Valentin Silvestrov (1937): Três Sonatas para piano; Sonata para violoncelo e piano (Lubimov, Monighetti)

A música do compositor ucraniano Valentin Silvestrov — disse uma vez nosso chefe PQP Bach — é delicada mas nada fácil de ignorar. É um sussurro muito instigante e contemporâneo. As sonatas para piano de Silvestrov têm algo em comum com as de Scriabin, a semelhança talvez possa ser descrita como uma tendência dos dois compositores a saborear as dissonâncias, ou seja, abordá-las de forma, lenta, suave, cheia de segundas e terceiras intenções…

Alexei Lubimov (nasc. 1944) é um pianista e cravista russo. Seu interesse, nas décadas de 1960 e 70, por compositores contemporâneos ocidentais como Arnold Schoenberg e Karlheinz Stockhausen o levou a ser mal visto pelas autoridades soviéticas: talvez como estratégia para ficar menos visado, ele se dedicou então a estudar a sonoridade de instrumentos antigos. Pela gravadora Erato, Lubimov gravou uma inovadora integral de sonatas de Mozart em um fortepiano de época. Depois, ele gravaria pela Bis o concerto n. 11 de Mozart, para dois pianos, com Brautigam, também em instrumentos de época (neste caso, réplicas do original). Ele também apareceu aqui no blog com um belíssimo Chopin, rara incursão de Lubimov no repertório romântico. Mas ele não deixaria de se interessar por música contemporânea (por exemplo aqui: Ustvolskaya, Gubaidulina, Górecki e Pelécis). E de Silvestrov, além deste disco pela Erato, Lubimov também gravou pela ECM obras para piano solo e com orquestra.

Ivan Monighetti, também nascido na Rússia mas com família em parte ocidental como o sobrenome entrega, atualmente vive na Suíça. Já Lubimov continua morando na Rússia, onde teve um recital com obras de Schubert e Silvestrov interrompido pela polícia. Sobre Monighetti, o violoncelista Mstislav Rostropovitch costumava dizer: “é um de meus alunos favoritos. Tendo conduzido a orquestra sua gravação dos concertos de Tishchenko e de Boris Tchaikovsky, eu não pude evitar o orgulho por meu notável pupilo.” A sonata para violoncelo e piano de Silvestrov, de 1983, foi dedicada a Monighetti, assim como a 2ª sonata para piano foi dedicada a Lubimov.

Hoje os países de Lubimov e de Silvestrov estão em guerra. Vamos nos permitir ouvir essa arte profunda e multifacetada que fazem Lubimov e Monighetti com as partituras de Silvestrov, sem fazer comentários tratando uma carnificina humana como se fosse uma partida de futebol? Vamos nos permitir ouvir com atenção as sensações causadas pelo piano e pelo violoncelo, sem pensamentos pré-concebidos sobre nações e outras abstrações? Será que conseguimos não nos rebaixar ao nível que esperam da gente? Sem arte, não há esperança.

Valentin Silvestrov (1937):
1. Sonate N° 2: Moderato stringendo (17:00) (1975)
2. Sonate N° 3: Preludio – Fuga – Postludio (15:27) (1979)
3-4 Sonate N° 1: Moderato, con molto attenzione – Andantino (16:21) (1972)
5. Sonate pour Violoncelle et Piano: Andante – Allegro vivace – Animato dolce – Allegro vivace (20:40) (1983)

Piano – Alexei Lubimov
Violoncello – Ivan Monighetti
Recorded 14-18/01/1991: Salle de l’Arsenal de Metz, France

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Alexei Lubimov

Pleyel

Alexander Scriabin (1872-1915): Estudos, Prelúdios, Poemas, Sonatas 9-10 para piano (Sofronitsky, Gilels)

Edição ricamente ornamentada de algumas obras curtas de Scriabin em Leipzig, 1925

“A arte é um vinho maravilhoso.”
Alexander Scriabin, citado por Boris de Schloezer

Hoje em dia a música de Scriabin faz parte do repertório de pianistas de várias origens e estilos: aqui no blog já tivemos a obra do russo por Marc-André Hamelin, Stephen Coombs, Valentina Lisitsa, Yuja Wang, Martha Argerich, Nelson Freire… Mas em meados do século passado, aquele compositor era uma especialidade dos soviéticos e russos emigrados, com bem poucos pianistas de outros países se aventurando em suas obras: uma das raras exceções era o alemão Walter Gieseking.

Hoje, então, vamos trazer dois dos grandes russos que se tornaram referência na interpretação de Scriabin. Além da relevância pela arte pianística, selecionei esses dois discos ao vivo por estarem entre as gravações com melhor qualidade e menos ruído.

Vladimir Sofronitsky (São Petersburgo, 1901 – Moscou 1961) foi colega de classe de Dmitri Shostakovitch, e de Elena Scriabina, a filha mais velha de Scriabin, com quem ele se casaria em 1920. Aliás Elena, já viúva, aparece no documentário Horowitz in Moscow, de 1986

Por sua vez, Emil Gilels (Odessa, 1916 – Moscou, 1985) foi um dos maiores intérpretes de Beethoven de sua geração, mas também tinha algumas obras de Scriabin – estudos e sonatas do jovem Scriabin e os últimos prelúdios, op.74, compostos em 1914 – sempre reaparecendo nos seus recitais, como esse de 1980 diante de um público inglês que provavelmente conhecia pouco sobre aquele compositor.

Sviatoslav Richter e Emil Gilels viam Sofronitsky como um importante mentor. Uma vez, em estado alcoolizado, Sofronitsky teria dito que Richter era um gênio. Em troca, Richter brindou e disse que Sofronitsky era um deus.

Abaixo, a tradução de dois textos sobre Scriabin, um de um escritor francês e o outro de uma pianista russa:

Além de três sinfonias, dois poemas sinfônicos, um concerto e das Sonatas nº 1 e nº 3, todas as outras obras de Scriabin não chegam a quinze minutos de duração… Além disso, a maior parte das suas cerca de duzentas peças para piano – como Chopin, Scriabin escreverá abundantemente para piano – não duram mais do que dois ou três minutos. Se a música de muitos de seus contemporâneos é prolixa, Scriabin age ao contrário, obcecado pela economia de meios e pela densidade máxima a ser dada ao material musical. Uma lição também aprendida com Chopin.

Assim como para o músico polonês, o piano de Scriabin é um mundo fechado e autossuficiente, onde ele respira livremente. Chopin e sua profunda influência – Scriabin retomará grande parte de seus gêneros, prelúdios, estudos, impromptus, mazurkas, noturnos – muitas vezes nos fazem esquecer sua verdadeira personalidade, essa espécie de graça lânguida e sonhadora que se afirma no famoso Estudo em dó sustenido menor op. 2, composto na adolescência. Scriabin, de fato, prolonga Chopin mais do que o segue. É surpreendente que um gênio tão precoce siga por um tempo os passos de outro? O contrário seria impensável quando conhecemos o alcance infinito do universo harmônico de Chopin, para não falar de sua inigualável arte pianística.

Os retratos fotográficos que temos de Scriabin dão uma imagem dele semelhante à sua música: orgulhoso, altivo, encantador, elegante, fino, misterioso, assertivo, nobre, distinto, estranho, singular, luminoso, surpreendente, exaltado…

(Texto de Jean-Yves Clément)

Como é o estilo de Scriabin? É uma pergunta difícil de se responder. Há alguns exemplos. Por exemplo, Vladimir Sofronitsky era um magnífico pianista. Ele era um amigo da família de Scriabin e tocava com frequência na sua casa. Mas Scriabin em suas interpretações é o seu próprio Scriabin, e o mesmo vale para outros pianistas como Horowitz e Neuhaus…

Leonid Sabaneyev conta que uma vez, quando ele assistia a um concerto com Tatiana Schloezes, esposa de Scriabin, eles descobriram um jovem pisnista cujo estilo lembrava o do compositor. Impressionados, eles falaram a respeito com Scriabin. Mas este não compartilhou do entusiasmo, ele não buscava formar uma escola. Ele era único.

O rubato de Scriabin é incomparável. É necessário sentir o ritmo metronômico, mas dentro de um rubato que é impossível de capturar porque ele foge e nunca chega a uma vitória lógica, mas sempre se curva inesperadamente.

(Texto de Ludmila Berlinskaya)

Vladimir Sofronitsky: Scriabin Recital
1-1 Étude in F sharp minor, Op. 8 No. 2
1-2 Étude in B major, Op. 8 No. 4
1-3 Étude in E major, Op. 8 No. 5
1-4 Étude in A flat major, Op. 8 No. 8
1-5 Étude in G sharp minor, Op. 8 No. 9
1-6 Étude in B flat minor, Op. 8 No. 11
1-7 Étude in F sharp major, Op. 42 No. 3
1-8 Fantaisie in B minor, Op. 28
1-9 Prélude in C major, Op. 13 No. 1
1-10 Prélude in A minor, Op. 11 No. 2
1-11 Prélude in G major, Op. 13 No. 3
1-12 Prélude in E minor, Op. 11 No. 4
1-13 Prélude in D major, Op. 11 No. 5
1-14 Prélude in B minor, Op. 13 No. 6
1-15 Prélude in A major, Op. 15 No. 1
1-16 Prélude in C sharp minor, Op. 9 No. 1 (for left hand)
1-17 Prélude in E major, Op. 11 No. 9
1-18 Prélude in C sharp minor, Op. 11 No. 10
1-19 Prélude in C sharp minor, Op. 22 No. 2
1-20 Prélude in B major, Op. 22 No. 3
1-21 Prélude in G sharp minor, Op. 16 No. 2
1-22 Prélude in G flat major, Op. 16 No. 3
1-23 Prélude in E flat minor, Op. 16 No. 4
1-24 Prélude in F sharp major, Op. 16 No. 5
1-25 Prélude in D flat major, Op. 11 No. 15
1-26 rélude in B flat minor, Op. 11 No. 16
1-27 Prélude in A flat major, Op. 11 No. 17
1-28 Prélude in E flat major, Op. 11 No. 19
1-29 Prélude in C minor, Op. 11 No. 20
1-30 Prélude in B flat major, Op. 11 No. 21
1-31 Prélude in B flat major, Op. 17 No. 6
1-32 Prélude in G minor, Op. 11 No. 22
1-33 Prélude in F major, Op. 11 No. 23
1-34 Prélude in D minor, Op. 11 No. 24
2-1 Poème, Op. 52 No. 1
2-2 Poème, Op. 59 No. 1
2-3 Poème ailé, Op. 51 No. 3
2-4 Poème languide, Op. 52 No. 3
2-5 Masque, Op. 63 No. 1 (Poème)
2-6 Poème satanique, Op. 36
2-7 Poème in D major, Op. 32 No. 2
2-8 Poème in F sharp major, Op. 32 No. 1
2-9 Poème, Op. 69 No. 1
2-10 Poème, Op. 69 No. 2
2-11 Piano Sonata No. 9, Op. 68
2-12 Flammes sombres, Op. 73 No. 2 (Danse)
2-13 Guirlandes, Op. 73 No. 1 (Danse)
2-14 Poème, Op. 71 No. 1
2-15 Poème, Op. 71 No. 2
2-16 Piano Sonata No. 10, Op. 70
2-17 Fragilité, Op. 51 No. 1
2-18 Feuillet d’Album, Op. 45 No. 1
2-19 Mazurka in E minor, Op. 25 No. 3
2-20 Étude in C sharp minor, Op. 42 No. 5
2-21 Mazurka in F sharp major, Op. 40 No. 2
2-22 Étude in D sharp minor, Op. 8 No. 12

Vladimir Sofronitsky, piano (Recorded live, 1959-1960, Moscow)

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Emil Gilels: Beethoven/Scriabin/Ravel/Poulenc Recital
1-4. Beethoven: Piano Sonata No.7 In D Major, Op.10 No.3
5. Beethoven: Eroica Variations, Op. 35
6-7. Scriabin: Etude No.2 In F Sharp Minor, Op.8, Etude No.1 In C Sharp Minor, Op.2
8-12. Scriabin: Five Preludes, Op.74
13-14. Ravel: Jeux D’Eau, Alborada del Gracioso
15. Poulenc: Pastourelle

Emil Gilels, piano (Recorded live: Cheltenham Town Hall, 20 November 1980. Issued as BBCL 4250-2 – BBC Legends)

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The Russian composer Scriabin, whose piano pieces I knew well, arrived in Paris for a concert of his own compositions. (…) “Come have a cup of tea with me,” he said amiably, and we went to the nearby Café de la Paix and ordered some tea and cakes. Scriabin was short and slender, with wavy dark blond hair, a carefully trimmed pointed beard not unlike Nikisch’s, and cold brown eyes which seemed to ignore everything around him.
“Who is your favourite composer?” he asked with the condescending smile of the great master who knows the answer. When I answered without hesitation, “Brahms“, he banged his fist on the table. “What, what?” he screamed. “How can you like this terrible composer and me at the same time? When I was your age I was a Chopinist, later I became a Wagnerite, but now I can only be a Scriabinist!” And, quite enraged, he took his hat and ran out of the café, leaving me stunned by this scene and with the bill to pay.

– Arthur Rubinstein, My Young Years (1973, p.164-165)

Retrato que Scriabin autografou em uma visita a Paris em 1907, talvez a mesma ocasião em que conheceu Rubinstein

Pleyel

.: interlúdio :. Gilberto Gil ao vivo na USP 1973 (bootleg)

As postagens deste blog são agendadas com alguns dias de antecedência. Após o épico dia 30 de outubro de 2022, não teremos palavras nossas. Deixo vocês com as palavras de Gilberto Gil há quase 50 anos. Naquela época muito distante, a polícia torturava e matava gente. Dois meses após a morte de um estudante da USP, o clima não era leve. Gilberto Gil foi procurado pelos estudantes para tocar de improviso, de graça, antes do show que faria à noite em um teatro paulista. Só com voz e violão, a maneira de João Gilberto e Jorge Ben, Gilberto Gil se soltava mais do que com banda, incorporava várias vozes, inclusive aquelas que estavam lá pra calá-lo. Essa edição não oficial (bootleg) inclui, além da música, as longas conversas com o público. Adicionamos algumas cores abaixo para diferenciar as diferentes vozes/personagens.

São Paulo, 26 de maio de 1973

[Gilberto Gil no bis, quando canta Cálice pela 2ª vez após muitos pedidos da plateia:]

– Pai, afasta de mim esse cálice
Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Deixa eu lançar um grito desumano

[Outra voz:] – Cale-se!

Que é uma maneira de ser escutado

–\\–

[Em ‘Oriente’, outra voz: canto sem palavras, cheio de intervalos microtonais como os de povos orientais que Gil certamente conheceu no exílio em Londres, do qual voltou em 72.]

[Voz de Gilberto Gil:] – Esse canto é o mesmo na Arábia Saudita. Nas terra maldita do Nordeste é o mesmo na Arábia Saudita.

[Terceira voz, séria:] – Cala a boca, rapaz.
Ah, esse cara já tá…
Acaba com isso, rapaz
Ah… você aí com esse negócio desse nhanhanha…
[…]
Que cara, que babaca, olha que palhaço… fica com esse nhénhénhé, tem nada do que ver, rapaz, isso aqui é o Brasil, rapaz, Ocidente. Civilização Ocidental, rapaz, industrial, tem nada que ver com isso não! Olha aí, rapaz, o som da gente é outro!
[….] Esse cara é doido mermo…
Vai pra Índia, entendeu… Isso aqui não é… Isso aqui é lugar de produtividade.

[Voz de Gilberto Gil:] – Mas na verdade é o mermo, o mermo lamento, o mermo canto de sofrimento.
Lá nas terra maldita do Norte
Nas terra maldita na Arábia Saudita

[Outra voz: canto sem palavras]

[Voz de Gilberto Gil:] – Se oriente, rapaz…

–\\–

[Após cantar Objeto sim, objeto não]

– Lendas e profecias, é a mesma coisa. As lendas têm caráter profético, elas muitas vezes podem já estar esgotadas no seu sentido profético, ou seja, são relativas a coisas já ocorridas, mas… outras vezes não, outras vezes as lendas são elas, em si mesmo, uma forma de ocultação, ou seja, uma forma [que] Nostradamus usava, pra não ser degolado como Giordano Bruno, pela fogueira da Inquisição, ele pegou e as coisas que ele achava que ele sabia, […] botou tudo em versos ocultos ali, e agora as pessoas pegam…

–\\–

– Pera aí que tem um rapaz aqui que quer fazer uma pergunta?

[Alguém da plateia, voz quase inaudível: … qual o papel do compositor?]

– É um problema muito pessoal, rapaz, depende muito… você quer dizer o seguinte, que existe um sistema, no qual as pessoas vivem, no qual existe a lei, no qual existem as barreiras todas, não é isso? E que o artista se vê na sua criação diante desses problemas todos, no Brasil se chama Censura, e que vai determinar o que é que é, no final é o que vai fazer a seleção, vai dizer qual é a música, qual é a arte que convém ao povo, e etc. etc. Quer dizer, mas isso é um critério pessoal, é um critério deles, quer dizer, não abrange de forma nenhuma a totalidade das coisas, haja vista no Brasil as manifestações que a gente tem frequentemente contrárias a esse tipo de atitude castrativa diante da música. Agora, isso o quê que é, isso é um problema da nossa sociedade, quer dizer, é uma das insinuações do sistema da forma que ele está hoje, no mundo, e a gente tem que enfrentar. […] procuro me comportar, sem me trair, cê tá entendendo? Quer dizer, eu procuro fazer o que eu acho que posso fazer, o que devo fazer, e tudo mais, e eu acho que o comportamento de cada um, que foi o que você perguntou no fim, “O quê que o compositor devia fazer, como ele devia se comportar”, eu não acho que deva haver padrão, cê tá entendendo? Um método, uma cartilha, uma regra para o comportamento do compositor, porque aí seria a merma coisa, seria fazer também uma censura né, do lado de cá, dizer: não, só o comportamento desse tipo é que é válido contra uma barreira qualquer, e acho que não… tem a corrida de obstáculos, o cara vem e pula por cima, o outro passa por baixo… [risos]

Gilberto Gil ao vivo na Escola Politécnica da USP, 1973:
Oriente (Gilberto Gil)
Apresentação (Gilberto Gil)
Chiclete Com Banana (Gordurinha/Almira Castilho)
Minha Nega na Janela (Germano Mathias/Doca)
Senhor Delegado (Antoninho Lopes/Jaú)
Eu Quero um Samba (Haroldo Barbosa/Janet de Almeida)
Meio de Campo (Gilberto Gil)
Cálice (Chico Buarque/Gilberto Gil)
O Sonho Acabou (Gilberto Gil)
Ladeira da Preguiça (Gilberto Gil)
Expresso 2222 (Gilberto Gil)
Procissão (Gilberto Gil)
Domingo No Parque (Gilberto Gil)
Umeboshi (Gilberto Gil)
Objeto Sim, Objeto Não (Gilberto Gil)
Ele e Eu (Gilberto Gil)
Duplo Sentido (Gilberto Gil)
Cidade do Salvador (Gilberto Gil)
Iansã (Gilberto Gil/Caetano Veloso)
Eu Só Quero um Xodó (Dominguinhos/Anastácia)
Edith Cooper (Gilberto Gil)
Back In Bahia (Gilberto Gil)
Filhos de Gandhi (Gilberto Gil) [inclui: Afoxé (Dorival Caymmi) e Oração de Mãe Menininha (Dorival Caymmi)]
Preciso Aprender a Só Ser (Gilberto Gil)
Cálice (Chico Buarque/Gilberto Gil)

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Em Buenos Aires. Qualquer semelhança é mera coincidência…

Pleyel

Frédéric Chopin (1810-1849): Valsas (Dinu Lipatti)

A pianista brasileira Guiomar Novaes costumava dizer que Chopin exige tudo do intérprete, “que precisa tocá-lo com cabeça, coração, com o pé, com a mão, com tudo”. Entre outras grandes gravações de Novaes (só de Chopin: Concertos, Noturnos, Mazurkas, Sonatas…), são também notáveis as 15 valsas que ela gravou, incluindo 13 publicadas em vida pelo polonês e duas póstumas. Nikita Magaloff, Claudio Arrau e Dang Thai Son gravaram 19 valsas de Chopin, pois incluíram um total de seis valsas póstumas. Mais o mais comum é que a coleção de valsas “principais” fique restrita a 14, foram essas as que gravaram, entre outros, A. Rubinstein, A.G. Barbosa, M.J. Pires, entre tantos outros… e Lipatti.

E aqui eu vou me contradizer: sempre tenho defendido em minhas postagens a importância de se conhecer várias interpretações das grandes obras, para percebermos as nuances e diferentes possibilidades… Mas com essas valsas, vocês vão me perdoar, mas e tenho dificuldades para ouvir qualquer um que não seja o pianista romeno Dinu Lipatti (1917-1950).

A forma como Lipatti executa as valsas de Chopin coloca a melancolia do compositor polonês sempre em segundo plano, como um sentimento presente mas sublimado pela dança. A vida é dura, as doenças, a estupidez e a maldade são dados da realidade, e na música de Chopin não temos a profunda religiosidade de Bach ou Messiaen, não temos tanta certeza da presença de um ser supremo para livrar-nos do Mal, parece que a energia deve ser buscada no fundo de nós mesmos, como mostra Lipatti ao interpretar Chopin: mesmo nas valsas em tom menor, há uma alegria interior, um agridoce e uma vontade irresistível de dançar.

E ao mesmo tempo, estamos falando de gravações do fim da curta vida de um pianista diagnosticado com uma grave leucemia: eu consigo imaginar Lipatti falando o seguinte para a plateia de seu último recital em Besançon, onde ele tocou 13 valsas de Chopin: “não sei se vou durar muito, mas sobretudo não parem de dançar!”

As Valsas de Chopin foram compostas ao longo de quase vinte anos, ao contrário dos Prelúdios ou dos Estudos que foram pensados e publicados em grupos grandes e coesos, com uma ordem bem definida, alternando tons maiores e menores. Por isso, as valsas se prestam bem ao tipo de ordenamento pessoal que fez Lipatti, começando com algumas das mais calmas e sofisticadas e terminando com as duas primeiras a serem publicadas, as mais brilhantes e alegres. Se um pianista fosse seguir a ordem cronológica estrita, seria preciso começar com aquelas que foram publicadas postumamente, algumas das quais ele compôs aos 19-20 anos e não enviou para editoras, apenas dedicando versões manuscritas a amigos e sobretudo amigas, às vezes mais do que amizades… como a “Valsa do adeus” op. posth. 69 nº 1, dedicada primeiro a Maria Wodzińska, polonesa autora do retrato abaixo, e de quem Chopin foi noivo. A família de Wodzińska impediu o casamento e, talvez por isso, Chopin dedicou anos depois a mesma valsa – em manuscritos – a Eliza Peruzzi e a Charlotte de Rothschild. Ambas foram suas alunas: Peruzzi tornou-se um grande nome do piano nos salões de Paris: em 1843 e 44, organizou soirées em que ela e Chopin tocaram os concertos do polonês em versão para dois pianos. A riquíssima Mademoiselle de Rothschild também dava algumas das recepções mais cotadas entre os intelectuais de Paris, recebendo em sua casa artistas como Chopin, Honoré de Balzac, Eugène Delacroix e Heinrich Heine. No “tempo perdido” de Proust, temos descrições de alguns desses salões parisienses sempre comandados por mulheres ricas, que bancavam o jantar e os drinques, reunindo cuidadosamente, como jardineiras, uma flora diversificada de artistas, aristocratas endividados, contadores de piadas, burgueses de gosto conservador e raros burgueses de gosto mais exótico.

Frédéric Chopin (1810-1849):
14 Valses

Dinu Lipatti, piano
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Maria Wodzińska foi a autora desta aquarela, em 1835, ano da Valsa op. 69 nº 1

E para completarmos o momento “túnel do tempo”, trago um outro intérprete da tradição francesa de se tocar Chopin, tradição que inclui também os imensos nomes já citados de Novaes e Magaloff, que estudaram, ambos, com o francês Isidor Philipp. Já Samson François (1924-1970) e Dinu Lipatti, que aliás eram da mesma geração, ambos estudaram com Alfred Cortot. Chopin viveu seus últimos 18 anos em Paris, então tanto Philipp como Cortot conheceram pessoas que conheceram Chopin, se inscrevendo em uma tradição oral e performática de ideias sobre como a música de Chopin devia soar. Nos últimos anos, com o famoso Concurso Chopin de Varsóvia, tem sido mais destacado o lado polonês do compositor, mas não tenho dúvidas de que a metade francesa por adoção é tão importante quanto a metade polonesa de berço.

As mazurkas por Samson François, assim como as valsas por Dinu Lipatti, são sobretudo miniaturas musicais dançantes: não temos aqui a seriedade das interpretações de Michelangeli. O tempo rubato às vezes pode soar um pouco exagerado, como é o caso também nas gravações de Cortot, mas em geral me agrada bastante a forma como François vai se expressando por meio de fraseados elegantes e dançantes. Embora não me faça esquecer totalmente as outras gravações como acontece quando eu ouço um único segundo de Lipatti.

Frédéric Chopin (1810-1849):
Sonates nº 2 & 3
51 Mazurkas

Samson François, piano
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Frédéric Chopin (desenho a lápis por George Sand, 1841)

Pleyel

Frédéric Chopin (1810-1849): 4 Scherzi, Berceuse, Barcarolle (Maurizio Pollini)

Após já ter feito gravações antológicas dos Estudos, Prelúdios e Polonaises de Chopin, Pollini passou boa parte das décadas de 1970 e 80 dedicado a outros compositores, mostrando não ser pianista de um compositor só. Foram discos de Beethoven, Schumann e Schoenberg que muita gente, incluindo o Sr. PQP Bach, coloca lá no topo das gravações desses compositores. Em 1986 Pollini voltou a gravar o polonês (Sonatas 2 e 3) e em 1990 gravou este álbum com os 4 Scherzos – ou Scherzi em italiano – e duas obras da fase final do compositor. Chopin é muito diferente de Beethoven e tinha uma admiração muito menor pelo renano do que por Mozart, mas o fato é que ambos (mais do que Mozart) têm um certo estilo tardio, estilo que, mutatis mutandi, se caracteriza por obras inovadoras, um tanto pensativas e equilibradas, em oposição ao romantismo exacerbado dos Scherzos. Estilo tardio que se encaixa muito bem nas mãos de Pollini.

A barcarola é um tipo de ritmo popular no século XIX, com um compasso ternário composto (6 ou 12 tempos por compasso) e baseada nas canções dos gondoleiros de Veneza que moveram as imaginações românticas. Mendelssohn, Offenbach e muitos outros contemporâneos de Chopin também compuseram barcarolas. Em uma carta endereçada a sua família que permanecia na Polônia, Chopin escreveu em 12 de dezembro de 1845:

“Eu pretendo terminar em breve uma sonata para violoncelo, uma barcarola e uma outra coisa* que não sei ainda como nomear… Me perguntam com frequência se eu darei novos concertos. Eu duvido.” (*referência à Polonaise-Fantaisie, Op. 61)

Essas três peças citadas na carta – Barcarolle, Polonaise-Fantaisie, Sonata para Violoncelo e Piano – seriam as três grandes obras de peso do seu período maduro, que também tem algumas obras mais curtas como noturnos e mazurkas e a Berceuse. Entre as características desse último período de Chopin, se destacam os ornamentos e passagens cromáticas que se emancipam da harmonia mais tradicional dos períodos anteriores. As sutilezas harmônicas desse último Chopin antecipam muito da harmonia de Fauré ou Debussy. Outra característica da Barcarolle, da Polonaise-Fantaisie e da Berceuse (mas não da Sonata para cello ou da 3ª Sonata para Piano, também tardia) é a vontade de ir além das formas que ele tinha estabelecido para si próprio como as formas Scherzo, Ballade e Polonaise. Na Barcarolle, portanto, o ritmo das águas serve sobretudo para um passeio muito livre com incontáveis transições harmônicas e ornamentos inesperados. A Berceuse (canção de ninar, em francês) é uma série de variações sobre um baixo constante, também com rica ornamentação, e na Polonaise-Fantaisie o ritmo típico da dança polonesa aparece na seção central mais como uma lembrança difusa do que como uma dança que estruture a peça.

Após compor essas obras longas que certamente lhe deram muito trabalho, Chopin viveria mais dois anos sem conseguir se dedicar a composições de tanto fôlego, por dois motivos: a piora da doença pulmonar que o fazia cuspir sangue e a belicosa separação com George Sand que o colocou em maus lençóis financeiros, levando-o a fazer uma longa viagem pelo Reino Unido onde finalmente faturou um pouco com seu já célebre nome, em muitas soirées pianísticas em casas ricas e alguns últimos concertos que lhe eram especialmente cansativos. Uma lista com a maioria desses concertos privados e públicos pode ser encontrada aqui, dos quais listamos alguns:

16 de fevereiro de 1848: seu último concerto público em Paris. No repertório, além de estudos, prelúdios, mazurkas e valsas, também a Berceuse, a Barcarolle, a Sonata para Violoncelo e Piano e o Trio em Mi maior de Mozart.

Primavera e verão de 1848: Chopin viaja pela Inglaterra e Escócia. Em carta, diz: “Não toquei na residência da rainha, mas toquei para ela na casa do Duque de Sutherland”. Naquela noite, além de suas obras, ele tocou Mozart e acompanhou três cantores. Também tocou para a Sra. Rothschild, que disse que ele cobrava muito caro. Em cartas para seu amigo polonês Grzymała, Chopin escreveu: “A Philharmonia ofereceu um concerto comigo, mas eu não quero tocar com orquestra” (maio de 48); “Se não estivesse cuspindo sangue por vários dias seguidos e fosse mais jovem, talvez poderia começar uma nova vida aqui.” (junho de 48)

Em outra carta, ele descreve para sua família: “Se Londres não fosse tão escura e com tanto cheiro de carvão e fog, eu teria aprendido inglês, também. Mas esses ingleses são tão diferentes dos franceses… eles colocam preço em tudo, gostam de arte porque é um luxo; bons corações, mas vejo como as pessoas podem se tornar máquinas. Se eu fosse mais novo, poderia me render e me tornar uma máquina, teria dado concertos por todos os lados e tocar as coisas mais escandalosas e sem gosto (mas apenas por dinheiro!); mas agora…”

Meses depois, após um concerto no Manchester’s Concert Hall, um crítico considera que “sem dúvida, ele toca de forma extremamente refinada – talvez até demais, e mereceria o termo ‘finesse’.” Enfim, após essa longa turnê para levantar algum dinheiro, Chopin voltou para Paris em novembro de 1848 mais doente do que antes, e passou seus últimos meses na companhia de amigos como Solange Clésinger (filha de George Sand e um dos pivôs da briga com a mãe) e o pintor Eugène Delacroix. Sem forças para criar obras de fôlego, Chopin compôs apenas algumas curtas mazurkas e valsas. Em 1849, Delacroix anota em seu diário mais de uma visita a Chopin já bastante doente, uma delas em um passeio de carruagem pelos Champs Elysées: “Quando falamos de música, isso o reanimou. Eu lhe perguntei sobre o que estabelecia a lógica na música. Segundo ele, são a harmonia e o contraponto; de forma que a fuga é como a lógica pura na música, e estudar a fuga é conhecer o elemento racional da música.” Assim como Beethoven, portanto, Chopin se preocupava com o contraponto em seus últimos anos e, sem dúvida, ainda folheava sua edição do Cravo Bem Temperado de Bach.

Chopin por Eugène Delacroix (1838)

A Barcarolle de Chopin era uma obra favorita nos programas dos grandes mestres Arthur Rubinstein e Vladimir Horowitz. Outros grandes intérpretes dessa obra já apareceram neste blog, como Nikita Magaloff e Alexei Lubimov. Pollini, em sua gravação, utiliza com frequência um tempo rubato muito elegante, ao mesmo tempo em que suas duas mãos são muito equilibradas e cuidadosas com todos os fraseados e sutilezas harmônicas. Ou seja, por um lado sua interpretação é cerebral, atenta ao tipo de lógica racional que aparece no diálogo de Chopin com Delacroix, mas o rubato está ali de forma que o movimento das águas e da gôndola veneziana faz um vai-e-vem diferente do tempo rígido do relógio.

Frédéric Chopin (1810-1849):
1. Scherzo No. 1, Op. 20 em Si menor
2. Scherzo No. 2, Op. 31 em Si bemol menor
3. Scherzo No. 3, Op. 39 em Dó sustenido menor
4. Scherzo No. 4, Op. 54 em Mi maior
5. Berceuse Op. 57 em Ré bemol maior
6. Barcarolle Op. 60 em Fá sustenido maior

Maurizio Pollini, Piano
Recording: München, Herkulessaal, 1990

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Os poetas Homero, Ovídio, Estácio e Horácio saúdam Dante [Chopin] guiado pela mão por Virgílio (Delacroix, c.1845)
Por volta de 1845, Delacroix pintou a cúpula central do Palais de Luxembourg em Paris, atual Senado francês. Os biógrafos asseguram que Chopin serviu de modelo para Dante, guiado por Virgílio. Trata-se, portanto, da segunda vez em que o pintor representa seu grande amigo, após o famoso retrato de 1838.

Pleyel

Sergei Prokofiev (1891-1953): Sinfonia Nº 6, Op.111

“Os dolorosos resultados da guerra”, disse Prokofiev sobre sua 6ª sinfonia.

O primeiro movimento é tenso em alguns momentos, delicado em outros. Às vezes o naipe de metais parece interromper o andar da carruagem, o que traz à memória as sinfonias de Shostakovich (os dois devem ter se influenciado mutuamente, mas Shosta deve ter imitado mais seu colega 15 anos mais velho com mais frequência do que o inverso). Aliás, Shostakovich foi uma das cerca de 30 pessoas no funeral de Prokofiev enquanto a multidão chorava por Stalin.

O longo movimento lento (“largo“) segue o clima do anterior e deixa tudo ainda mais enigmático, como se Prokofiev estivesse jogando sem abrir as cartas que tem na mão: elas vão aparecendo uma por uma e não vemos a mão inteira. No último movimento, com interrupções de metais que lembram Shosta mas dessa vez mais circenses e menos sérias, novamente o clima é de enigma… e o fim da sinfonia é sui generis, porque Prokofiev termina do jeito que outros começam. Senão, vejamos…

A 6ª de Prokofiev termina com percussões enunciando o mesmo tema rítmico da 5ª sinfonia de Beethoven. Se a 5ª de Mahler também começava com essa célula rítmica de curto-curto-curto-longo, como uma pergunta que inicia as discussões, nesta 6ª de Prokofiev a pergunta fica no fim, obviamente sem resposta. Deve ser por isso que – nos ensina a wikipedia em inglês – durante os ensaios para a primeira apresentação, Prokofiev descreveu a coda (fim) da sinfonia como “questões colocadas para a eternidade”.

Para uma gravação ao vivo desta sinfonia que enfatiza os aspectos rítmicos e essa “pergunta final”, confira neste blog da concorrência. Mas esta interpretação aqui, com a orquestra de Köln e o maestro russo Kitajenko, tem outra proposta igualmente válida, mais lenta e pensativa no movimento central e mais pesada, brutalista, nos outros movimentos.

Sergei Prokofiev: Symphony No. 6 in E flat minor, op. 111
I. Allegro moderato
II. Largo
III. Vivace

Gürzenich-Orchester Köln
Dimitri Kitajenko
Recorded: Kölner Philharmonie, 12/2007

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PS: Querem ter uma ideia do tramanho do repertório sinfônico russo e soviético?
Desde a década de 1990, quando saiu da Rússia em desintegração, Dimitri Kitajenko construiu uma sólida reputação na Alemanha, Suíça e Coreia do Sul regendo praticamente só música russa e soviética (não estritamente russa, pois inclui gente como o armênio Khachaturian). Em uma entrevista, ele disse:

Em Moscou [até 1990], eu conduzi as obras sinfônicas completas de Richard Strauss e também a estreia russa da oitava de Mahler. Mas hoje, as orquestras me chamam principalmente para o repertório russo. Elas querem um intérprete autêntico dessa música. E eu devo dizer que uma grande parte do repertório russo – pense nos Sinos de Rachmaninoff, em Ivan o Terrível de Prokofiev, nas sinfonias de Scriabin… – é ainda pouco conhecida na Europa. Talvez seja uma certa missão para mim reger esse tipo de música e torná-la mais popular.

D. Kitajenko e F.X. Roth, nos camarins em 2016 após uma apresentação da orquestra de Köln da qual o russo é o maestro honorário e o francês o maestro principal

Pleyel

Jean-Philippe Rameau (1683-1764): Pièces de Clavecin en Concerts (Les Timbres)

Inspirado pelas peças para cravo com acompanhamento de violino (6 pièces de clavecin en sonates) publicadas por Mondonville em 1738, Rameau decidiu desenvolver essa ideia em suas peças para cravo com dois acompanhantes: violino ou flauta nos agudos e viola da gamba nos graves. O violino sola, mas sola menos do que nas sonatas italianas (onde o cravo é mero acompanhante fazendo baixo contínuo), a viola passa o tempo todo de uma linha de baixo para linhas melódicas mais agudas, o cravo aparece no título mas não se sobrepõe sobre os colegas. A obra é exigente no plano técnico, com os três instrumentos dialogando de igual para igual: poucas gravações conseguiram dar esse destaque igual para as três partes, esta gravação pelo conjunto belga Les Timbres (2013) foi uma das mais elogiadas pela crítica especializada nesse sentido não só da performance mas também da delicada tarefa de gravar e mixar tudo sem que um instrumento abafe o outro.

Outra característica dessa e outras obras de Rameau é o espírito dançante, teatral, sorridente, diferente do tipo de seriedade de outros barrocos que já davam alguns passos iniciais no espírito romântico e sentimental (penso aqui em C.P.E. Bach e mesmo em algumas obras de seu pai como o Concerto para Cravo em ré menor). Os títulos dos movimentos, como “La timide, Les Tambourins, L’Indiscrète” (A Tímida, Os tamborins, A indiscreta) ou mesmo a autobiográfica “La Rameau” já deixam claro que o clima é sempre bem humorado, com a grande complexidade do diálogo entre os três instrumentos aparecendo apenas em uma audição mais atenta, pois na primeira impressão o que se destaca – sobretudo nesta gravação por Les Timbres – é o tom de leveza constante. Música para esquecer por uma hora e nove minutos todas as tristezas, as contas a pagar e os deputados do centrão que se reelegeram.

Jean-Philippe Rameau (1683-1764): Pièces de Clavecin en Concerts (Paris, 1741)

1-3. Premier Concert
1 La Coulicam: Rondement
2 La Livri: Rondeau Gracieux
3 La Vezinet: Gaiment, sans vîtesse

4-7. Deuxième Concert
1 La Laborde: Rondement
2 La Boucon: Air Gracieux
3 L’Agacante: Rondement
4 Menuets I & II

8-10. Troisième Concert
1 La Poplinière: Rondement
2 La Timide: Rondeaux gracieux I & II
3 Tambourins I & II en Rondeau

11-13. Quatrième Concert
1 La Pantomime: Loure vive
2 L’Indiscrète: Rondeau, Vivement
3 La Rameau: Rondement

14-16. Cinquième Concert
1 La Forqueray: Fugue
2 La Cupis: Air tendre
3 La Marais: Rondement

Yoko Kawakubo – violon de Pierre Jaquier, fait à Cucuron (France) d’après des instruments crémonais do XVIIIe siècle
Myriam Rignol – viole de gambe à 8 cordes de Tilman Muthesius faite à Potsdam (Allemagne) d’après un instrument de Benoist Fleury (Paris, 1759)
Julien Wolfs – clavecin fait par Jean-Luc Wolfs-Dachy à Lathuy (Belgique) d’après un instrument de Henri Hemsch (Paris, 1751)
Enregistré: novembre 2013 à Beaufays (Belgique)

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Escultura de Rameau em 1760, quando o compositor se aproximava dos 80 anos

Pleyel

Peter Maxwell Davies (1934-2016), Malcolm Williamson (1931-2003), Jonathan Harvey (1939-2012): Obras para órgão (Kevin Bowyer)

Sir Peter Maxwell Davies, the Master of the Queen’s Music, has said that ‘God Save the Queen’ is “very boring” and should be replaced with a new “more stirring” anthem, which he’s offered to write. “The national anthems of other countries, such as France and Germany, are a lot more impressive and tend to have a more galvanising effect on their peoples”, he told The Daily Telegraph. “Benjamin Britten’s arrangement of our anthem was probably the best there has ever been, but he didn’t honestly have a lot to work with.”
Following his victory at the German Grand Prix on Sunday, racing driver Lewis Hamilton also complained about the national anthem, saying it was much shorter than other nation’s anthems. He wanted his moment of glory on the podium to last longer than the 44 seconds it took to play one verse of ‘God save the Queen’. Felipe Massa, a Brazillian race driver, gets to savour Francisco Manuel da Silva’s composition for two minutes, substantially longer than the British anthem. (The Telegraph, 2011)

Max Reger, o maior compositor para órgão do início do século XX, colocava Bach em um pedestal. Alguns modernistas dos anos 1920, por outro lado, tinham a necessidade de esculhambar todos os antecessores para poderem se afirmar. Na música de alguns grandes compositores do fim do século XX, o confronto entre velho e novo ganha outros contornos. Messiaen, por exemplo, nunca fez música neobarroca ou neoclássica, mas sua linguagem única devia muito ao canto gregoriano e aos sons atemporais da natureza: pássaros, córregos, vento…

Neste disco de hoje temos um compositor que nos anos 1960 era considerado iconoclasta e irônico – Em Darmstadt [a Meca do serialismo dos hiper-sérios Boulez e Stockhausen], eu caí em disgraça ao rir em um ou dois concertos”, disse ele – e que em 2004 foi nomeado Master of Music da rainha, cargo chapa-branca que não o impediu de falar que achava o hino God Save the Queen muito chato ou monótono, a depender da tradução. Maxwell-Davies é alguém que equilibra e faz dialogar o canto coral e as dissonâncias, criando um efeito de humor. Um vanguardista que foi se radicar no remoto norte da Escócia. Ou, usando uma palavra bem inglesa: um excêntrico.

As Three Organ Voluntaries de Maxwell Davies se baseiam em melodias escocesas do século XVI. A primeira das três (Salmo 124) é apresentada de forma singela pelos graves dos pedais e, quando parece que tudo vai correr dentro dos padrões, entra um outro registro agudo, lembrando sinos totalmente dissonantes, enquanto os graves continuam cantando o salmo, tudo isso coexistindo em curiosa harmonia até o final. As outras duas melodias (O God Abufe [grafia escocesa para o inglês above] e All Sons of Adam) não convivem com tanta dissonância assim, mas há sempre um registro com som estranho ou uma nota ‘fora do lugar’ para quebrar as expectativas neorrenascentistas.

Na sonata para órgão, composta em 1982, cada um dos quatro movimentos se desenvolve a partir de um mesmo fragmento de cantochão cantado tradicionalmente na quinta-feira santa. O primeiro movimento se resume a alguns segundos de melodia cantabile, o segundo é um contraponto um pouco mais longo, o terceiro, uma meditação lenta e o último, uma toccata virtuosa em que a dissonância e os centros tonais se alternam. Esse procedimento é o mesmo das Partitas Corais e Fantasias Corais de Böhm, Buxtehude e Bach: primeiro a apresentação do canto sacro, depois as variações com grau crescente de complexidade e de liberdade.

Desde 1625 já existia o cargo então chamado Master of the King’s Musick – sim, com k – , ocupado por uma só pessoa de cada vez, assim como seu  equivalente literário, o título de “Poet Laureate”. O australiano Malcolm Williamson foi o antecessor de Maxwell Davies no cargo: segundo alguns críticos, a nomeação teve motivos menos musicais e mais de manutenção do soft power inglês sobre as ex-colônias do Commonwealth (a tristeza de australianos e canadenses com a morte recente da rainha lembra o clássico livro A Servidão Voluntária, não é? E o que dizer do luto do pessoal da Barra da Tijuca? Deixa pra lá…)

O cargo foi ocupado por alguns compositores interessantes e também uma penca de ingleses pomposos e tediosos como Bax e Elgar. Williamson foi o último a ser nomeado até a morte (a Rainha Elizabeth II redefiniu as expectativas sobre “até a morte”) e, a partir de Maxwell Davies, o cargo passou a ter a duração fixa de dez anos. Desde 2014 é ocupado por Judith Weir, a primeira mulher a receber esse título.

Jonathan Harvey (1939-2012):
1. Fantasia (8:49)
2 Laus Deo (3:02)

Malcolm Williamson (1931-2003):
3-4. Two Epitaphs For Edith Sitwell
No. 1 Adagio (3:090
No. 2 Adagio (2:09)
5. Vision Of Christ-Phoenix (9:02)

Peter Maxwell Davies (1934-2016):
6. Fantasia on O Magnum Mysterium (14:16)
7-10. Three Voluntaries, Op. 61
I. Psalm 124 (after David Peebles) (3:04)
II. O God Abufe (after John Fethy) (1:16)
III. All Sons Of Adam (2:09)
10. Reliqui Domum Meum (3:19)
11-14. Organ Sonata
I. Movement 1 (0:41)
II. Movement 2 (1:54)
III. Movement 3 (13:50)
IV. Toccata (9:01)

Kevin Bowyer, organist
Recorded at the Marcussen Organ – Chapel of Saint Augustine, Tonbridge School, Kent, England
Released: 1997

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Sir Peter Maxwell Davies, Master of the Queen’s Music, sobre o hino nacional britânico: “é muito chato”

Pleyel

Frédéric Chopin (1810-1849): 24 Prelúdios, op. 28 (Guiomar Novaes)

Nas postagens do colega Ranulfus, de tempos do defunto rapidshare e que repostamos há alguns dias com links novos, ele trazia os Noturnos, Estudos, duas Baladas e outras pérolas de Chopin e dizia que faltavam os Prelúdios  por Guiomar Novaes. De fato até hoje essa importante gravação, sua primeira pela gravadora Vox, ainda em Mono, parece nunca ter sido editada em CD. Várias são as digitalizações que se encontra no Youtube ou em outros lugares, tanto do LP como de gravações ao vivo de recitais em que Guiomar tocou todos os prelúdios ou uma seleção com alguns, por exemplo aqui na Sala Cecília Meireles, Rio de Janeiro, em um dos últimos anos de sua carreira.

Todo(a) pianista tem fotos com a mão no rosto, já repararam?

Chopin foi sempre o compositor mais presente nos recitais de Guiomar Novaes desde a década de 1900 até a de 1970 e é possível que os prelúdios tenham sido a obra que ela mais tocou ao vivo em sua longa carreira. (Antes de sua despedida para estudar em Paris em 1909, Guiomar já tinha se apresentado publicamente 51 vezes só na cidade de São Paulo, como nos informa F.P. Binder, também responsável por constatar a presença constante de Chopin no seu repertório desde 1902 quando a criança-prodígio se apresentou com oito anos.)

Pois hoje é o dia em que esses Prelúdios por Guiomar entram aqui no acervo deste blog, pois finalmente encontramos uma digitalização satisfatória: pouco chiado, som rico do piano embora, é claro, não dê pra esquecer que é uma gravação de mais de 70 anos atrás. E o que comentar sobre esse repertório que cai como uma luva nas mãos da pianista? É difícil falar alguma coisa além do óbvio: atenção cuidadosa aos detalhes da partitura sem segurar o andamento para isso (o 15º Prelúdio, “gota d’água”, de andamento sostenuto, ela faz em menos de 5 min. sem jamais soar correndo), cantabile admirável tanto nas melodias da mão direita como na mão esquerda que muitos críticos destacavam como seu maior trunfo, enfim uma gravação IM-PER-DÍ-VEL. Deixo vocês com um resumo das notas do LP, por Harold Schonberg:

Os Prelúdios de Chopin têm um esquema bachiano. Em uma carta para a condessa polonesa Delfina Potocka, Chopin escreveu “Temas estão caindo sobre mim como enxames de abelhas. Eu não paro de anotá-los. Você poderia rir desses curtos fragmentos, mas eu decidi juntá-los; eles formarão Prelúdios. Só não sei se vou conseguir juntar quarenta e oito deles como Bach. Acredito que não chegarei a esse número, que é demais para minha impaciência polonesa. O fato de que eles são simples e curtos não significa que não me deram muito trabalho. Você não acreditaria que no outro dia eu passei mais tempo neles do que na Balada [nº 1]. … Pretendo colocá-los no mundo como Prelúdios embora não sejam páreo para os de Bach, muito menos serão seguidos por fugas, que não seriam tarefa para mim.”

Então é evidente que Chopin tinha Bach em mente. Outros aspectos devem ser lembrados: assim como no Cravo Bem Temperado (que Chopin tocava e reverenciava), os vinte e quatro Prelúdios cobrem cada um dos tons maiores e menores. Além disso o primeiro, em dó maior, é um elogio implícito ao primeiro de Bach. Chopin trabalhou bastante tempo nesses prelúdios: a publicação foi em 1839, mas a carta citada mostra que os primeiros entre eles são contemporâneos da Balada em sol menor, de 1835.

Fotografia de Chopin de 1846 ou 47. O original foi provavelmente destruído na II Guerra Mundial. Esta cópia foi encontrada na década de 80.

Em outra carta para sua amiga Delfina Potocka, Chopin escreveu: “Bach nunca vai ficar velho (…) Se alguma época negligenciar Bach, isso ficará evidenciado em superficialidade, estupidez e mal gosto.”

Alguns biógrafos inventaram histórias sentimantais sobre esses Prelúdios em conexão com George Sand e sua viagem a Mallorca com o compositor. Chopin talvez tenha levado as obras para poli-las na viagem, mas em 1838, quando o casal passou o outono e inverno na ilha mediterrânea, pouca coisa restava a completar.

Harold Charles Schonberg (Nova Iorque, 1915 – 2003), autor das notas acima que você pode conferir na contracapa do LP, escreveu ainda em seu livro The Great Pianists que Novaes foi a mais importante pupila de Isidor Philipp, e devemos lembrar que a lista de alunos daquele professor incluiu pianistas como Youra Guller, Yvonne Loriod, Nikita Magaloff e Federico Mompou. Contemporâneo e amigo de Debussy, Philipp se formou com pianistas que conheceram Chopin, além de ser um pupilo de Saint-Saëns e, em geral, propor um Chopin menos exageradamente romântico do que o de outros franceses como Alfred Cortot. (Reparem que Chopin passou os últimos 18 anos quase todos em Paris e deixou mais alunos e amigos lá do que na Polônia…)

Esse tipo de genealogia Chopin-Philipp-Novaes explica um pouco da arte de Guiomar, mas só um pouco, porque como qualquer grande intérprete, ela tinha ideias próprias, que se formavam menos como ideias racionais – ela não gostava de dar entrevistas, muito menos de escrever suas opiniões para publicar – e mais como ideias musicais mesmo, de aparência espontânea mas fruto de longo estudo e reflexão, ideias que sempre soavam adequadas às obras que tocava, de forma que o mesmo H. Schonberg escreveu ainda que “parte do seu apelo era a sua naturalidade no teclado. Ela era um desses poucos pianistas que dava a impressão de que o instrumento era uma extensão dos seus braços. Um estilo mais natural, relaxado, sem esforço aparente não podia ser encontrado em mais ninguém.” Nelson Freire, como já contei aqui, tinha uma história engraçada: um fã chegou para Guiomar maravilhado com a poesia de seu Chopin, as cores infinitas de seu Debussy e perguntou como ela fazia tudo aquilo. Guiomar simplesmente olhou para ele e disse: “Está tudo escrito!” Como se fosse só pegar as partituras e ler… Ranulfus chamou isso de milagre, eu chamo de mistério* da simplicidade.

Frédéric Chopin (1810-1849): 24 Préludes, Op. 28

I. Agitato
II. Lento
III. Vivace
IV. Largo
V. Allegro molto
VI. Lento assai
VII. Andantino
VII. Molto agitato
IX. Largo
X. Allegro molto
XI. Vivace
XII. Presto
XIII. Lento
XIV. Allegro
XV. Sostenuto
XVI. Presto con fuoco
XVII. Allegretto
XVIII. Allegro molto
XIX. Vivace
XX. Largo
XXI. Cantabile
XXII. Molto agitato
XXIII. Moderato
XXIV. Allegro appassionato

Piano: Guiomar Novaes (1894-1979)
LP VOX VL 6170 (1950)
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*Mistério no sentido etimológico: do grego antigo mystērion, de mystēs, “aquele que foi iniciado”, por sua vez de myein, “fechar a boca”, origem do português “mudo”; provavelmente relacionado a rituais praticados apenas por iniciados, que deviam guardar silêncio a respeito com pessoas não iniciadas; fora desses ritos pagãos, seguiu no grego e latim medieval dos teólogos significando verdades aprendidas por revelação divina ou intuição, cujo significado preciso seria inexplicável. Para o Papa Francisco, “O mistério da Santíssima Trindade é um imenso mistério, que excede a capacidade de nossas mentes, mas que fala para o coração”

O Instituto Piano Brasileiro tem mais de 40 retratos de Guiomar Novaes: quase sempre de cabelos curtos e muitas vezes com colares elegantes

Pleyel

.: interlúdio :. Discografia completa de Alice Coltrane (1937-2007) com Pharoah Sanders (1940-2022)

O saxofonista Pharoah Sanders caminhou para uma outra dimensão ontem, na Califórnia, aos 81 anos, cercado de amigos e familiares. Além uma longa carreira solo dedicada ao jazz, ele também colaborou com muita gente, desde o último grupo de John Coltrane (de 1965 a 67) até um álbum que muitos consideraram o melhor de música instrumental de 2021, com a London Symphony Orchestra e o DJ/instrumentista/compositor Floating Points, álbum que você encontra no link abaixo ou no Spotify, Tidal e similares.

Nosso foco aqui hoje, porém, se volta para uma grande, imensa dupla de instrumentistas, aquela formada por Alice Coltrane e Pharoah Sanders, dois seres humanos que parecem ter canalizado as mesmas energias musicais enraizadas em referências pan-africanas pinçadas com muito ecletismo – com espaço para antigo Egito, yoga, hinduismo… – e sobretudo preocupadas com um tipo de expressão musical que desafia os rótulos, talvez porque o tipo de união mística que eles buscavam vai além das divisões nossas de cada dia… aliás, Expression (1967) é o nome do último álbum gravado por John Coltrane com seu último quinteto, que incluía Alice e Pharoah. Após o sucesso do álbum Karma (1969) com a longa e mística gravação The Creator has a master plan, o nome de Sanders aparece na capa do álbum Journey In Satchidananda que já postamos aqui:

https://pqpbach.ars.blog.br/2022/03/26/interludio-alice-coltrane-1937-2007-journey-in-satchidananda-1970/

Mas, mesmo sem o nome na capa, Pharoah tem uma participação importantíssima também em dois outros álbuns de estúdio de Alice Coltrane, além de uma gravação de rádio ao vivo no Carnegie Hall. Sua tendência a explorar o limite dos agudos do sax (tenor?) permite identificá-lo facilmente quando ele toca com outros saxofonistas como Joe Henderson e Archie Shepp. Na biografia de Sun Ra – pioneiro do afrofuturismo, corrente que aliás se aplicaria a Sanders se este fosse do tipo que se encaixa em qualquer rótulo – consta que foi aquele pianista que convenceu o jovem Farrell Sanders a usar o nome Pharoah. E mais não digo, porque o importante mesmo é ouvir essa música que vai muito além dos conceitos e definições. Deixo apenas as palavras de mais algumas pessoas que também foram profundamente impactadas pelo respirar tão especial de Pharoah Sanders:

“What I like about him is the strength of his playing, the conviction with which he plays. He has will and spirit, and those are the qualities I like most in a man.” – John Coltrane
(“O que eu gosto nele é a força, a convicção com que ele toca…” – John Coltrane)

“Pharoah Sanders, Whose Saxophone Was a Force of Nature, Dies at 81” – The New York Times

“Even at his most beatific, Pharoah Sanders brings a sense of holy destruction to his playing. The Creator has a master plan, but the journey isn’t always gentle.” – Jason P. Woodbury
(“Mesmo no seu momento mais espiritual, Pharoah Sanders traz um elemento de destruição sagrada quando toca. ‘The Creator has a master plan’, mas a jornada não é sempre tranquila.” – Jason P. Woodbury)

“Pharoah is more abstract, more transcendental.” – Alice Coltrane
(“Pharoah é mais abstrato, mais transcendental.” – Alice Coltrane)

“Em suas obras com Alice Coltrane e Phyllis Hyman, ele tocou com mulheres negras por décadas. Como um par e colaborador. Não são todos que veem as mãos de Alice Coltrane no desenvolvimento do free jazz, jazz cósmico/espiritual, fusion… ela era um par perfeito para os ouvidos de Pharoah e John. Eles ouviam Alice.” – Lynnée Denise (@lynneedenise)

Alice Coltrane – A Monastic Trio (1968, 1998 remaster)
1. Lord, Help Me to Be
2. The Sun
3. Ohnedaruth
4. Gospel Trane
5. I Want to See You
6. Lovely Sky Boat
7. Oceanic Beloved
8. Atomic Peace
9. Altruvista

Tracks 1-3: Ben Riley — drums, Jimmy Garrison — bass, Pharoah Sanders — tenor saxophone, bass clarinet, flute, Alice Coltrane — piano
Tracks 4-9: Rashied Ali — drums, Jimmy Garrison — bass, Alice Coltrane — piano, harp
Recorded at the Coltrane home studio, Dix Hills, New York, 1968

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – mp3 320kbps
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Alice Coltrane – Ptah – The El Daoud (1970)
1. Ptah, the El Daoud
2. Turiya and Ramakrishna
3. Blue Nile
4. Mantra

Alice Coltrane — harp (track 3), piano
Pharoah Sanders — tenor sax (right channel), alto flute (track 3), bells
Joe Henderson — tenor sax (left channel), alto flute (track 3)
Ron Carter — bass
Ben Riley — drums
Recorded at the Coltrane home studio in Dix Hills, New York on 26 January 1970

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Pharoah Sanders e Joe Henderson

Alice Coltrane – Carnegie Hall ’71
1. Africa (28:35)

Live at the Carnegie Hall, New York, February 21, 1971
FM radio soundboard

Alice Coltrane – piano, harp
Pharoah Sanders – ts, ss, fl, perc, fife
Archie Shepp – ts, ss, perc
Jimmy Garrison – b
Cecil McBee – b
Clifford Jarvis – d
Ed Blackwell – d
Tulsi – tamboura
Kumar Kramer – harmonium

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BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – flac

Pharoah Sanders, Frankfurt, 2013

Pleyel

Lars Vogt (1970-2022)

Uma triste e inesperada notícia: o falecimento do pianista Lars Vogt, aos 51 anos, diagnosticado com um câncer em 2021. Há alguns anos PQP Bach tinha dito sobre ele: “O pianista Lars Vogt tem o rosto desenhado a facão, mas tem a alma e emite sons de um anjo. Ao menos quando senta no piano e usa os dedos.”

Já Vassily havia listado sua gravação das sonatas para violino e piano de Schumann, com Christian Tetzlaff, como uma das melhores gravações junto com a de Argerich/Kremer. E René elogiou as gravações dos concertos 1 e 2 de Beethoven com Simon Rattle, lá em 1994 no início da carreira de Vogt: um jovem pianista com um jovem maestro tocando os concertos do jovem Beethoven.

Guia de Gravações Comparadas – Honegger (1892-1955): Sinfonias nº 2 e 3 (Ansermet, Munch, Fournet, Jansons)

Nascido na França e filho de pais suíços, Arthur Honegger estudou no Conservatório de Zurich (1910-11), imerso na tradição alemã do contraponto e na música mais moderna de Wagner, R. Strauss e Reger. Após se mudar para Paris (onde foi aluno de Widor e seguiu estudando contraponto), ele escreveria em 1915 em uma carta para seus pais: minhas simpatias pela nova música francesa crescem a cada dia. Conheci e apreciei Reger e Strauss na Suíça, e continuo a gostar deles, mas percebi que compositores como Debussy, Dukas, d’Indy, Florent Schmitt e outros são mais novos e mais originais, e sobretudo têm mais sentimentos do que os alemães modernos.

A influência de Debussy e de Fauré é evidente na linguagem harmônica de Honegger, mas sua música costuma ter muito mais passagens em contraponto e imitação do que a da maioria dos franceses, provavelente por influência de Beethoven e Bach. Em 1925, Honegger escreveu: Pode-se facilmente encontrar Bach na origem de todas as minhas obras.

Entre essas obras, se destacam os três Movimentos Sinfônicos da década de 1920, incluindo Pacific 231, que imita o movimento de um trem (obra que estreou no Rio de Janeiro ainda em 1929 e que Villa-Lobos certamente ouviu, no Rio ou em Paris, antes de compor o seu Trenzinho do Caipira das Bachanias nº 2, de 1930-34). Nos anos 1930, não conseguindo emplacar muitos sucessos nas salas de concerto, Honegger compôs música incidental para rádio, música de cabaré, música de partido de esquerda e 24 trilhas sonoras de filmes. Finalmente em 1938 ele voltou a fazer sucesso como compositor sério, com a estreia do oratório Joana d’Arc na fogueira, a partir do libreto do poeta Paul Claudel. No fim da década de 30 e sobretudo na de 40, Honegger compôs suas Sinfonias nº 2, 3, consideradas por muitos como suas obras-primas. Na 3ª e na 4ª, para orquestra sinfônica, passagens em contraponto alternam com uma orquestração que às vezes soa como música de filme, e lembra nesse sentido Shostakovich, por usar alguns efeitos orquestrais simples, às vezes apelando para clichês, mas com efeitos que sempre chamam a atenção e fazem as passagens atonais soarem palatáveis. Honegger, como Shostakovich, mistura a tradição com a inovação (aliás, além de ambos terem composto música de filme, ambos se destacam como compositores de sinfonias, forma musical que revolucionários como Debussy, Schoenberg e Boulez julgavam antiquada). Mais uma citação de Honegger: “Minha inclinação e meu esforço sempre foram no sentido de escrever música que fosse compreensível para o grande público e ao mesmo tempo suficientemente livre de banalidade para interessar aos genuínos amantes da música… Quis impressionar a esses dois públicos: os especialistas e a multidão.” (Citado por Keith Waters)

Na 2ª Sinfonia, para cordas com uma pequena participação de um trompete, a orquestração com menos instrumentos faz com que o desenvolvimento temático apareça de forma mais explícita, como também é o caso da Música para cordas, percussão e celesta de Bartók. Ambas as obras, assim como a 4ª de Honegger, foram encomendadas e estreadas pelo bilionário Paul Sacher e sua orquestra de câmara da Basileia (Basler Kammerorchester). Vamos nos concentrar aqui em algumas grandes gravações das sinfonias nº 2 e 3.

Para a 2ª Sinfonia, composta durante a 2ª Guerra, veremos logo abaixo que as interpretações se dividem em dois grupos: as que enfatizam a tensão e nervosismo e as que soam menos nervosas e mais pendendo para o luto e a reflexão. Em todo caso, embora seja famosa como uma das “sinfonias de guerra” do repertório do século XX, não é uma obra programática: o autor afirmou que, se a sinfonia gera certas emoções, é simplesmente porque essas emoções estavam presentes naquele momento histórico. O fim da sinfonia é mais alegre e um tanto wagneriano, mas não daremos spoilers para quem ainda não conhece…

Na 3ª, composta poucos meses após o fim da 2ª Guerra e estreada por Charles Munch em 1946, já há um programa mais explícito: o autor deu a cada movimento um subtítulo em latim proveniente da liturgia cristã, daí o nome “Sinfonia Litúrgica”, embora não haja outra conotação especialmente religiosa ou melodias cristãs emprestadas. O 1º movimento é um allegro (Dies iræ), o 2º um adagio (De profundis) e o 3º um andante (Dona nobis pacem), que se abre com uma espécie de Marcha Fúnebre, especialidade dos franceses desde a Symphonie fantastique de Berlioz e a 2ª Sonata de Chopin. Sobre essa marcha, Honneger escreveu que queria retratar “justamente a ascensão da estupidez coletiva… A vingança da besta contra o espírito…” Lembrando que se tratava de um pós-guerra no qual a estupidez tinha realmente atingido níveis supremos. Mas, assim como na 2ª sinfonia, também aqui o final é alegre, só que em vez do clímax wagneriano da sinfonia anterior, aqui temos um clima bucólico que lembra Debussy: as nuvens pesadas vão embora e os pássaros cantam de forma nada mecânica. Vamos às comparações:

Ansermet e o Honegger intelectual

Espero que vocês tenham gostado das homenagens aos 160 anos de Debussy. Para mim, foi a oportunidade de ouvir novamente alguns grandes intérpretes de Debussy, como Toscanini, Martinon, e alguns nomes menos óbvios como Svetlanov, Baudo e Hewitt. Hoje seguimos com outro grande mensageiro da música de Debussy, Ernest Alexandre Ansermet (1883-1969), que esteve aqui no blog há algumas semanas na (re)postagem de FDP Bach.

Ansermet também foi um grande intérprete de Stravinsky e Honegger, estreando obras dos dois e tendo em comum com este último o fato de ter passado a vida entre a França e a Suíça. Nesse disco com as duas “sinfonias de guerra” além da 4ª sinfonia, Ansermet e seus músicos suíços parecem enfatizar menos as emoções das “sinfonias de guerra” e mais a genialidade de Honneger em seus desenvolvimentos de temas, contrapontos e orquestração cuidadosa. Com uma gravação de alta qualidade, podemos ouvir com clareza alguns detalhes sutis, por exemplo os baixos no início do 2º mov. da 2ª sinfonia ou o solo de cello no momento mais calmo do 3º mov. da 3ª sinfonia (p.ex. aos 8m20s). São interpretações calmas, intelectuais, podemos até lembrar que os mais velhos entre aqueles músicos suíços devem ter passado a 2ª Guerra em segurança naquele país neutro, sem o nervosismo que vivia, por exemplo, o francês Charles Munch como veremos logo abaixo.

Arthur Honegger (1892-1955):
1-3. Symphony no.2 For Trumpet And Strings: I. Molto moderato – allegro; II. Adagio mesto; III. Vivace, non troppo
4-6. Symphony no.3, “Liturgique”: I. “Dies Irae” Allegro marcato; II. “De Profundis Clamavi” Adagio; III. “Dona Nobis Pacem” Andante
7-9. Symphony no.4, “Deliciæ Basilienses”: I. Lento e misterioso – Allegro; II. Larghetto; III. Allegro
Orchestre de la Suisse Romande
Ernest Ansermet
Recorded at Victoria Hall, Geneva: 1961 (Symphony No. 2), 1968 (Symphonies No. 3-4)

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Munch e o Honegger nervoso

Provavelmente esse é o disco com mais notas levemente desafinadas ou pizicatti desencontrados postado neste blog nos últimos meses. Mas nesses tempos em que cantores da moda exageram no autotune e tudo tem que soar perfeitinho, é importante conhecermos algumas gravações ao vivo como essas feitas por Charles Munch (1891-1968) em turnê pela Europa (França, Suíça, Espanha e Finlândia) em 1962 e 64. Os eventuais desencontros entre as cordas são compensados pela tensão fortíssima da orquestra tocando em andamentos bem mais rápidos do que os de Ansermet. Mais rápidos também do que a Orchestre de Paris na gravação posterior da 2ª Sinfonia que Munch faria no seu último ano de vida. Aqui nessa apresentação ao vivo em 1964, a Orchestre National de France corre em todos os movimentos e sobretudo no último, com um Presto final loucamente acelerado que dura apenas 4m51s (a faixa é mais longa por causa dos aplausos). É um tipo de tensão que também combina com uma sinfonia conhecida como “de guerra”, e lembremos ainda que Charles Munch regeu a segunda apresentação dessa sinfonia em 1942 em Paris ainda sob ocupação nazista. E nessas gravações ao vivo temos uma amostra daquele tipo de nervosismo: a sensação de que o campo é minado, com um passo em falso, tudo pode dar errado, a orquestra corre muitos riscos e viver é desenhar sem borracha.

Em 1969, Karajan/Berlin P.O. fariam um último movimento igualmente acelerado, mas as gravações seguintes – Plasson/O.C. Toulouse (1979), Rozhdestvensky/USSR M.C.S.O. (1986) e Leducq-Barôme/Baltic C.O. (2018) – seriam um pouco mais lentas e bem comportadas, menos incisivas.

Arthur Honegger (1892-1955):
1. Le Chant de Nigamon
2. Pastorale d’été
3-5. Symphony no.2 For Trumpet And Strings: I. Molto moderato – allegro; II. Adagio mesto; III. Vivace, non troppo
6-8. Symphony no.5: I. Grave; II. Allegretto; III. Allegro marcato
Orchestre National de France
Charles Munch
Recorded live: Paris, 1962 (Chant), Basel, 1962 (Pastorale d’été), San Sebastian, 1964 (Symphony no. 2), Helsinki, 1964 (Symphony no. 5)

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Jean Fournet e a lenta marcha da estupidez coletiva

Jean Fournet (1913-2008) foi um regente francês mais associado a ópera, mas que também regeu muita música instrumental de seus contemporâneos como Messiaen, de Falla e Ibert. Sua única gravação de Honegger foi esta, aos 80 anos – ao contrário de Ansermet e Munch, íntimos do compositor e dessas obras desde a estreia – mas ele mostra uma boa familiaridade com Honegger e o disco é talvez a melhor introdução para quem não conhece o compositor, por trazer obras de diferentes períodos, como a Pastorale d’été (1920), obra com climas debussystas, feita por um jovem em busca de sua voz, e Pacific 231 (1923), primeiro grande sucesso de Honegger e já com suas características típicas. Como descreveu o compositor: “A obra inicia com uma contemplação subjetiva, o respirar quieto de uma máquina em descanso, [a seguir] seu esforço para começar, a velocidade que aumenta gradativamente […] Musicalmente, eu compus uma espécie de um grande e diversificado coral, repleto de contraponto à maneira de J. S. Bach”

E na 3ª Sinfonia, Jean Fournet e seus músicos holandeses fazem a marcha do 3º movimento de forma muito lenta, grandiosa, uma marcha da estupidez coletiva com toda a pompa e sem perder nenhum detalhe. E o primeiro flautista brilha no final, com um som fluido, irregular, em tudo o oposto da marcha que tinha a precisão de uma máquina.

Arthur Honegger (1892-1955):
1. Rugby, mouvement symphonique
2. Pacific 231, mouvement symphonique
3. Concerto da Camera
4. Pastorale d’eté
5. Symphonie no. 3, “Liturgique” (I. “Dies Irae” 0:00-7:02; II. “De Profundis” 7:03-21:19; III. “Dona Nobis Pacem” 21:20-35:15)
Netherlands Radio Philharmonic Orchestra
Jean Fournet
Recorded: 1993

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Jansons na encruzilhada entre as tradições

Mariss Jansons (1943-2019), quando jovem, foi assistente grande maestro soviético Y. Mravinsky, e parece ter herdado dele as chaves interpretativas de uma 3ª sinfonia de Honegger extremamente emotiva, também soando como uma sinfonia “de guerra”, mas sob o ponto de vista do front oriental. A marcha do 3º movimento é rápida como a de Mravinsky (em Moscou, 1965, infelizmente com qualidade de som não tão boa), e com um clima de grande tensão, colocando os ouvintes em uma atmosfera de quem perdeu amigos e parentes por causa da estupidez coletiva que Honegger mencionou no programa da sinfonia. Ao mesmo tempo, as cordas do Concertgebouw brilham no 2º movimento, como era de se esperar. O disco tem como complemento o Gloria composto por Poulenc em 1959-1961, já bem depois da guerra. Poulenc, como Honegger, fez parte do chamado “grupo dos seis” na Paris do entreguerras, embora Honegger tivesse como principal amigo no mesmo grupo o compositor Darius Milhaud.

Nesta gravação ao vivo temos uma mistura eclética de tradições: um regente de origem judaica, formado na escola soviética, com uma orquestra holandesa fazendo a sinfonia “litúrgica” de Honegger (de família protestante) junto com a liturgia católica repensada por Poulenc. O clima geral mistura por um lado o nervosismo “in tempore belli” (para lembrarmos a grandiosa missa de Haydn) e por outro lado a busca perfeccionista pelos timbres raros e detalhes como os momentos em que o piano se sobressai na orquestração: os músicos nos envolvem na encruzilhada entre a tensão interior e o brilho exterior. A encruzilhada, símbolo da ambivalência e da imprevisibilidade, traz possibilidades de vida brotando nas frestas da estupidez coletiva.

Francis Poulenc (1899-1963):
1-6. Gloria: I. Gloria in excelsis Deo – II. Laudamus te – III. Domine Deus, Rex coelestis – IV. Domine Fili, Domine Deus – V. Domine Deus, Agnus Dei – VI. Qui sedes ad dexteram Patris
Arthur Honegger (1892-1955):
7-9. Symphonie no. 3, “Liturgique”: I. “Dies Irae” Allegro marcato – II. “De Profundis” Adagio – III. “Dona Nobis Pacem” Andante)
Royal Concertgebouw Orchestra, Amsterdam
Mariss Jansons
Luba Orgonasova, soprano; Netherlands Radio Choir
Recorded live: Amsterdam, 2004 (Honegger), 2005 (Poulenc)

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Arthur Honegger, Ernest Ansermet e Roland Manuel (foto de 1925, colorizada por inteligência artificial)

Pleyel

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Claude Debussy (1862-1918): Nocturnes – quatro grandes gravações (e La Mer, Prelúdio, Petite Suite, etc) – Paray / Detroit, Ormandy / Philadelphia, Svetlanov / Philharmonia, Jaarvi / Cincinnati #DEBUSSY160

160 anos de Debussy

Claude-Achille Debussy (Saint-Germain-en-Laye, 22 de Agosto de 1862 — Paris, 25 de Março de 1918)

Nocturne: Blue and Silver—Bognor, por James Whistler

Debussy escreveu esta nota introdutória para os Noturnos:

“O título Noturnos deve ser entendido aqui em um sentido geral e, sobretudo, decorativo. Não se trata, portanto, da forma usual de um noturno, mas das várias impressões e efeitos especiais da luz que a palavra sugere.

Nuages (Nuvens) evoca o aspecto imutável do céu com o movimento lento e melancólico das nuvens, que se dissolvem em tons de cinza com leves toques de branco.

Fêtes (Festas) trazem o ritmo vibrante, dançante da atmosfera, com lampejos súbitos de luz. Há também o episódio da procissão (uma visão deslumbrante, quimérica), que passa pela cena festiva e se mistura com ela. Mas o pano de fundo permanece sempre o mesmo: o festival com sua mistura de música e poeira luminosa participando do ritmo geral.

Sirènes (Sereias) nos mostra o mar com seus incontáveis ritmos e então, dentre as ondas prateadas pela luz da lua, ouve-se o canto misterioso das Sereias que riem e vão embora.”

Tão geniais quanto o Fauno e La Mer, e situados cronologicamente entre essas duas obras, os Noturnos dão às orquestras e regentes a oportunidade de mostrarem suas capacidades de produzirem sonoridades raras, suaves, momentos de luz e sombra, solos que dependem mais de um cuidadoso cantabile do que de virtuosismo acelerado. Nesse sentido, e só nesse, eles lembram os Noturnos para piano de Chopin, porque em aspectos mais formais essas composições são bem diferentes das do polonês: como o próprio Debussy deixou claro, não se trata de forma dos noturnos que as pianistas adoravam tocar para seus namorados e noivos. Debussy teria sido inspirado por uma série de quadros impressionistas, também intitulados Nocturnes, de James Whistler, pintor que vivia em Paris naquela época. Sem dúvida estão mais próximos da pintura do que dos Noturnos de Chopin.

Em homenagem aos 160 anos de Debussy, vamos fazer um passeio pelas grandes gravações desses Noturnos. De início, nos voltamos para dois regentes dos tempos da brilhantina e das fotos em preto e branco, dois franceses que alcançaram o auge de suas carreiras regendo repertório francês nos EUA: Charles Munch e Paul Paray. A gravação da Symphonie Fantastique de Berlioz por Paray é muito recomendável, assim como o Ravel de Munch, cheio de delicadeza e energia ao mesmo tempo, que você confere nas postagens de FDP Bach aqui (Bolero, La Valse, etc.) e aqui (Daphnis et Chloé). Ambos os maestros também gravaram versões espetaculares da Sinfonia com Órgão de Saint-Saëns, nos primeiros anos do stereo, gravações que muitos audiófilos usaram para testar equipamentos de som, tamanha era a potência dos graves da orquestra e do órgão nos LPs.

Mas o assunto hoje é Debussy, e mais especificamente os seus Noturnos, compostos ao longo de alguns anos, finalizados em 1899 e estreados em 1900 (1º e 2º movimentos) e em 1901 (3º mov.) O motivo para a demora na estreia do 3º movimento, “Sereias”, foi a dificuldade de se ter disponível um coral feminino de altíssimo nível para cantar apenas essa obra de cerca de 10 minutos. Provavelmente por esse motivo, Munch gravou em Boston apenas os dois primeiros noturnos, que não precisam de coral. Toscanini e Bernstein, ambos em Nova York, também gravariam apenas os dois primeiros, talvez pela falta de um coral à disposição.

Arturo Toscanini, aliás, tinha credenciais para se impor como referência em Debussy. Consta que, quando Toscanini regeu a estreia italiana da ópera Pelléas, em 1908, ele convidou Debussy para assistir aos ensaios e à grande estreia. Ele não foi, mas escreveu uma carta que mostra a intimidade entre os dois: “Coloco a sorte de Pelléas em suas mãos, certo como estou de que não poderia desejar outras mais leais ou mais capazes. Pelo mesmo motivo, gostaria de de ter trabalhado ela com você”. Ouçam La Mer com Toscanini, é uma das melhores gravações. Mas aqui, com base nas suas gravações dos Noturnos, ele foi desclassificado porque faltou o 3º movimento.

Paul Paray imitando Albert Einstein

O francês Paul Paray nasceu em 1886, mesmo ano do alemão W. Furtwangler, e as personalidades dos dois podem ser consideradas como polos extremos. Muito se falou, na crítica especializada, sobre Toscanini como o anti-Furtwangler: de fato, assim como o francês Paray, o italiano corre muito no primeiro movimento: as “Nuvens” parecem sopradas por um forte vento. Enfim, voltando a Paray, ele tentou a sorte como compositor e, após alguns sucessos na década de 1910, largou a caneta para se dedicar à batuta a partir de 1920, ou seja, dois anos após a morte de Debussy. Paray estreou obras de Maurice Ravel, Florent Schmitt, Lili Boulanger e muitos outros. Após passar a vida na França à frente das orquestras Lamoureux e Colonne (se demitindo desta em 1940 em protesto contra os nazistas), Paray deve ter ganhado bem mais dinheiro já idoso, quando assumiu a Orquestra Sinfônica de Detroit, que ele elevou ao nível das maiores do mundo no período em que ali viveu, 1953 a 1963, recebendo altos salários na cidade da Ford, que vivia o boom dos automóveis e do american way of life. As gravações de Paray são quase sempre com andamentos rápidos e um clima leve, despreocupado, é nesse sentido que ele polariza com seu contemporâneo Furtwangler, famoso pelos adagios intermináveis e temperamento sério e grave que, aos olhos de Debussy, soaria como pura prepotência vazia. A gravação de Paray dos Noturnos, porém, me parece exagerar no clima leve e apressado: as nuvens, como já disse, são sopradas com força, e a procissão do segundo movimento corre a ponto de suar… E as sereias, com Paray, cantam tudo em 7min46s, sem o ar de mistério e de suavidade que pedem as indicações da partitura (“modérément animé“, “sourdine“, “très expressif et très soutenu“…). Paray poderia ser eliminado nessa competição por queimar a largada, mas mantive sua gravação aqui para termos justamente essa diversidade de pontos de vista sobre Debussy, e repito: ponto de vista de um maestro que, como Toscanini, já era adulto quando Debussy morreu, conheceu vários de seus amigos, então não é nenhum palpiteiro que caiu de para-quedas nesse repertório. Além do mais, o álbum traz a interessante e pouco gravada Petite Suite, de 1889, originalmente para piano e aqui em orquestração de Henri Büsser. Supõe-se que Debussy aprovava essa orquestração, porque ele a regeu em uma das vezes em que pegou a batuta para ganhar uns trocados. Essas gravações da Petite Suite (obra bucólica e simples, que combina mais com o jeitão de Paray) e das Valsas Nobres e Sentimentais de Ravel são absolutamente sensacionais.

Além de Paray, escolhemos outra gravação dos primeiros anos do stereo, período em que a cada ano surgiam inovações nos microfones e outras mudanças tecnológicas muito rápidas. O Debussy da Orquestra da Filadélfia com Ormandy não é tão lembrado, mas chamou nossa atenção desde a primeira audição. Eugene Ormandy (Budapeste 1899 – Filadélfia 1985) estudou violino na Hungria, onde também foi aluno de Bartók e Kodály. Viajou para os EUA para atuar como solista, mas acabou se tornando maestro, primeiro acompanhando filmes mudos e depois passando para o repertório sinfônico.

Eugene Ormandy

De 1936 a 1980 esteve à frente da orquestra da Filadélfia, que ficou famosa pelo belo som de seu naipe de cordas, aliás, segundo alguns críticos, certas obras ficavam com uma beleza exterior e sem profundidade. Os maiores solistas da época gravaram na Filadélfia com Ormandy, incluindo Rubinstein, Oistrakh e muitos outros. Como, nos EUA dos anos 1950 e 60, o repertório francês estava praticamente “reservado” para Charles Munch, Paul Paray e Pierre Monteux, Ormandy se destacou em outros compositores como seu compatriota Bartók , o russo Mussorgsky e o espanhol Rodrigo. Mas essas obras de Debussy gravadas entre 1959 e 1964 mostram que Ormandy se sentia em casa também com este compositor – por quem Bartók nutria verdadeira adoração, aliás.

Além de um Prelúdio ao entardecer de um fauno de grande beleza e de uma Danse: Tarantelle styrienne na versão orquestrada por Ravel, temos aqui Noturnos que servem como pinturas detalhadas de três paisagens: primeiro o céu (Nuvens), depois a terra (Festas) e o mar (Sereias). Ormandy segura um pouco os andamentos para mostrar cada detalhe, como o faria depois Haitink com a orquestra do Concertgebouw. Talvez Debussy preferisse sereias um pouco mais agitadas, cantando um pouco mais depressa, mas perdoamos Ormandy pela enorme beleza do conjunto, que não soa arrastado nem pretensioso, ao contrário das interpretações de Giulini (Philharmonia) e Celibidache (Stuttgart). Estes dois últimos regentes (que, grosso modo, são continuadores da tradição germânica de Richard Strauss e Furtwangler) conduzem os Noturnos de forma pomposa, grandiosa, alemã, nada a ver com a suavidade imaginada por Debussy. E no extremo oposto, Paul Paray, o especialista em música francesa já mencionado lá em cima, que despachou os noturnos com uma pressa doida.

Então após ouvir Ormandy, Paray e os desclassificados Giulini e Celibidache, chegamos à conclusão de que a duração do canto das nereias no último noturno deve ficar com não menos que 8 e não mais que 11 minutos. O coro não deve soar heroico (não é Beethoven) nem devocional (não é música religiosa), nem soar carnal e próximo demais: na Odisseia de Homero, ao contrário da feiticeira Circe e da ninfa Calipso, as sereias não encostam em Ulisses, não consumam o ato, apenas cantam no mar enquanto os gregos navegam. Este movimento das Sereias provavelmente foi a partitura que Debussy mais revisou em sua vida, ao longo de vários anos, movido pela enigmática dificuldade de encaixar o som da orquestra e o do coro de mulheres cantando sempre distantes. Vamos ver como os outros maestros e orquestras encaram esse desafio…

Pularemos as décadas de 1970 e 1980, deixando apenas mencionadas três grandes, imensas gravações dos Noturnos que já apareceram aqui no PQPBach: Martinon/Orquestra da Radio Francesa em Paris, Haitink/Orquestra do Concertgebouw de Amsterdam e Jordan/Orquestra da Suisse Romande em Genebra. Nos anos 1990, mais três grandes gravações na América do Norte: Dutoit em Montreal, Boulez em Cleveland, Salonen em Los Angeles. Claudio Abbado é outro maestro com uma forte ligação com esses Noturnos, que ele gravou duas vezes: em Boston (1970) e em Berlim (2001). Só a comparação entre essas duas gravações de Abbado já daria muito pano pra manga.

Mas vamos nos concentrar aqui em duas gravações menos famosas, a de Svetlanov/Philharmonia e a de Paavo Järvi/Cincinnati. Antes, breves palavras sobre duas gravações recentes: Jun Märkl e a Orchestre National de Lyon (2007) têm problemas muito sérios, como os tímpanos em pianissimo em Nuages que ficaram quase inaudíveis… O jovem francês Stéphane Denève e a Scottish National Orchestra (2012) soam bem mais interessantes e anotei aqui que preciso conhecer melhor esse maestro que também tem gravado Ravel, Franck, Roussel, Poulenc… A conferir.

Paavo Järvi (já notaram que os carecas se dão bem com Debussy?)

Paavo Järvi (não confundir com seu pai Neeme, também regente) foi eleito artista do ano pelas revistas Gramophone e Diapason no mesmo ano (2016), lançou uma integral de Tchaikovsky no ano passado, enfim, está no auge da sua carreira. Na década de 2010 foi regente principal em Frankfurt e também na Orchestre de Paris, onde curiosamente não gravou nenhum Debussy (seus principais discos em Paris: integral das sinfonias de Sibelius; Réquiem de Fauré; Chopin com Khatia Buniatishvili). Até 2022 esteve à frente da NHK, principal orquestra de Tóquio, e hoje chefia a Tonhalle-Orchester de Zürich, Suíça. Mas a gravação que trazemos aqui é anterior, Paavo Järvi aos quarenta e poucos anos regendo Debussy em Cincinnati, nos EUA.

Ele foi titular da Orquestra de Cincinnati entre 2001 e 2011, com várias gravações realizadas para o semi-defunto selo Telarc. Além do repertório mais famoso neste álbum – Prélude à l’après-midi d’un faune, Nocturnes, La Mer – temos uma obra curta e pouco gravada: Berceuse Héroïque, de 1914, um raríssimo momento em que Debussy expressa sentimentos tristes e solenes. Trata-se de uma “homenagem a Sua Majestade o Rei da Bélgica e a seus soldados”, composta logo após a invasão da Bélgica pelas tropas alemãs, sob resistência heroica dos belgas. É realmente estranho ouvir Debussy melancólico e heroico, mas afinal, o que a guerra não faz com as pessoas, não é?

Mas após esse breve passagem pela Berceuse (em francês: canção de ninar), voltemos aos Noturnos, compostos ainda muito antes de qualquer rumor de guerra: aqui temos o Debussy bem distante de sentimentos românticos, o que lhe preocupava era o lento movimento das nuvens, do mar e, quando ele chega ao elemento humano, no movimento central, são festas e procissões, nada de herói romântico solitário. E há algo de hipnótico nas sereias de Cincinnati, na forma como elas repetem seu canto. Nessa gravação elas estão meio distantes, parecem guardar alguns metros de distância da orquestra, mas talvez seja mera ilusão… é o tipo de música que pode iludir.

Além do canto das sereias que temos enfatizado aqui, outra coisa interessante de se comparar entre as gravações é o rufar grave dos tímpanos no início e do fim do primeiro noturno. Os tambores devem sempre soar discretos, um som atmosférico, pois a partitura indica pianissimo, alternando entre dois e quatro pês (pp, ppp, pppp). E ao mesmo tempo devem ser audíveis, missão nada fácil para músicos e engenheiros de som. Os tambores de Cincinnati com Järvi ficaram bem gravados, mas menos expressivos do que os da Philadelphia Orchestra com Ormandy.

Deixamos por último o disco que, na classificação aqui de casa, reina supremo como a maior gravação dos noturnos: não é um francês, e sim o russo Evgeny Svetlanov (1928-2002) regendo a orquestra inglesa Philharmonia em 1992. Muito lembrado por suas interpretações do repertório russo da chamada belle époque anterior à 1ª Guerra Muncial (Tchaikovsky, Rimsky-Korsakov, Glazunov, Scriabin) e também de Mahler, ele mostra aqui sua proximidade com a estética do compositor francês do mesmo período. Ou será que são os músicos da Philharmonia, orquestra fundada em Londres em 1945 e famosa por suas gravações com Klemperer? O timbre suave e elegante das cordas da Philharmonia lembra as orquestras germânicas, mas sem o ar grandiloquente que Debussy detestava em Wagner.

Na ressonante acústica de igreja onde Svetlanov e a Philharmonia gravaram, o fim do movimento Nuages, com as cordas agudas e os tímpanos suaves e misteriosos enquanto as cordas graves atacam em pizzicato, toda essa combinação ecoando poderia ter resultado em um desastre, mas o resultado aqui também é bastante interessante. O coro The Sixteen, mais famoso por suas gravações de música renascentista (aqui), mostra aqui que também se entende muito bem com esse repertório modernista: as sereias estão distantes e misteriosas, mas não tão distantes a ponto de se dissolverem na água salgada e na maresia. Enfim, uma gravação improvável, pouco badalada, em um selo pequeno, mas que eu considero IMPERDÍVEL.

Svetlanov preferia as gravações ao vivo, mas também gravou em estúdio: sinfonias de Scriabin, de Myaskovsky, de Shostakovich e muito mais. Ele era filho de uma cantora lírica do teatro Bolshoi, e costumava dizer: “Meu ideal é que uma orquestra tenha sua própria personalidade, focando em um som específico e não um som padrão. Com a Orquestra Estatal da URSS [e da Rússia desde 1989], consegui manter uma qualidade lírica especial por 30 anos: as boas orquestras são aquelas que cantam.”

Porém, mais do que em Moscou, ou em Paris onde ele também gravou Debussy com a Orchestre National de France, parece que Svetlanov brilhou mais ainda nesse repertório francês em Londres: lembremos, aliás, que essa cidade sempre acolheu muito bem a música de Debussy desde quando este ainda era vivo. As cordas da Philharmonia, as cantoras do The Sixteen, a acústica da St. Augustine’s Church, tudo funciona à perfeição aqui.

Conclusão: Todas as gravações aqui trazidas são interessantes, ainda que a do velho Paray em Detroit o seja mais por motivos históricos, para ouvirmos os noturnos na marcha apressada que também era a preferência de Toscanini, regente elogiado pelo próprio Debussy. Ormandy, na Filadélfia, atinge o sublime com o legato misterioso das cordas e com o som de seus sopros e do coro feminino gravado em stereo – tecnologia nova na época – com microfones bastante próximos, mostrando por exemplo as diferenças entre as sereias sopranos e as sereias mezzo-sopranos. Já a orquestra de Cincinnati, com Järvi, foi gravada com microfones mais distantes, uma sonoridade mais suave, um Debussy às vezes imerso em nuvens, às vezes com movimentos hipnóticos. E finalmente, meu favorito é um maestro que, a princípio, não teria currículo para disputar com especialistas em Debussy: o russo Svetlanov. A orquestra Philharmonia, gravada em uma igreja de Londres em 1992, consegue soar ao mesmo tempo próxima e distante, os instrumentos muitos claros mas misteriosos, enfim, tudo com uma fluência típica de um mar calmo ou do vento movendo as nuvens no horizonte.

Paul Paray/Detroit Symphony Orchestra (1958-1961)
1-3. Ravel: Daphnis et Chloé, Suite no. 2
4-11. Ravel: Valses nobles et sentimentales
12. Ravel: Bolero
13-15. Debussy: Nocturnes
16-19. Debussy: Petite Suite (orch. Henri Büsser)
Recorded: Detroit, 1958, 1959, 1961

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Eugene Ormandy/Philadelphia Orchestra (1959-1964)
1-3. La Mer
4. Prélude à l’après-midi d’un faune
5. Danse (Tarantelle Styrienne) (orch. Maurice Ravel)
6-8. Nocturnes
Recorded: Broadwood Hotel & Town Hall, Philadelphia, 1959, 1964

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Evgeny Svetlanov/Philharmonia (1992)
1-3. La Mer
4-6. Nocturnes
7. Prélude à l’après-midi d’un faune
Recorded: St Augustine’s Church, London, 1992

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Paavo Järvi/Cincinnati Symphony Orchestra (2004)
1. Prélude à l’après-midi d’un faune
2-4. Nocturnes
5-7. La Mer
8. Berceuse héroïque
Recorded: Music Hall, Cincinnati, 2004

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Svetlanov: nem à esquerda nem à direita

Pleyel

Claude Debussy (1862-1918): Prélude à l’après-midi d’un Faune, Nocturnes, La Mer, Images, Rapsódia para clarinete, Jeux, etc (Haitink/Concertgebouw) #DEBUSSY160

Toscanini faz um La Mer grandioso, mas apressa demais os Noturnos. Ansermet tem ideias geniais mas nem sempre sua orquestra está à altura. Haitink com a Orquestra do Concertgebouw de Amsterdam, pelo contrário, não erram jamais em suas gravações de Debussy. Onde é preciso suavidade, mistério, eles fazem isso com um colorido instrumental de primeira. E onde é preciso suor e potência, ou brilho e desejo, enfim, nada fica faltando.

De forma que, entre as gravações quase completas das obras de Debussy, esta aqui de Haitink é sempre uma das mais lembradas. É verdade que Jean Martinon gravou em Paris uma coleção maior, que hoje cabe em 4 CDs pois inclui obras de juventude (Fantasia para piano e orquestra…) e orquestrações de amigos de Debussy (Ravel, Koechlin, Büsser…) Então Martinon e Haitink dividem o pódio. É tudo tão bem feito que não vou mais me arriscar a comentar. Seguem abaixo as notas do encarte do disco.

Debussy e Satie: os dois eram amigos. O Buda no meio, não sei.

Pianista de formação, Debussy poderia se tornar um segundo Chopin, compondo quase exclusivamente para o piano, se não fosse sua sensibilidade exacerbada para as sonoridades mais raras, inclusive ao piano, o que o levaria a escrever para orquestra de uma maneira tão pessoal, buscando para cada instrumento o colorido mais incomum. Para o compositor Pierre Lalo – que hoje tem uma ou duas obras ainda lembradas, mas naquele tempo se achava em posição de dar lições ao compositor quatro anos mais velho que ele – isso era um defeito. Lalo escreveu em 1910, sobre Iberia: “Que abuso das percussões e madeiras, esses oboés e clarinetes e seu eterno som nasal! Esses metais sempre fechados [com surdina], esses instrumentos, nenhum deles empregado na sua função verdadeira e seu timbre normal, mas que sempre parecem rir com afetação, com uma voz de palhaço!”

Embora o objetivo fosse falar mal, a crônica de Lalo descreve bem o gosto de Debussy pelas madeiras, enquanto ele evita sempre fazer berrar os metais, defeito que ele via nos wagnerianos tão detestados, como Mahler. Ao mesmo tempo, as percussões deviam trazer alguns barulhos à memória (ressaca em La Mer) mais do que batidas fortes.

A orquestra de Debussy tem origem nos hábitos do fim do século XIX, mas com a presença de um timbre particular, como os címbalos antigos no fim do Prelúdio ao entardecer de um fauno, o coro feminino das Sereias (Noturnos) ou o oboé d’amour de Gigues. Uma invenção contínua sobre os timbres condiciona não somente a orquestração, mas também a forma, por assim dizer sui generis. Seu objetivo é reproduzir as atmosferas da vida e do mundo ao seu redor, transpostas com uma sensibilidade extrema para o plano musical, o que o compositor nomeava “a carne nua da emoção”. Não poderíamos definir melhor o conteúdo do “Prelúdio”, estreado triunfalmente em 22 de dezembro de 1894 e o único vestígio que sobrou de um tríptico planejado sobre “Églogue” do poeta Mallarmé (1842-1898), que evoca os desejos eróticos de um pequeno deus dos rebanhos no calor de uma tarde siciliana, assim como sua comunhão íntima com a paisagem. Para Ravel, era a obra musical mais perfeita jamais composta, tal era a ausência de “ligações” entre as seções.

“Gamins de Wissant”, por Virginie Demont-Breton (1859-1935)

A ideia de tríptico domina também as obras seguintes: os Três Noturnos, finalizados em 1899, concebidos inicialmente como “Cenas ao crepúsculo” para violino e orquestra. La Mer, estreado em 1905 em um ambiente de incompreensão geral, se assemelha mais a uma sinfonia edificada segundo os princípios de Franck, faltando somente a seção lenta: se Debussy não nos presenteou com um estático “luar no mar” (“clair de lune en mer”) como o fizeram outros, e ele mesmo na precedente Sirènes, é porque ele encontrou ali no elemento marinho uma maneira de empurrar a orquestra para o instante fugidio. Um dos grandes méritos dessa obra maior do século XX é associar o sentimento e a emoção do Prelúdio com a visão do universo explorada nos Noturnos, mas com uma objetividade mais explícita, pois para Debussy, não se tratava tanto de ver o mar quanto de recolher dele uma ambiência efetiva graças às sensações diversas provocadas pela música: gritos de gaivotas, ondas, vento violento ou gosto salgado.

E finalmente Images (1905-1912, não confundir com as Images para piano, da mesma época), tríptico que tem no meio um outro tríptico dedicado à Espanha. Para o compositor Manuel de Falla, Iberia “ensinou aos compositores espanhóis formas mais sutis de usarem seu próprio folclore”, embora a obra não cite nenhuma melodia espanhola. Já o movimento final de Images, “Rondes de printemps” (algo como cirandas de primavera), cita “Nous n’irons plus au bois”, canção infantil que Debussy dizia prefirir mil vezes ás Valquírias de Wagner. Em 1904, por encomenda da firma Pleyel, ele compôs Dança sagrada e dança profana para harpa, com o acompanhamento suave dedicado somente às cordas.

Jeux, sua última peça orquestral, foi escrita rapidamente, no verão de 1912, para os Ballets Russes, que já haviam estreado em Paris o Pássaro de Fogo de Stravinsky (1910), obra muito admirada por Debussy. Aqui, o colorido instrumental é mais do que nunca um fator predominante, com uma música elusiva, misteriosa, não-narrativa, não-cíclica, avançando de um momento para outro sem recapitulação. Jeux se manteve como uma das obras mais importantes para os vanguardistas do século XX, mas o balé foi um fracasso de público, o que não chega a ser uma surpresa, pois essa última obra-prima de Debussy, sem os elementos necessários para um sucesso teatral, tem a clareza luminosa e indecifrável de um sonho.

(Compilado das notas por Max Harrison e Bruno Gousset)

Claude Debussy (1862-1918):
CD1
01 – Berceuse Héroïque
Images pour Orchestre:
02 – I. Gigues
03-05 – II. Iberia: Par les rues et par les chemins; Les parfums de la nuit; Le Matin d’un jour de fête
06 – III. Rondes de Printemps
07 – Jeux (poème dansé)
08 – Marche Ecossaise

CD2
01 – Prélude à l’après-midi d’un faune
Nocturnes
02 – I. Nuages
03 – II. Fêtes
04 – III. Sirènes
La Mer
05 – I. De l’aube à midi sur la mer
06 – II. Jeux de vagues
07 – III. Dialogue du vent et de la mer
08 – Rapsodie pour orchestre avec clarinette principale
09 – Danses pour Harpe et Orchestre à Cordes – I. Danse Sacrée
10 – Danses pour Harpe et Orchestre à Cordes II. Danse Profane

Bernard Haitink
Eduard van Beinum (CD1 Track 1)
Royal Concertgebouw Orchestra
Recordings: 1959 (Beinum), 1976, 1977, 1979 (Haitink)

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Bônus:

Décadas depois de gravar Debussy no Concertgebouw de Amsterdam, Haitink gravaria em Paris a única ópera do compositor francês: Pelléas et Mélisande.
Gravação ao vivo no ano 2000, com uma sonoridade muito delicada, apropriada a esta ópera cheia de personagens misteriosos que não sabemos bem de onde vêm nem para onde vão. Uma ópera com florestas sombrias, fontes miraculosas e muitas pérolas orquestrais que Haitink e seus músicos e cantores apresentam sem a grandiosidade de Karajan/Berlim e Abbado/Viena ou a clareza vocal e orquestral de um regente francês que daqui a alguns dias aparecerá aqui no blog com aquela que meu colega Alex DeLarge considerou a maior gravação desta ópera (e eu concordo… daqui a uns dias neste mesmo canal!) Mas essa gravação que trago hoje é forte concorrente ao 2º ou 3º lugar pela sutileza e refinamento das partes orquestrais. Ao mesmo tempo, por ser ao vivo, temos ruídos da vida real como o virar de páginas da partitura…

Claude Debussy:
Pelléas et Mélisande
Orchestre National de France, direção Bernard Haitink
Solistas: Wolfgang Holzmair (Pelléas) – Anne Sofie von Otter (Mélisande) – Laurent Naouri (Golaud) – Alain Vernhes (Arkel) – Hanna Schaer (Geneviève) – Florence Couderc (Yniold) – Jérôme Varnier (Le Berger, Le Médecin)
Choeur de Radio France
Live Recording: mars 2000, Théatre des Champs-Élysees, Paris, France

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Bernard Haitink (1929-2021), um dos maiores maestros da era das gravações

Pleyel

Claude Debussy (1862-1918): La Mer, Ibéria, Prélude à l’après-midi d’un Faune, 2 Nocturnes (Toscanini/NBC) #DEBUSSY160

Segundo testemunhas, Debussy teria dito: “Em minha opinião a inutilidade da sinfonia desde Beethoven já foi amplamente demonstrada.”

Mas La Mer, composta entre 1903 e 1905, é claramente uma sinfonia em três movimentos, apenas o cuidadoso subtítulo “Esboços sinfônicos” aponta para a diferença.

Se La Mer está apenas parcialmente na tradição sinfônica, não é tampouco um poema tonal tradicional. No 1º movimento encontramos a calma superfície das águas, o aparecimento do sol e a força crescente da luz (com uma intensificação gradual da dinâmica, ou seja, instrumentos tocando mais forte). No 2º movimento há uma contínua invenção na movimentação das melodias, imprevisíveis como as ondas, simplesmente uma brincadeira das ondas. No 3º movimento um diálogo entre o vento e o mar com todas suas nuances alternando rapidamente.

Em La Mer, nenhuma história está sendo contada, nenhuma ação narrada. Temos sobretudo a impressão de que a música se tornou como a natureza. Essa parece ter sido a intenção de Debussy, pois em suas próprias palavras, a música parecia destinada “não a expressar a natureza com uma maior ou menos fidelidade, mas a criar uma harmonia misteriosa entre natureza e imaginação”.

(Texto acima por Wolfgang Dömling, Professor na Universidade de Hamburgo, 1993)

Como descreveu muito bem o professor alemão citado, La Mer não tem um enredo definido, apenas cenas que cada um pode ouvir e preencher com sua própria imaginação. Arturo Toscanini (1867-1957) claramente tinha ideias bem formadas sobre como devia soar La Mer. Ele fez dessa obra um de seus cavalos de batalha em sua longa e internacional carreira. Entre as suas várias gravações da obra (incluindo uma de 1935 em Londres, esta de 1950 nos EUA e outra de 1953) há algumas mudanças, mas sobretudo a continuidade das convicções do maestro sobre como devia soar Debussy, convicções que vinham desde a década de 1900. Sob a batuta de Toscanini, com sua ênfase nos metais, o mar raramente parece calmo, sereno ou brincalhão: mais comuns são os momentos de navegação, de fanfarras marinheiras, enfim, um mar povoado de barcos e com ondas às vezes ameaçadoras. Ao mesmo tempo, com esse clima de marinheiros e fanfarras, a predominância dos metais nunca soa wagneriana ou mahleriana, falha que Debussy não perdoaria. Toscanini regeu bastante Wagner, mas compartilhava com Debussy o desprezo por Mahler: ele não gravou nenhuma das sinfonias do vienense.

Nos Noturnos e no Fauno, Toscanini também tem ideias muito particulares que lhe trouxeram sucesso com essas obras desde 1904, mas que não alcançaram uma unanimidade entre os ouvintes da era das gravações: ele despacha as Nuvens (1º mov. dos noturnos) em 5 minutos e meio, como se um forte vento estivesse as empurrando com força… Também o fauno corre um pouco apressado. Mas há momentos de parada pra respirar, como o sublime instante em que as cordas tocam um crescendo e tomam as rédeas entre 4:20 e 5:00, com uma respiração em tempo rubato cheia de elegância. Toscanini não havia caído de para-quedas nesse repertório, muito pelo contrário, tinha intimidade com aquelas obras que regeu quando ainda eram desconhecidas na Itália, e foi muito elogiado pelo próprio Debussy:

Em seu livro The real Toscanini, Cesare Civetta descreve a relação de Toscanini com Debussy e La Mer: “Debussy enviou a Toscanini a partitura completa de La Mer, com uma dedicação escrita à mão de uma página inteira, onde Debussy escreve: ‘Até agora achava que eu tinha escrito uma boa composição, no melhor das minhas capacidades. Agora eu sei que criei algo ainda melhor com a sua ajuda.’ Ele escreveu ‘com sua ajuda’ porque Toscanini explicou a Debussy vários detalhes pouco claros na partitura e lhe relatou as mudanças que ele fizera na orquestração, mudanças que Debussy aprovou.”

Vocês sabem que quem conta um conto aumenta um ponto, além disso Debussy deve ter se sentido grato a um maestro que divulgava sua música nos tradicionalíssimos Teatro alla Scala de Milão (estreia italiana da ópera Pelléas et Mélisande em 1908) e Teatro Regio de Turim (Prélude à l’après-midi d’un faune em 1904, Nuages em 1906). Se talvez haja algo de exagerado nesse relato, o fato é que há também cartas de Debussy a Toscanini, sempre elogiosas, assim como uma carta a um amigo em que Debussy o chama de “grande mágico” e de maior responsável pelo sucesso de La Mer em Turim em 1911:

Sua cordial lembrança e o relato que o senhor me faz da estreia de La Mer me trouxeram muito prazer… Quanto ao sucesso ele é, creia-me bem, inteiramente devido a este grande mágico chamado Toscanini! Não tenho antipatia dos “bons burgueses” de sua velha Turim por me terem olhado com maus olhos antes; e que eles gostem mais de Debussy por Toscanini do que da presença real de Debussy no fundo é apenas “nacionalismo” à terceira potência! (Carta de Claude Debussy a Leone Sinigaglia, 1911)
Votre cordial souvenir et le récit que vous me faites de la création de La Mer m’ont fait un grand plaisir… Quant au succès il est, croyez-le bien, entièrement dû à ce grand magicien qui s’appelle Toscanini ! Je n’en veux nullement aux « bons bourgeois » de votre vieux Turin de m’avoir fait grise mine ; et qu’ils aiment mieux Debussy à travers Toscanini que la présence réelle de Debussy n’est en somme que du « nationalisme » à la troisième puissance !
Claude Debussy (Lettre à Leone Sinigaglia, 1911)
Your account of the première de La Mer has given me a great pleasure… About the success it is, believe me, entirely due to this great magician called Toscanini! I don’t care if, before, the “good bourgeois” of Torino didn’t smile at me; and the fact that they like better Debussy by Toscanini than Debussy’s real presence is just some “nationalism” to the third potency! (Claude Debussy, 1911)

“Toscanini y a mis toute son âme, toute son intelligence, et toute sa volonté. Sa création de votre admirable chef-d’œuvre a été prodigieuse. Le public, méfiant au commencement (vous pouvez le penser ! Vous connaissez ça) a été conquis. […] Grand nombre de « nos bons bourgeois de la vieille ville de Turin » aiment Debussy !”

Lettre de L. Sinigaglia à Debussy, [Turin, 30 septembre 1911] (Carta respondida por Debussy acima. Ambas citadas por Malvano, 2012: Claude Debussy à l’Exposition internationale de Turin en 1911)

Em resumo: em La Mer todas as escolhas do grande mágico chamado Toscanini (palavras de Debussy) parecem perfeitas e inevitáveis, ao menos enquanto o ouvimos e estamos sob seu encanto. Nas outras obras, mesmo discordando de algumas escolhas do maestro, reconhecemos aqui uma gravação histórica de valor inestimável.

Arturo Toscanini, o maestro que fez a estreia italiana do Fauno em 1904 e da ópera Pelléas, em 1908

Claude Debussy (1862-1918):
La Mer
01. I: De l’aube à midi sur la mer
02. II: Jeux de vagues
03. III: Dialogue du vent et de la mer
04. Prélude à l’après-midi d’un faune
Ibéria (from Images)
05. I: Par les rues et par les chemins
06. II: Les parfums de la nuit
07. III: Le Matin d’un jour de fête
Nocturnes 1 & 2
08. I: Nuages
09. II: Fêtes
Recorded: 1950 (1-3), 1948, 1952, 1953
Arturo Toscanini, NBC Symphony Orchestra

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O mar de Toscanini é agitado! (Foto: “Fillette sur le Rocher”, 1888, por Virginie Demont-Breton, 1859-1935)

Pleyel

Claude Debussy (1862-1918): Nocturnes, La Mer, Images, Jeux, La boîte à joujoux, Épigraphes antiques, Sarabande (Armin Jordan, Orquestras Suisse Romande e de Basel) #DEBUSSY160

Theodor W. Adorno (Frankfurt, 1903–1969) afirma que a música de Debussy é marcada pela desconfiança de que o gesto grandioso usurpa um nível espiritual que depende justamente da ausência de tal gesto.
“A preponderância da sonoridade sensual na assim chamada música impressionista envolve, melancolicamente, dúvidas acerca da inabalável confiança alemã na potência autônoma do espírito.” (Intr. Soc. da Música, p.300)

A obra de Debussy é toda voltada para a contemplação interior, a intimidade, a pureza das frases e o desenrolar das ideias musicais por dez ou vinte minutos, não mais do que isso, em oposição à grandiloquência e exageros da música germânica de Wagner e Bruckner. Assim como muitos colegas de sua geração, ele teve um flerte inicial com as inovações harmônicas de Wagner, mas depois passou a combater a enorme influência wagneriana em toda a Europa do fim do século XIX.

Debussy ao piano no verão de 1893, na casa de campo do seu amigo Chausson, calvo, em pé, virando a página

Ernest Chausson, compositor amigo de Debussy, é outro que passou pelo mesmo processo: no caso dele, a influência de Wagner se faz ainda mais notável em sua música, mas ele escreveu, em 1886: “É preciso de deswagnerizar” (« Il faut se déwagnériser »).

A admiração inicial por Wagner levou os jovens Chausson e Debussy a irem a Bayreuth assistir às óperas do alemão, que faziam enorme sucesso naquela época (ao contrário de Bruckner e Mahler, cujas sinfonias seriam mais celebradas postumamente). E ir a Bayreuth não era, para eles, como ir logo ali na Normandia ou na Bélgica. Hoje o trajeto Paris-Bayreuth dura 8 horas de trem, quase 9 de carro, e certamente os meios de transporte e estradas da época eram bem mais lentos.

Sorte nossa que hoje essas disputas parecem algo muito antigo – enquanto a música soa atual! – de forma que podemos gostar de ambos os lados: ouvir hoje um Fauré e amanhã um Wagner, hoje os prelúdios de Debussy e amanhã as sinfonias gigantescas e devocionais de Bruckner.

Após longos anos de formação e de pouco sucesso, Debussy conseguiu se “deswagnerizar” e teve um primeiro sucesso de público com o Prélude à l’après-midi d’un faune (1894). Em seguida vieram suas duas outras grandes obras-primas orquestrais, Nocturnes (1899, estreias em 1900-1901) e La Mer (1905). Vieram em seguida Images, tendo como peça principal Iberia, certamente inspirada por Albéniz, e finalmente Jeux, partitura para balé que é sua obra mais moderna e de mais difícil apreensão. As outras obras aqui gravadas por Armin Jordan são partituras orquestradas por três pessoas que Debussy conheceu bem. A sarabanda da suíte Pour le piano (1901) foi orquestrada por Ravel. E as duas outras obras, Six épigraphes antiques (Seis epígrafes antigas) e La boîte à joujoux (A caixa de brinquedos), escritas nos últimos anos de vida, Debussy provavelmente tinha a intenção de orquestrar, não sabemos se uma intenção séria interrompida pela doença ou uma intenção assim como quem diz “vou fazer” sem muita convicção. Em todo caso, o que se sabe é que o maestro Ernest Ansermet (1883-1969, fundador da Orchestre de la Suisse Romande) orquestrou as eígrafes, que lembram um pouco as imagens e prelúdios para piano, com referências ao vento, à noite e à chuva. Já o maestro e comporitor André Caplet (1878-1925) orquestrou a caixa de brinquedos, obra de caráter infantil… quem entende um pouco de francês vai entender o diminutivo carinhoso de jouet (brinquedo) comendo a última sílaba, como os franceses o fazem para metrô (métropolitain), dodô (dormir) e restô (restaurant).

Nocturnes é a partitura que Debussy mais retocou após a estreia. Foram vários anos retocando pequenos detalhes aqui e ali, de modo que há mais de uma opção para os maestros escolherem. Quando Ernest Ansermet, em 1917 viu a partitura cheia de mudanças anotadas a caneta e a lápis, ele perguntou ao compositor qual era a versão correta. Debussy respondeu: “Não sei mais, todas são possíveis. Então leve essa partitura e use as que lhe parecerem melhores.” (Fonte: Ernest Ansermet: une vie de musique – Jean-Jacques Langendorf, 2004)

A partitura que a orquestra da Suisse Romande utiliza sob a batuta de Armin Jordan, sem dúvida, é a “versão Ansermet”, ou seja, inclui as mudanças manuscritas que Debussy adicionou nas décadas de 1900 e 1910. O suíço Charles Dutoit, que quando jovem conheceu Ansermet, também parece usar essa mesma versão da partitura em sua gravação com a Orquestra de Montréal. Já outras gravações, como as de Martinon (em Paris), Svetlanov (em Londres) e Haitink (em Amsterdam) utilizam outras versões, mais fiéis à original assinada por Debussy em 1899. Dá pra perceber as diferenças, já desde o clarinete no primeiro compasso do terceiro Noturno, Sirènes (Sereias). Este movimento, ao que parece, foi o que Debussy mais revisou ao longo de vários anos, movido pela enigmática dificuldade de encaixar o som da orquestra e o do coro de mulheres cantando sempre distantes – as sereias na Odisseia, ao contrário da feiticeira Circe e da ninfa Calipso, não encostam em Ulisses, apenas cantam no mar enquanto os gregos navegam.

1897: Debussy em pose relaxada, fumando com Zohra ben Brahim (amante de seu amigo Pierre Louÿs)

Claude Debussy (1862-1918)
1 Nocturnes: No. 1, Nuages (1899)
2 Nocturnes: No. 2, Fêtes (1899)
3 Nocturnes: No. 3, Sirènes (1899)
4 Épigraphes antiques: No. 1, Pour invoquer Pan, dieu du vent d’été (1914) (Orch. Ansermet)
5 Épigraphes antiques: No. 2, Pour un tombeau sans nom (1914) (Orch. Ansermet)
6 Épigraphes antiques: No. 3, Pour que la nuit soit propice (1914) (Orch. Ansermet)
7 Épigraphes antiques: No. 4, Pour la danseuse aux crotales (1914) (Orch. Ansermet)
8 Épigraphes antiques: No. 5, Pour l’Égyptienne (1914) (Orch. Ansermet)
9 Épigraphes antiques: No. 6, Pour remercier la pluie au matin (1914) (Orch. Ansermet)
10 Pour le piano: II. Sarabande (1901) (Orch. Ravel)
11 La boîte à joujoux: I. Prélude. Le sommeil de la boîte (1913) (Orch. Caplet)
12 La boîte à joujoux: II. Le magasin de jouets (1913) (Orch. Caplet)
13 La boîte à joujoux: III. Le champ de ba taille (1913) (Orch. Caplet)
14 La boîte à joujoux: IV. La bergerie à vendre (1913) (Orch. Caplet)
15 La boîte à joujoux: V. Après fortune faite (1913) (Orch. Caplet)
16 La boîte à joujoux: VI. Épilogue (1913) (Orch. Caplet)

Orchestre de la Suisse Romande (1-3)
Sinfonie Orchester Basel (4-16)
Armin Jordan

Claude Debussy (1862-1918)
1 La Mer: I De l’aube à midi sur la mer (1905)
2 La Mer: II. Jeux de vagues (1905)
3 La Mer: III. Dialogue du vent et de la mer (1905)
4 Images pour orchestre, Pt. 1 “Gigues” (1912)
5 Images pour orchestre, Pt. 2 “Ibéria”: I. Par les rues et par les chemins (1912)
6 Images pour orchestre, Pt. 2 “Ibéria”: II. Les Parfums de la nuit (1912)
7 Images pour orchestre, Pt. 2 “Ibéria”: II. Le Matin d’un jour de fête (1912)
8 Images pour orchestre, Pt. 3 “Rondes de printemps” (1912)
9 Jeux (1913)
Orchestre de la Suisse Romande (1-9)
Armin Jordan

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As capas dos álbuns originais lançados pela Erato

Pleyel

Chausson (1855-1899): Viviane, Poemas para soprano e para violino / Lekeu (1870-1894): Fantasia, Adagio para cordas / Dukas (1865-1935): Aprendiz de feiticeiro / Debussy (1862-1918): Fantasia para piano, Rapsódia para clarinete, Prélude à l’après-midi d’un faune (Armin Jordan, Orquestras Suisse Romande e Monte-Carlo) #DEBUSSY160

As obras desta e da minha próxima postagem, em gravações por orquestras de países francófonos – Suíça, França, Mônaco – são todas do período que em francês costumam chamar Belle Époque (Bela época). Um período entre a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) e as terríveis duas Guerras Mundiais (a partir de 1914), que retrospectivamente – para as gerações que viveram essas guerras, sem falar na crise de 29 – foi visto como uma era de ouro por gente como Marcel Proust (1871-1922): “os verdadeiros paraísos são os paraísos perdidos”, disse ele, ou seja, a gente só dá valor depois que perde.

Aqui um parêntesis: o economista Thomas Piketty afirma que “todas as sociedades europeias na Belle Époque se caracterizam por uma fortíssima concentração dos patrimônios.” Ou seja, foi uma bela época sobretudo para uma minúscula fração de pessoas que viviam de renda e podiam passar a semana entre várias soirées, salões, óperas e concertos. O 1% mais rico da sociedade detinha 60% do patrimônio na França e quase 70% na Inglaterra, concentração maior do que em meados do século XIX. As bombas da 1ª Guerra e as falências de 1929, entre outros fatores político-econômicos, significariam uma grande destruição de patrimônios dos ricos, com uma redução na concentração de renda ao longo do século XX e a emergência das classes médias, porém a tendência é de novo aumento nessa concentração no nosso século XXI. Se vocês querem saber os motivos, terão de ler as 900 pgs. do livro que Pikkety publicou em 2013: O Capital no Século XXI.

Em todo caso, em termos musicais, a Belle Époque é o período em que surgem grandes obras francesas que até hoje estão no repertório clássico: a Sinfonia com órgão e os concertos de Saint-Saëns, a Sonata para violino de Franck e suas Variações Sinfônicas, o Réquiem de Fauré e seus Quartetos e Quintetos com piano, quase todas as obras de Debussy e as primeiras de Ravel. Além de outros compositores com uma ou duas obras ainda lembradas, como Chausson, Chabrier, Dukas, d’Indy, Boulanger…

Sempre fico feliz quando ouço algum regente que gravou a Fantasia para piano e orquestra de Debussy. Grandes maestros como Haitink, Ansermet, Boulez e Karajan não a gravaram. O próprio Debussy desprezou a obra – na estreia, quando ele ainda era um compositor bem pouco famoso, queriam tocar só um dos três movimentos, de forma que ele se irritou e enfiou a partitura na gaveta – e ela só foi estreada de fato por Alfred Cortot em 1919, um ano após a morte do compositor. Felizmente outros gigantes como Jean Martinon (com Ciccolini) e Ivan Fischer (com Kocsis) gravaram essa obra. Mais recentemente, Barenboim e Argerich. Faço questão de citar esses maestros porque na minha irrelevante opinião essa partitura de 1890 tem, cronologicamente, a primeira das primorosas orquestrações de Debussy, um pouco abaixo do Fauno, de La Mer e Nocturnes, mas no mesmo nível de Jeux, Images e das Danças para harpa e orquestra.

Nesta gravação com Jordan, a Fantasia para piano e orquestra (assim como a Rapsódia para orquestra com clarinete) são muito bem defendidas pela Orquestra da Ópera de Monte-Carlo (Mônaco), orquestra tradicional, que estreou obras de Honegger e de Fauré e foi fundada em 1856 no principado famoso pelas corridas de F1. No Fauno de Debussy, ele está em Genebra com a Orquestra da Suisse Romande (que significa a parte da Suíça que fala francês), orquestra fundada em 1918 pelo maestro Ernest Ansermet, que a dirigiu até 1967. Ansermet conheceu Debussy e suas gravações provavelmente estão entre as mais próximas de como o compositor queria que as obras soassem. E a orquestra Suisse Romande, claro, manteve após Ansermet uma profunda ligação com a obra de Debussy.

Já no poema sinfônico Aprendiz de Feiticeiro (1897), one-hit-wonder de Dukas, Jordan está em Paris com a Nova Orquestra Filarmônica da Radio France. É esse percurso entre Paris, lagos da Suíça e sul da França que Jordan fez quase toda a vida. Nascido em Lausanne (Suíça) em 1932, ele não precisou ir morar nos EUA como dezenas de grandes maestros das duas gerações anteriores (Szell, Reiner, Munch, Toscanini, Monteux). Morreu em 2006, cinco dias após um mal súbito que teve enquanto regia a ópera O Amor das Três Laranjas, de Prokofiev, em Basel (Basileia, Suíça).

Também sempre fico feliz quando encontro alguma gravação de Lekeu, compositor de morte muito precoce, que deixou para a posteridade uma grande sonata para violino, algumas obras orquestrais e  mais alguns esboços. No Adagio para cordas ele mostra sua voz muito característica e melancólica, que conheço bem da sua sonata para violino, estreada por Ysaye em 1893, mesmo ano em que Lekeu contraiu a febre tifóide que o vitimaria no começo do ano seguinte. Na Fantasia sobre temas da região de Angers, no oeste da França, Lekeu começa com fanfarras alegres, mas lá pelo 4º minuto se inicia novamente a melancolia romântica que o aproxima de românticos tardios como Tchaikovsky e Wagner. Ao mesmo tempo que sua personalidade musical é notável, também fica aquele ar de mistério: o que exatamente ele queria dizer, que caminhos tomaria se vivesse mais algumas décadas?

Viviane, de 1882, é uma das primeiras obras de Chausson, muito influenciada por Wagner. A orquestração do Poema do amor e do mar é um pouco mais distante da sonoridade de Wagner, e mais próxima do estilo orquestral de Debussy e de Fauré. O Requiem de Fauré (1988) já tinha sido estreado e o Fauno de Debussy seria estreado no ano seguinte, em 1894. Mas sabendo que Chausson era então amigo de Debussy (depois eles brigariam por causa de uma das várias mulheres por quem Debussy se apaixonou perdidamente) e frequentador dos mesmos salões, podemos imaginar que Chausson tenha ouvido uma versão preliminar do Fauno enquanto ele próprio orquestrava seu Poema em 1893. Há uma versão para tenor e uma para soprano. Aqui, quem canta é a diva Jessye Norman, aos 36 anos de idade. E nas melodias vocais, bem como às vezes na orquestra nos momentos dominados pelas cordas, Chausson retoma com força a sonoridade wagneriana. No Poema para violino e orquestra (1896), ela também alterna entre as polaridades francesa e alemã. É como se Wagner fosse um vício para esses franceses como Chausson, Fauré e Debussy: fugiam dele mas depois voltavam com evidente prazer.

As fotos acima são capas dos discos originais dos anos 1980 e 90. A gravadora francesa Erato, sumida desde 2001, ressurgiu em 2013 como um braço da Warner e lançou esta caixa de Armin Jordan em 2016, caixa da qual selecionamos apenas alguns CDs. Talvez voltemos algum dia com outras raridades de Jordan/Erato: Chabrier, Fauré, Franck…

O jovem Guillaume Lekeu

Ernest Chausson (1855-1899); Guillaume Lekeu (1870-1894)
1 Chausson: Viviane Op. 5 (1882)
2 Chausson: Poème de l’amour et de la mer Op. 19 : I. La fleur des eaux (1893)
3 Chausson: Poème de l’amour et de la mer Op. 19 : II. Interlude (1893)
4 Chausson: Poème de l’amour et de la mer Op. 19 : III. La mort de l’amour (1893)
5 Chausson: Poème pour violon et orchestre Op. 25 (1896)
6 Lekeu: Fantaisie sur deux airs populaires angevins (1892)
7 Lekeu: Adagio pour quatuor d’orchestre, Op. 3 (1891)
Jessye Norman, soprano (2-4)
Jean Moulière, violin (5)
Sinfonieorchester Basel (1)
Orchestre Philharmonique de Monte-Carlo (2-7)
Armin Jordan

Paul Dukas (1865-1935), Claude Debussy (1862-1918)
1 Dukas: L’apprenti sorcier (1897)
2 La procession nocturne, Op. 6 (1910)
3 Debussy: Fantaisie pour piano et orchestre: I. Andante – Allegro (1890)
4 Debussy: Fantaisie pour piano et orchestre: II. Lento e molto espressivo (1890)
5 Debussy: Fantaisie pour piano et orchestre: III. Allegro molto (1890)
6 Debussy: Première rapsodie pour clarinette (1911)
7 Debussy: Prélude a l’après-midi d’un faune (1894)
Anne Queffélec, piano (3-5)
Antony Morf, clarinette (6)
Nouvel Orchestre Philharmonique de Radio France (1)
Orchestre Philharmonique de Monte-Carlo (2-6)
Orchestre de la Suisse Romande (7)
Armin Jordan

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O auditório exclusivo da PQP Corp. em Monaco, que de vez em quando emprestamos para a Orquestra de Monte-Carlo

Pleyel

.: interlúdio :. John Coltrane: Olé Coltrane, Ballads

A música de John Coltrane’s é um grito de revolta contra a frieza do nosso mundo.” (Willie Gschwedner, resenha de um concerto em 27/11/1962)

Aqui, dois álbuns de Coltrane que, apesar de muito diferentes, foram gravados a poucos meses de distância. Ele e seus parceiros deram uma no cravo e outra na ferradura. Em Olé Coltrane temos jazz bastante inovador, em um formato maior do que o seu habitual quarteto, expandido aqui com dois músicos nos sopros: Eric Dolphy (flauta e sax) e Freddie Hubbard (trompete). E igualmente importante: aqui temos dois baixos, um de cada lado da gravação em stereo. Olé, faixa que ocupava todo o lado A do LP, utiliza harmonias que acenam para a música espanhola, como havia feito Miles Davis um ano antes (Sketches of Spain). E com um amplo protagonismo para os dois baixistas (Reggie Workman e Art Davis), que têm tempo para mostrar uma ampla gama de sonoridades, tanto usando os dedos como também com arco. No lado B – ao contrário dos discos pop – a sonoridade é mais familiar, com melodias assobiáveis como a de Aisha, melodia introduzida pelo sax alto de Eric Dolphy, enquanto Coltrane explora camadas mais subterrâneas, aqui no sax tenor (que ele usa no lado B, enquanto no lado A era o sax soprano).

Os baixistas Reggie Workman (foto) e Art Davis tocam escandalosamente bem na faixa-título de Olé

Olé Coltrane (1961)
1. Olé (John Coltrane) – 18:13
2. Dahomey Dance (John Coltrane) – 10:49
3. Aisha (McCoy Tyner) – 7:37

John Coltrane — soprano saxophone on “Olé”; tenor saxophone on “Dahomey Dance” and “Aisha”
Freddie Hubbard — trumpet
Eric Dolphy — flute on “Olé”; alto saxophone on “Dahomey Dance” and “Aisha”
McCoy Tyner — piano
Reggie Workman — bass
Art Davis — bass on “Olé” and “Dahomey Dance”
Elvin Jones — drums
Recorded May 25, 1961, New York City

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Já em Ballads, Coltrane e seu grupo acenaram para um público que apreciava musicais da Broadway e filmes de Hollywood, o que eles já haviam feito em My Favorite Things. Esse álbum me lembra o tipo de jazz que vinha à minha cabeça quando muito jovem, combinando com vinhos tintos ou um pesado whisky sem gelo, em reunião de pessoas de classe média alta com uma bela vista para as montanhas ou para o mar. Não por acaso, todos os standards gravados em Ballads são de compositores brancos (tipo de análise mais comum hoje em dia do que nos anos 1960, quando isso poderia passar batido num álbum de jazz gravado por músicos negros. Hoje não passa mais como detalhe.)

Com o baixo e a bateria aqui bastante “quadradinhos” fazendo o ritmo – ao contrário de Olé Coltrane em que o ritmo é tudo menos previsível – quem brilha nos arranjos é o pianista McCoy Tyner, com sua chance de tocar de forma mais suave, menos percussiva do que na maioria dos álbuns que ele gravou. Quando o sax está fazendo as melodias que podemos facilmente cantarolar (“Too young to go steady…”), o piano vai enchendo os espaços vazios com blue notes e outras intervenções de extremo bom gosto e, como já dito acima, sem chocar os ouvidos mais conservadores. Se a música de John Coltrane e de seus fiéis escudeiros passou por mudanças, jornadas em busca de novos sons e expressões, e é claro que passou por muito disso, também devemos lembrar que o olhar estritamente evolucionista é uma apreensão rasa: assim, entre o John Coltrane de Olé (1961) e o de A Love Supreme (1964), temos o de Ballads.

Ballads (1963)
1. Say It (Over and Over Again)”(Jimmy McHugh) – 4:18
2. You Don’t Know What Love Is (Gene DePaul) – 5:15
3. Too Young to Go Steady (Jimmy McHugh) – 4:23
4. All or Nothing at All (Arthur Altman) – 3:39
5. I Wish I Knew (Harry Warren) – 4:54
6. What’s New? (Bob Haggart) – 3:47
7. It’s Easy to Remember (Richard Rodgers) – 2:49
8. Nancy (With the Laughing Face) (Jimmy Van Heusen) – 3:10

John Coltrane – tenor saxophone
McCoy Tyner – piano
Jimmy Garrison (#1-6, 8), Reggie Workman (#7) – bass
Elvin Jones – drums
Recorded December 21, 1961; September 18 and November 13, 1962

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McCoy Tyner e John Coltrane em 1963

Pleyel

Peteris Vasks (1946): Obras para Piano (R. Zarins)

Minimalismo: uma palavra de significado meio vago, que encaixa com muitos fenômenos musicais diferentes, mas é a palavra que temos para descrever boa parte da música de concerto das últimas décadas. O bom inimigo do ótimo. A palavra tem sido usado para compositores bastante diferentes entre si, como:

– O hippie californiano Terry Riley, com sua inspiração no improviso do jazz e das ragas hindus e na sonoridade dos sintetizadores;
– O também norte-americano Philip Glass, grande compositor de trilhas sonoras;
– O polonês Henryk Górecki, que na década de 1970 adotou um estilo mais simples e teve um sucesso estrondoso com sua 3ª Sinfonia, que vendeu milhões de cópias;
– O estoniano Arvo Pärt, estudioso do cantochão medieval e famoso por suas obras corais com repetições modais e hipnóticas que parecem andar em círculos;

E também Pēteris Vasks, nascido na Letônia, país vizinho à Estônia de Pärt. Ambos têm em comum a religiosidade cristã, que foi abafada durante o período soviético. E como vocês sabem, o que é proibido é mais gostoso. Um pouco mais jovem que esses outros citados, Vasks aparece nesse disco recente com uma obra de juventude, uma mais recente e uma novíssima, composta durante o período da pandemia de COVID-19.

Na obra de juventude, Cycle, em quatro partes, Vasks apresenta um tema em cada movimento e depois não se preocupa muito em desenvolvê-lo, tampouco faz repetições infinitas como Riley ou Glass. O que ele faz é dissecar a melodia em suas partes, usando para isso não só o teclado do piano, mas também ataques nas cordas do instrumento, técnica que surgiu por volta de 1920 com o norte-americano Henry Cowell e depois muito utilizada por John Cage. Graves assustadores, agudos brilhantes, temos um amplo espectro sonoro sustentado sobre ideias melódicas mais ou menos simples.

Seguindo a cronologia do compositor, a obra intermediária, estreada aos poucos entre 1980 e 2008, reflete as quatro estações, do ponto de vista de um habitante de terras muito mais frias do que a Itália de Vivaldi. Lendo as palavras do compositor no encarte do álbum, ficamos sabendo, por exemplo, que a primavera inclui ainda alguns momentos de neve alternando com o nascer do sol na floresta… E que no fim do último movimento (outono), temos também as primeiras neves que antecedem o inverno. A vida é assim na Letônia: três estações com neve, uma sem.

E a primeira obra do álbum, cronologicamente a mais recente, também está ligada ao mundo animal e vegetal: “A voz do Cuco – Elegia de Primavera”. Nas notas do álbum, ficamos sabendo inclusive que Vasks continuou a composição dessa peça enquanto estava se recuperando da COVID-19, ainda antes das vacinas chegarem… Felizmente Vasks conseguiu atravessar esses mares revoltos e terminar sua composição, que ele resume assim: “Em Amatciems, onde temos nossa casa de campo, há muitos cucos. Um pássaro maravilhoso.”

PĒTERIS VASKS (b. 1946): Piano Works
1. Cuckoo’s Voice. Spring Elegy (Dzeguzes balss. Pavasara elēģija) (2021)*
2-5. Cycle (Zyklus) (1976)*
I. Prologue 3:21
II. Nocturne 3:59
III. Drama 3:11
IV. Epilogue 5:24
6-9. The Seasons (Gadalaiki)
I. White Scenery (Baltā ainava) (1980)
II. Spring Music (Pavasara mūzika) (1995)
III. Green Scenery (Zaļā ainava) (2008)
IV. Autumn Music (Rudens mūzika) (1981)
*World première recordings
Reinis Zariņš, piano

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O compositor e o pianista

Pleyel

Frédéric Chopin (1810-1849): Mazurkas (Cor de Groot) / Variações “Là ci darem la mano”, Op. 2 (Moreira Lima)

A mazurka é um tipo de dança folclórica polonesa de compasso ternário. Nesta gravação das Mazurkas, Cor de Groot utiliza um piano Pleyel, que era a marca preferida por Chopin. Para casa de campo de George Sand em Nohant, por exemplo, foram encomendados dois instrumentos Pleyel: um piano de cauda para Chopin e um piano de armário para Sand e sua filha Solange. Entre os convidados em Nohant estava o pintor Eugène Delacroix, que descreveu em uma carta:

« Par instants, il vous arrive, par la fenêtre ouverte sur le jardin, des bouffées de musique de Chopin, (…) qui se mêlent au chant des rossignols et au parfum des roses. » Auprès de son ami Pierret, Delacroix se félicitait de sa vie de couvent: «Nous attendions Balzac qui n’est pas venu, et je n’en suis pas fâché. C’est un bavard (…). J’ai des tête-à-tête à perte de vue avec Chopin que j’aime beaucoup et qui est homme d’une distinction rare. »

“De vez em quando, pela janela que dá para o jardim, nos chegam sopros de música de Chopin, (…) que se misturam com o canto dos rouxinóis e o perfume das rosas.” Com seu amigo Pierret, Delacroix felicitou-se por seu isolamento: “Estávamos esperando por Balzac que não veio, e não lamento. Ele é um falador (…). Tenho incontáveis encontros a dois com Chopin, de quem gosto muito e que é um homem de rara distinção.”

Frédéric Chopin por Eugène Delacroix

Como vocês sabem, a escritora George Sand teve uma ligação apaixonada e tumultuosa com Chopin por cerca de dez anos. Gosto de imaginar essas mazurkas na casa de George Sand, seja essa casa de campo ou sua casa em Paris, a poucos minutos a pé de Montmartre e do Moulin Rouge (mas o famoso cabaré só abriria em 1889). Com companhias como Delacroix e Balzac… (mas talvez o genial autor das Ilusões Perdidas, viciado em café e fã de Beethoven, não tivesse a calma suficiente para apreciar essas obras.) É nesse tipo de ambiente que as mazurkas de Chopin soam bem, e não em salas de concerto imensas. O que foi dito nesta postagem sobre as obras de Brahms para piano a quatro mãos vale também aqui: o piano Pleyel do século XIX combina perfeitamente com o caráter íntimo das mazurkas, com seu gosto agridoce feito de alegrias suaves e de dores inconfessáveis.

O holandês Cor de Groot (1914-1993) mostra aqui que, entre os charmes das mazurkas, estão os ornamentos: trinados, mordentes e outros tipos de alternância entre notas próximas, que no timbre muito característico do piano Pleyel chegam a lembrar de longe o som dos ornamentos no cravo de Bach ou Scarlatti. É música para se ouvir com amigos, familiares e outras pessoas queridas, não combina com os grandes palcos.

Esses dois discos fazem parte de uma daquelas caixas de vários CDs, neste caso, da gravadora Brilliant Classics, famosa por comprar e relançar gravações de outros selos. Assim, por um desses acasos, as 41 mazurkas gravadas por Cor de Groot (ele não gravou as últimas, op.67 e 68, sabe-se lá por quê) são seguidas por uma obra de juventude de Chopin. As Variações sobre “Là ci darem la mano”, para piano e orquestra (opus 2) foram escritas ainda na Polônia, em 1827, sobre um tema da ópera Don Giovanni de Mozart.

A interpretação dessa obra tão pouco tocada fica a cargo do pianista brasileiro Arthur Moreira Lima e da Orquestra Filarmônica de Sofia, na Bulgária. Enquanto a orquestração é leve e mozartiana, Moreira Lima faz uma leitura intensa, não hesitando em levar ao pé da letra as marcações do compositor como “con forza e prestissimo” ou “risoluto“. Nada poderia ser mais diferente do caráter íntimo, familiar, ao pé do ouvido, das mazurkas por Cor de Groot. Essa escolha da Brilliant Classics de juntar esses dois repertórios é ao mesmo tempo estranha, contraditória e interessante. Após o Chopin sofisticado, tocando para amigos da alta sociedade parisiense como Sand e Delacroix e mais algumas condessas e marquesas, o Chopin jovem virtuose dos palcos – um Chopin raro, pois foram poucas as suas apresentações em grandes teatros, ao contrário de Liszt ou Mozart que tocaram concertos com orquestras até perder a conta.

No diário de Clara Wieck (futura Clara Schumann) em 1831 ela anotou: “As Variações op. 2 de Chopin, que aprendi em oito dias, são a peça mais difícil que já vi ou toquei até agora.” Robert Schumann, seu futuro marido, escreveu, no mesmo ano e sobre a mesma obra: “Tirem os chapéus, cavalheiros: um gênio!”

Frédéric Chopin (1810-1849): Mazurkas quase completas / Variações “Là ci darem la mano”, Op. 2

41 Mazurkas: Op. 6, Op. 7, Op. 17, Op. 24, Op. 30, Op. 33, Op. 41, Op. 50, Op. 56, Op. 59, Op. 63
Cor de Groot – Grand Piano Pleyel 1847

Variations On “La Ci Darem La Mano” From Mozart’s Don Giovanni, In B Flat Major Op. 2 For Piano And Orchestra
Arthur Moreira Lima – Piano; Orquestra Filarmônica de Sofia, Dimitri Manolov

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Piano Pleyel (1843) que Chopin tocava na casa da Condessa Natalia Obreskoff. Entre os pertences da condessa, se encontram manuscritos de duas mazurkas assinados pelo compositor

Outra excelente gravação de Chopin em piano de época: este álbum de Lubimov tocando um piano Erard (1837). E no aniversário de Moreira Lima, não deixem de ouvi-lo nas Valsas de Esquina recém-postadas…

E vamos às curiosidade inúteis das cenas da vida parisiense: assim como o Moulin Rouge, a loja da Pleyel, 20, rue Rochechouart, fica a menos de 15 minutos a pé da casa parisiense de George Sand. Esta casa, aliás, hoje é o “Museu da Vida Romântica” – Musée de la Vie Romantique

Hoje é aniversário de 82 anos de Arthur Moreira Lima. Parabéns!

Pleyel

Sergei Prokofiev (1891-1953): Sonata para Piano nº 9, Visions Fugitives, Toccata, Estudos, etc. (Raekallio)

A nona e última sonata para piano de Prokofiev foi composta entre 1945 e 47, poucos anos após as “sonatas de guerra”. Mas é bastante diferente daquelas: mais introspectiva, alternando entre melodias líricas tranquilas e assobiáveis e algumas passagens mais apressadas, ela não tem arroubos de virtuosismo tão impressionantes quanto as sonatas nº 6 e 7. Lembra um pouco as últimas sonatas de Beethoven no sentido de ser uma música mais madura, um pouco difícil de se gostar, mas com muitas recompensas para quem se aventurar. Foi dedicada a Sviatoslav Richter e aparentemente era uma das preferidas dele, que a manteve no seu repertório por muito tempo, junto com as sonatas nº 2, 4, 6, 7 e 8.
Compostas em 1915-1917, as Visões Fugitivas de Prokofiev são peças curtas e poéticas, assim como os Prelúdios de Debussy e os Gitanjali-Hymner de Langgaard, todos eles publicados na mesma década. Mas ao contrário das miniaturas de Debussy e de Langgaard, com títulos poéticos como “A catedral submersa”, “A porta do vinho” ou “Vento sem repouso”, as curtas obras de Prokofiev têm apenas os nomes dos andamentos (“Ridicolosamente”, “Allegretto tranquillo”, “Con una dolce lentezza”…) de forma que elas podem significar o que o pianista e o ouvinte quiserem que elas signifiquem. E a ordem das peças tradicionalmente foi livre: pianistas como V. Sofronitsky, S. Richter, E. Gilels e mais recentemente N. Freire e D. Thai-Son, todos esses selecionaram umas 8 ou 10 dessas peças em seus recitais. Os três primeiros conheceram Prokofiev, então supomos que o compositor aprovava essa seleção que, para alguns puristas, pode parecer estranha.

Sobre os Sarcasmos, op. 17, e os Contos de uma velha avó, op. 31, sejamos sinceros: pouca gente se lembra deles a não ser nesse tipo de integral. Os Estudos são apenas um pouco mais conhecidos. Já a Toccata, op. 11 é uma peça de bravura escolhida por muitos jovens pianistas: V. Horowitz e M. Argerich a gravaram aos 26 e aos 19 anos respectivamente.

Sobre as 10 Peças de Romeu e Julieta, Op. 75, a história é longa e mereceria ser contada em detalhes. Mas vou resumir: essa versão para piano é correlata à 1ª versão do balé, de 1935, jamais encenado por um motivo que chocou o regime soviético: era um Romeu e Julieta alegre e com desfecho positivo em que o casal ia embora dançando, felizes para sempre. Alguém no regime stalinista deve ter achado que o final era uma crítica a fulano ou sicrano… Podemos (ou melhor, não podemos!) imaginar as paranoias que rolavam naquele contexto. Enfim, a obra não foi encenada, o dramaturgo responsável pelo libretto (Adrian Piotrovsky) ficou mal falado e, após outro escândalo com um balé de Shostakovich, foi preso e fuzilado em novembro de 1937. Como dizia o poeta: “Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas.”

Isso para não acharmos que a vida de Prokofiev foi moleza. Mas não esperem aqui uma música pesada e fria como o ar em Moscou: ao contrário de algumas das sinfonias de Prokofiev que expressam uma seriedade maior, aqui o clima é frequentemente saltitante e as interpretações de Raekallio pendem sempre para os andamentos rápidos.

A escrivaninha e demais móveis de Prokofiev nos anos 1940-50

Sergey Prokofiev (1891-1953) – Complete Piano Sonatas, Visions Fugitives, etc. – CDs 3-4 de 4 (Raekallio)

CD 3
1-4 – Sonata No.9 in C major Op.103: I. Allegretto, II. Allegro strepitoso, III. Andante tranquillo, IV. Allegro con brio, ma non troppo presto
5-8 – 4 Etudes, Op. 2: I. Allegro, II. Moderato, III. Andante Semplice, Presto, IV. Presto Energico
9 – Toccata In D Minor, Op. 11
10-14 – Sarcasms, Op. 17

CD 4
1-20 – Visions Fugitives, Op. 22
21-24 – Old Grandmother’s Tales, Op. 31
25-34 – 10 Pieces From Romeo And Juliet, Op. 75

Matti Raekallio, piano
Original releases: 1988-1999

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Piano Bechstein que pertenceu a Sergey Prokofiev

As fotos nesta postagem são da casa onde Prokofiev viveu de 1947 a 53. Hoje é um museu. Saiba mais em https://www.moscovery.com/sergei-prokofiev-museum/

Pleyel

Sergei Prokofiev (1891-1953): Sonatas para Piano, nº 1 a 8 (Raekallio)

Ao contrário de gente como Dutilleux, Berg, Bacewicz ou Shostakovich, que compuseram apenas uma ou duas sonatas para piano, Prokofiev nos deixou nove sonatas. Ouvi-las em sequência nos diz muito sobre sua trajetória musical.

A 1ª sonata (1907-1909) é praticamente uma sonata de Scriabin composta por Prokofiev. O uso nervoso das dissonâncias e do cromatismo, assim como a forma concentrada em um único movimento, lembra muito as últimas sonatas desse compositor russo 20 anos mais velho que Prokofiev, como a 7ª (aqui) ou a 9ª (aqui). É um Prokofiev que não soa exatamente como Prokofiev, mas não deixa de ser fascinante e é uma pena que pouca gente toque essa sonata de juventude.

A 2ª sonata, estreada pelo compositor ao piano em 1914, já tem várias características que costumamos associar a Prokofiev: o sarcasmo e a presença de algumas passagens mecânicas, meio industriais, típicas daquele período em que Villa-Lobos e Honneger tentavam expressar musicalmente o andar de um trem.

A 3ª e a 4ª sonata foram finalizadas em 1917, pouco antes da 1ª Sinfonia (“Clássica”), mas se baseiam em melodias antigas, daí o subtítulo “de velhos cadernos”. A 3ª, concentrada em um só movimento, é mais agressiva, enquanto a 4ª é mais calma e neoclássica.

A 5ª, também um pouco introvertida e neoclássica, é uma das raras composições para piano solo do período em que Prokofiev circulava entre Paris e os Estados Unidos, fugindo das guerras revolucionárias do período pós-1917. Nesse período, ele se dedicou mais a obras para os palcos: balés e óperas, além dos brilhantes Concertos para Piano nº 3, 4 e 5.

As chamadas “sonatas de guerra”, nº 6, 7 e 8, foram compostas a partir de 1939 (pouco antes da URSS entrar na 2ª Guerra). Prokofiev já vivia em Moscou desde 1936 e essas obras logo alcançaram um imenso sucesso de público e de crítica, junto com a 5ª sinfonia e o balé Cinderella (ambos de 1944). Na 6ª sonata, a valsa lenta (Tempo di valzer lentissimo) é um dos seus momentos mais sublimes e nesta gravação, Raekallio toca menos lento do que outros, como Pogorelich, mas ele faz a valsa se desenrolar com um tempo rubato, uma respiração muito suave, mesmo que não tão devagar.

A 7ª sonata consegue ser, ao mesmo tempo, intelectualmente estimulante e exibicionista, deixando plateias boquiabertas com as proezas pianísticas, sobretudo no último andamento, “precipitato” em 7/8, com harmonias que lembram também o jazz. A 8ª sonata, mais calma e com melodias muito bonitas, começa “andante dolce”, depois “sognando” e apenas no 3º movimento, “vivace”, temos um pianismo exuberante.

O pianista finlandês Matti Raekallio mostra aspectos novos dessas sonatas: não é uma daquelas gravações integrais em que a música soa meio uniforme e mecânica, pelo contrário, as sonoridades são bem variadas, às vezes pesadas e extravagantes, às vezes com um fraseado sutil que lembra a voz humana.

Sergey Prokofiev (1891-1953) – Complete Piano Sonatas, Visions Fugitives, etc. – CDs 1-2 de 4 (Raekallio)
CD 1
1 – Sonata No.1 in F minor Op.1 – Allegro
2 – Sonata No.2 in D minor Op.14 – I. Allegro, ma non troppo
3 – II. Scherzo. Allegro marcato
4 – III. Andante
5 – IV. Vivace
6 – Sonata No.3 in A minor Op.28 – Allegro tempestoso
7 – Sonata No.4 in C minor Op.29 – I. Allegro molto sostenuto
8 – II. Andante assai
9 – III. Allegro con brio, ma non leggiero
10 – Sonata No.5 in C major Op.38 – I. Allegro tranquillo
11 – II. Andantino
12 – III. Un poco allegretto

CD 2
1 – Sonata No.6 in A major Op.82 – I. Allegro moderato
2 – II. Allegretto
3 – III. Tempo di valzer lentissimo
4 – IV. Vivace
5 – Sonata No.7 in B-flat major Op.83 – I. Allegro inquieto
6 – II. Andante caloroso
7 – III. Precipitato
8 – Sonata No.8 in B-flat major Op.84 – I. Andante dolce. Allegro moderato
9 – II. Andante sognando
10 – III. Vivace

Matti Raekallio, piano
Original releases: 1988-1999

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Retrato de Prokofiev por Anna Ostroumova – Paris, 1926

Pleyel

Grażyna Bacewicz (1909-69): Sonata, Sonatina, Estudos, etc. (Ewa Kupiec, piano)

Grażyna Bacewicz (1909-69) nasceu em Łódź, cidade de onde também vieram Artur Rubinstein e Roman Polanski. Ela foi aluna de Nadia Boulanger em Paris e muito admirada por seu colega polonês Witold Lutosławski (1913-1994).

Bacewicz tocava piano e principalmente violino: foi spalla na Orquestra da Rádio Polonesa de 1936 a 1938. Depois, passou a se dedicar mais à composição: sua obra inclui sete concertos para violino (os cinco primeiros, com ela como solista na estreia), sete quartetos de cordas, dois quintetos com piano… e obras para piano solo, normalmente estreadas pela própria compositora como pianista, exceto as últimas obras (10 Estudos; Pequeno Tríptico), de um período em que sua saúde precocemenete piorou após um acidente de carro em 1954. Após o acidente ela tocou bem menos violino e piano, mas continuou compondo. Suas obras para piano recentemente foram gravadas em um álbum muito elogiado pela crítica:

Ela creditou sua produtividade a ter um ‘motorek’, ou motorzinho, que a mantevinha em atividade. Ela era rápida, enérgica, focada. E embora haja um risco em confundir biografia e música, é difícil não ouvir esse impulso propulsor nos Dez Estudos, executados com convicção pelo pianista sueco Peter Jablonski.
Ele faz parte de uma série de pianistas que deram a devida atenção a Bacewicz, incluindo a gravação de 2011 de Krystian Zimerman, e discos recentes de Ewa Kupiec, Morta Grigaliūnaitė e Joanna Sochacka. (BBC Music, abril de 2022)

Os Estudos aqui gravados lidam com uma variedade de desafios técnicos frequentemente encontrados na música para piano da primeira metade do século XX. Jablonski é sensível ao caráter expressivo inato de cada estudo, destacando a coloração sutil e a vitalidade rítmica.
Bacewicz se expressa de forma sucinta, e Jablonski elucida suas estruturas tensas com clareza e precisão. (Gramophone, 2022)

Ouvi o disco de Jablonski e também ouvi o da pianista polonesa Ewa Kupiec. Gostei dos dois, mas alguns dos elogios dos críticos ingleses (“sensível ao caráter expressivo inato de cada estudo”…) me parecem se aplicar mais ainda à gravação realizada na Alemanha no ano 2000 por Ewa Kupiec.

De fato, Bacewicz tem uma tendência às construções sucintas e a curta Sonatina (1955), gravada por Kupiec (e que não aparece no álbum de Jablonski) é uma das obras que mais me encantam aqui, junto com os Estudos (1955-57) e a Sonata nº 2 (1953). Essa última já apareceu neste blog na interpretação do também polonês Krystian Zimerman, mais majestosa e grandiosa, enquanto Ewa Kupiec acentua mais as dissonâncias. Se vocês quiserem explorar mais a discografia de Ewa Kupiec, saibam que ela gravou os Concertos de Chopin com o maestro Stanislaw Skrowaczewski (1923-2017), teve um duo por muito tempo com a violinista Isabelle Faust e gravou (com Faust e também com orquestras) muita gente do século XX, incluindo Schnittke, Lutosławski, Janáček… Muita música para sairmos daquele arroz com feijão de sempre.

Grażyna Bacewicz (1909-1969): Obras para Piano
1-3 Sonata No. 2 (1953)
4 Scherzo. Vivace (1934)
5 Rondino (1953)
6-8 Sonatina (1955)
9-16 Children’s Suite (1933)
17-19 Drei Burlesken (1935)
20-21 2 Etüden (1955)
22-24 Kleines Triptychon (1965)
25-34 10 Etüden (1956-1957)

Ewa Kupiec, piano
Recording: SWR Kammermusikstudio, Germany, 2000

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Bacewicz com seu outro instrumento favorito. Um charme no olhar e um penteado típico da época…

Pleyel

Almeida Prado (1943-2010): Concertos e Aurora para Piano e Orquestra; Cartas Celestes I (Rubinsky/OFMG; Scopel)

No panorama de obras para piano do século XX que tenho trazido ao blog, depois dos nomes de Villa-Lobos (proibido aqui no blog até que sua música chegue ao domínio público), de Nazareth (com várias postagens recentes: aqui, aqui, aqui) e de Mignone, logo me veio à mente o de Almeida Prado, que andava sumido aqui do blog há uns anos… Então preparei logo uma dobradinha: sua obra mais famosa, Cartas Celestes nº I, e uma série de obras para piano e orquestra recentemente gravadas.

Nascido em Santos/SP, Almeida Prado é um desses compositores que apresentam exigências imensas a todos os músicos da orquestra, ou quase todos. Além, é claro, do que ele exige aqui da pianista Sonia Rubinsky que, após gravar pela Naxos todo o piano solo de Villa-Lobos, aumenta com este álbum sua discografia pela mesma gravadora.

Assim como nas Cartas Celestes, no Concerto para Piano nº 1 (escrito em 1983 por encomenda de Antonio Guedes Barbosa) o compositor não parece preocupado com o suor que os músicos passarão para criar os mundos musicais que ele imagina, e isso é talvez um dos motivos para este concerto ser tão pouco tocado: é muito comum que, ao escolherem música contemporânea para sua programação, as orquestras dêem preferência a concertos mais fáceis ou para formações menores.

A gravação de Sonia Rubinsky com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, portanto, estreou as obras em disco, brilhando solitária e nos mostrando os vários motivos para outras orquestras e solistas não terem coragem de se aventurar: Rubinsky tira do piano incontáveis sons que exigem uma longa dedicação à exploração dos timbres do seu instrumento. E a orquestra, como já falamos, não leva o acompanhamento na flauta, pelo contrário.

As Cartas Celestes I já foram gravadas por outros grandes pianistas como Roberto Szidon, mas a gravação ao vivo do então jovem pianista Aleyson Scopel em 2008 é tão boa que depois ele seria convidado pela Naxos para gravar a integral das Cartas Celestes para piano. A gravação que trazemos aqui é a primeira, ao vivo. O próprio Almeida Prado descreveu assim a interpretação dessa obra por Scopel: “Saíram diretamente do Céu! Chuvas de meteoros, radiantes constelações, nebulosas resplandecentes, e um vigor transcendental marcaram a genial interpretação deste imenso pianista. Maravilhoso!”

Deixo o compositor seguir na sua descrição da obra:

“Cartas Celestes é das minhas obras a mais tocada, e a mais comunicativa para o público. Composta em 1974, para o Planetário Municipal de São Paulo, foi posteriormente re-escrita. Utilizei 24 acordes diferentes como as 24 letras do alfabeto grego, e com isso os relacionai às estrelas que formam as constelações. Nesta obra procuro retratar o céu do Brasil na Primavera. Para confecção sonora deste grande mural celeste, utilizei os recursos mais extravagantes possíveis e inusitados.
O piano é uma máquina que fabrica as mais variadas cores para os meteoros, as constelações, os aglomerados, as nebulosas, e o êxtase solar final, onde o piano parece explodir de tal intensidade e vertiginosa velocidade no agudo.”

“Ao fazer uma obra, você não pode dizer assim: ‘eu vou compor uma obra-prima’. A obra-prima não é uma coisa premeditada. Ela acontece independente da sua vontade. Por exemplo, As Cartas Celestes número um, que considero a minha obra-prima, aconteceu por acidente. Foi uma encomenda do José Luiz Paes Nunes, em 1974, que impunha condições de rapidez. Me inspirei no livro do Rogério Mourão e fiz uma música de fundo para ser descartável. E a obra ficou. É a mais tocada das minhas peças e a mais celebrada. Eu não tive culpa.” (Almeida Prado)

O pianista José Eduardo Martins, que conheceu bem o compositor e estreou mais de uma obra dele, nos dá mais algumas pistas:
“Esse debruçar maior em França deu-se sob a orientação de Nadia Boulanger e de Oliver Messiaem, dois ícones na música no século XX. Em Darmstadt soube apreender conteúdos de György Ligeti e Lukas Foss. Seria todavia Messiaen o compositor que mais fortemente marcaria a escrita de Almeida Prado, assim como acentuaria no músico santista o olhar místico, pois parte considerável da obra de nosso pranteado autor tem forte conotação religiosa. A inclinação ao sagrado está traduzida nos vários gêneros musicais, orquestra e câmara. Seria entretanto nas criações para coro e sobretudo na vasta produção para piano – seu instrumento eleito – que Almeida Prado revelaria por inteiro esse olhar místico, que perduraria durante décadas até os dias finais.”
Fonte: O blog de José Eduardo Martins.

José Antônio de Almeida Prado (1943-2010):

Piano Concerto no. 1 (1982-83)
1 Apelo I –
2 I. Heróico, épico (variações) –
3 Monólogo (cadência) –
4 Interlúdio –
5 II. Transparente floral
6 III. Granítico, intenso (tocata)
7 Interlúdio: Onírico, entre a realidade e a fantasia –
8 Memorial
9 Apelo II

10. Aurora (1975)

Concerto Fribourgeois (1985)
11 Introduzioni –
12 Recitativo I
13 Passacaglia –
14 Recitativo II –
15 Toccata furiosa
16 Recitativo III
17 Arioso
18 Moto perpetuo

Sonia Rubinsky, piano
Orquestra Filarmônica de Minas Gerais – Fabio Mechetti
Recorded: May 2019, Sala Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
World Premiere Recordings

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Sonia Rubinsky fazendo a clássica pose de pianista (mão no rosto)

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Almeida Prado: Cartas Celestes I (1974)

1. Pórtico do Crepúsculo
2. Via Láctea
3. Pórtico da Aurora

Aleyson Scopel ao vivo na Sala Cecília Meireles – Rio de Janeiro
9 de novembro de 2008

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Almeida Prado nos anos 1970 (Jornal do Brasil)

Pleyel

Francisco Mignone (1897-1986): 12 Valsas de esquina (Arthur Moreira Lima, piano)

Os pais eram imigrantes da Itália e ele que ajudava a família. Ele começou a trabalhar com dez anos de idade tocando nas ruas para sobreviver.
[…] da composição ele não ganhava dinheiro. O Mignone escrevia pelo prazer de compor, ele não tinha aquele jeito social de levar a música dele para tocar em recital. Ele sentia um grande vazio quando não compunha.

(M.J.Mignone, viúva do compositor, entrevista a Fernando Reis, 2010)

Compostas entre 1938 e 1943, as Valsas de Esquina de Mignone homenageiam as serestas, choros e concertos noturnos improvisados nas esquinas brasileiras. Homenagem que nunca soa nacionalista no sentido da grandiloquência ingênua, pelo contrário, as influências populares passam para dentro da escrita de Mignone com um ar de simplicidade que não é fácil de ser alcançado. Como nos conta o próprio compositor: “essas Valsas de Esquina, que parecem escritas de um jato só, algumas levaram meses até eu conseguir elaborar e tornar simples, sem parecer uma coisa vazia. Foi muito difícil.”

Vejamos também o que Mignone disse sobre as várias interpretações possíveis das suas valsas. O maestro Roberto Duarte relata que uma vez…

cheguei cedo e fiquei a tocar uma valsa dele ao piano, a Oitava Valsa. Ele chegou por trás de mim, não falou nada e, quando acabei, ele bateu no meu ombro: “Bravo! Bravo! Muito bem!” Alguns meses depois, eu chego atrasado e ele estava tocando a mesma Oitava Valsa, completamente diferente da que eu havia tocado. Disse-lhe: “Maestro, noutro dia eu estava tocando essa valsa, o senhor me elogiou, e disse ‘Muito bem. Você tocou muito bem, meu filho’, mas o senhor toca completamente diferente!” E ele disse: “Mas eu sou outra pessoa. Não quero que minhas composições sejam executadas de uma única maneira. Cada um é um intérprete. Se eu quisesse que minhas composições fossem executadas de uma só maneira, teria gravado todas elas e jogado as partituras fora.” Esse era Mignone.

Entre as principais gravações dessas obras, há algumas valsas avulsas por Arnaldo Estrella com um cantabile que ninguém imita. Há também a gravação pelo próprio Mignone, em 1957 pelo selo Festa, LP que recomendamos fortemente que vocês garimpem nos sebos e similares, pois a digitalização hoje disponível no Spotify não foi bem feita. E, finalmente, a gravação das doze valsas por Arthur Moreira Lima: junto com os discos dedicados pelo pianista a Nazareth, aqui fica clara a fluência de Moreira Lima neste idioma muito brasileiro. Abaixo, temos as notas escritas por Luiz Paulo Horta no primeiro lançamento do disco de Moreira Lima em 1982:

A valsa chegou ao Brasil nos tempos de D. Pedro I pelas mãos de um compositor austríaco, Sigismund Neukomm, professor do Imperador (que também compôs as suas valsas); e saiu da Corte para os salões, espalhando-se por todas as camadas da população. Tanto se podia ver um Carlos Gomes escrever uma Valsa de Bravura, para concerto, como um anônimo, certamente mineiro, rabiscar a Saudades de Ouro Preto.

Lá pelo fim do século, a valsa já estava completamente abrasileirada, sentindo a influência do choro e puxando, por sua vez, a modinha para o compasso 3/4. Nas mãos de Nazareth, ela se torna um delicadíssimo retrato da nossa belle époque – música de salão transformada por um artista genial. Nazareth punha um ouvido em Chopin e outro no que estavam fazendo os chorões. E em Nazareth, o Mignone que Manuel Bandeira chamaria “o rei da valsa” encontrou uma de suas primeiras (e constantes) inspirações.

Rua do Ouvidor, Rio de Janeiro (Marc Ferrez, ca.1890)

Mignone tinha 16 anos quando foi premiado em concurso de composição com uma valsa: Manon. Mais ou menos nessa época pôde ver Nazareth numa loja de música, onde o grande artista, que ninguém imaginava ser um gênio, lia à primeira vista as músicas para piano em que os fregueses pudessem estar interessados – isto é, fazia o papel que pertence hoje ao toca-discos. Um pouco mais tarde, Mignone seguiria para a Europa, onde a sua veia italiana ia ser reforçada por anos de estudo em Milão.

Mas antes disso ele foi seresteiro – e assim é que começaram a nascer as Valsas de Esquina. “Como flautista – contou a sua primeira mulher – ele ia pelas ruas da capital paulista, altas horas da noite, tocando chorinhos acompanhado pelos violões e cavaquinhos dos demais companheiros. Isso influiu para que ele, mais tarde, compusesse uma série de valsas, denominadas ‘de esquina’, em que a maneira popular transparece lindamente expressa”.

Vendedor de vassouras em rua do centro da cidade de São Paulo (Vincenzo Pastore, ca.1910)

Mignone dá a sua própria versão: o nome dessas valsas, segundo ele, foi dado por Mário de Andrade, pois “lembram aquelas valsas que, à noite, debaixo dos bruxoleantes lampiões a gás das esquinas, os chorões tocavam em suas serenatas às amadas que, atrás das venezianas ou cortinas, ficavam ouvindo. As esquinas serviam de refúgio, caso aparecesse um parente na rua para afugentar os boêmios perturbadores do silêncio noturno”…

Mignone aproveitou, nessas valsas, modelos da época, e até mesmo a sua experiência de músico popular – quando compunha sob o pseudônimo de Chico Bororó. Mas já na primeira valsa, em dó menor, ele mostra que tinha chegado a um estilo novo, que combina a simplicidade do popular com a sofisticação do clássico. O canto começa na mão esquerda – como nos bordões do violão – o que produz um efeito meio sério, meio brincalhão. Mignone libertava-se da sua fase internacionalista, de todas as paisagens estrangeiras, e voltava a ser um poeta perambulando pelas esquinas.

As doze Valsas de Esquina, compostas nos doze tons menores, são ao mesmo tempo simples e misteriosas. A melodia é simples; mas a harmonia é sutilmente construída.

Francisco Mignone (1897-1986): 12 Valsas de esquina
Valsa Nº 1 em dó menor: Soturno e seresteiro
Valsa Nº 2 em mi bemol menor: Lento e mavioso
Valsa Nº 3 em lá menor: Com entusiasmo
Valsa Nº 4 em si bemol menor: Vagaroso e seresteiro
Valsa Nº 5 em mi menor: Cantando, e com naturalidade
Valsa Nº 6 em fá sustenido menor: Tempo de valsa movimentada
Valsa Nº 7 em sol menor: Moderadamente
Valsa Nº 8 em dó sustenido menor: Tempo de valsa caipira
Valsa Nº 9 em lá bemol menor: Andantino mosso
Valsa Nº 10 em si menor: Lento, romântico e contemplativo
Valsa Nº 11 em ré menor: Moderato
Valsa Nº 12 em fá menor: Moderato – Vivo
Arthur Moreira Lima, piano

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Francisco Mignone, circa 1957

Pleyel