 – Livro IV, Op. 47 – no. 4: Halling
16 – Livro V, Op. 54 – no. 1: Jovem Pastor
17 – Livro VIII, Op. 65 – no. 6: Dia de Casamento em Troldhaugen
18 – Livro IX, Op. 68 – no. 3: A seus pés
19 – no. 5: No berço
Anton GrigoryevichRUBINSTEIN (1829-1894)
20 – Duas Melodias, Op. 3 – no. 1 em Fá maior
Alexander NikolayevichSCRIABIN (1872-1915)
21 – Dois Poemas, Op. 32 – no. 1 em Fá sustenido maior
Sergei VasilyevichRACHMANINOV (1873-1943)
22 – Prelúdios, Op. 32 – no. 10 em Si menor: Lento
23 – no. 12 em Sol sustenido maior: Allegro
Isaac Manuel Francisco ALBÉNIZ y Pascual (1860-1909)
29 – España, Op. 165 – Tango em Ré maior (arranjo de Leopold Godowsky)
30 – Navarra (completada por Déodat de Sévérac)
“Seis Concertos Com diversos Instrumentos Dedicados À Sua Alteza Real Senhor Christian Ludwig Margrave de Brandenburg & c. & c. & c., por Seu mui humilde & mui obediente Servo Johann Sebastian Bach Mestre de Capela de Sua Alteza Real O príncipe reinante d’Anhalt-Cöthen
Meu Senhor
Como tive, há poucos anos, a felicidade de me fazer escutar junto à Vossa Alteza Real, em virtude de suas ordens, e como eu então percebi que Vossa Alteza teve algum deleite com os pequenos talentos que o Firmamento me concedeu para a Música; e, quando a me retirar da presença de Vossa Alteza Real, Ela houve por bem me fazer a honra de me mandar o envio a Vossa Alteza de algumas peças de minha composição; eu, de acordo com as mais graciosas ordens de Vossa Alteza, tomei a liberdade de cumprir meus humílimos deveres para com Vossa Alteza Real com os presentes Concertos, que arranjei a diversos Instrumentos; rogando mui humildemente que não julgue sua imperfeição ao rigor do gosto fino e delicado que todos sabem que Vossa Alteza tem pelas obras musicais, mas de ter sobretudo em Benigna consideração o profundo respeito, e a mais humilde obediência que eu tento demonstrar a Vossa Alteza (…)
Senhor De Vossa Alteza Real O mais humilde e mais obediente servo Johann Sebastian Bach. Cöthen, 24 mar 1721”
O Margrave, aparentemente, se lixou para a oferta de Bach, que, mesmo com toda a rasgação de seda, não conseguiu trabalhar em sua corte. As partituras dos Concertos empoeiraram nas estantes de Sua Alteza Real, de onde sairiam vendidas como papel velho por alguns poucos centavos.
Mas isso não importa.
Não fossem os “pequenos talentos” concedidos pelo Firmamento ao “mui humilde servo” Johann Sebastian Bach, o mundo provavelmente não se lixaria para o nome do tal Christian Ludwig.
Os nobres perecem.
BACH VIVE.
JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750)
OS CONCERTOS DE BRANDENBURG, BWV 1046-1051
THE ENGLISH CONCERT TREVOR PINNOCK, regência
CD 1
01 – Concerto de Brandenburg no. 1 em Fá maior, BWV 1046 – [sem indicação de tempo]
02 – Concerto de Brandenburg no. 1 em Fá maior, BWV 1046 – Adagio
03 – Concerto de Brandenburg no. 1 em Fá maior, BWV 1046 – Allegro
04 – Concerto de Brandenburg no. 1 em Fá maior, BWV 1046 – Menuetto – Trio I – Polacca – Trio II
05 – Concerto de Brandenburg no. 2 em Fá maior, BWV 1047 – [sem indicação de tempo]
06 – Concerto de Brandenburg no. 2 em Fá maior, BWV 1047 – Andante
07 – Concerto de Brandenburg no. 2 em Fá maior, BWV 1047 – Allegro assai
08 – Concerto de Brandenburg no. 3 em Sol maior, BWV 1048 – [sem indicação de tempo]
09 – Concerto de Brandenburg no. 3 em Sol maior, BWV 1048 – Adagio
10 – Concerto de Brandenburg no. 3 em Sol maior, BWV 1048 – Allegro
01 – Concerto de Brandenburg no. 4 em Sol maior, BWV 1049 – Allegro
02 – Concerto de Brandenburg no. 4 em Sol maior, BWV 1049 – Andante
03 – Concerto de Brandenburg no. 4 em Sol maior, BWV 1049 – Presto
04 – Concerto de Brandenburg no. 5 em Ré maior, BWV 1050 – Allegro
05 – Concerto de Brandenburg no. 5 em Ré maior, BWV 1050 – Affettuoso
06 – Concerto de Brandenburg no. 5 em Ré maior, BWV 1050 – Allegro
07 – Concerto de Brandenburg no. 6 em Si bemol maior, BWV 1051 – [sem indicação de tempo]
08 – Concerto de Brandenburg no. 6 em Si bemol maior, BWV 1051 – Adagio ma non tanto
09 – Concerto de Brandenburg no. 6 em Si bemol maior, BWV 1051 – Allegro
Homenagem a Johann Sebastian Bach, o maior gênio criador que já habitou este planeta, postada originalmente em 28/7/2015 – ducentésimo sexagésimo quinto aniversário de seu falecimento.
A exígua discografia de Antonio Guedes Barbosa inclui uma significativa parceria com a violinista polonesa Wanda Wiłkomirska (1929-2018), que resultou em alguns álbuns que, claro, compartilharemos com vocês.
Este, dedicado inteiramente a miniaturas compostas pelo violinista austríaco Fritz Kreisler para seu próprio usufruto nas salas de concerto, é um prato cheio para os fãs da ótima Wiłkomirska. Já os fãs de Barbosa lamentarão, talvez, a frugalidade das partes de piano, que é aqui um simples coadjuvante do violino exibido. Para os fãs lamentosos, então, fica um consolo: a parceria de Barbosa com Wiłkomirska rendeu gravações muito mais significativas, com as sonatas de Brahms, Ravel e Franck, além da “Primavera” de Beethoven que, obviamente, também postaremos aqui.
Notem que as peças “ao estilo” de Pugnani e Tartini, compostas por Kreisler, foram por muitos anos atribuídas aos mestres do passado. Da mesma maneira, as célebres “Liebesfreud”, “Liebesleid” e “Schön Rosmarin” eram tidas como obras do valsista Joseph Lanner (1801-1843). Essas atribuições foram deliberadamente feitas e mantidas por Kreisler, que apresentava tais obras como se fossem da lavra de outros compositores e muito se divertia, tanto com os rasgados elogios ao talento dos supostos compositores, quanto com o protesto dos críticos quando, já idoso, trouxe a farsa à tona.
DEAR FRITZ: FRITZ KREISLER MELODIES
Friedrich (“Fritz”) KREISLER (1875-1962)
01 – Liebesfreud
02 – Schön Rosmarin
Cyril Meir SCOTT (1879-1970)
Arranjo de Fritz Kreisler
03 – Lotus Land, Op. 47 no. 1
Isaac Manuel Francisco ALBÉNIZ y Pascual (1860-1909) Arranjo de Fritz Kreisler
04 – España, Op. 165 – no. 5: “Tango”
Fritz KREISLER
05 – Liebesleid
06 – Praeludium e Allegro no estilo de Pugnani
Richard Franz Joseph HEUBERGER (1850-1914)
Arranjo de Fritz Kreisler
07 – Der Opernball: Mitternachtsglocken (Midnight Bells)
Fritz KREISLER
08 – Tambourin Chinois
09 – Caprice Viennois
Folclore Irlandês, arranjo de Fritz KREISLER
10 – Londonderry Air
Fritz KREISLER
11 – Variações sobre um tema de Corelli, no estilo de Tartini
Wanda Wiłkomirska, violino Antonio Guedes Barbosa, piano
(gravação de 1971 do selo Connoisseur Society, nunca lançado no Brasil, esgotado tanto em LP quanto em CD)