Alessandro Scarlatti (1660-1725): Cantatas para Baixo (Péter Fried)

Um disco para quem quer ouvir um barroco exótico, diferente das centenas de concertos para violino de Vivaldi, cantatas, prelúdios e fugas de Bach… O baixo, como o nome já indica, é a voz mais grave da divisão que já era comumente utilizada nos tempos dos Scarlatti pai e filho. As vozes de  soprano e o alto variavam, segundo os lugares e momentos, entre mulheres, garotos jovens ou homens castrados (castrati, violenta tradição italiana que remontava aos eunucos do Império Bizantino). Mas as vozes de tenor e baixo eram sempre de homens.

As cantatas de A. Scarlatti, assim como antes dele as de Barbara Strozzi e, depois, as de Vivaldi, Händel, Rameau e Hasse eram majoritariamente compostas para vozes mais agudas, de soprano e alto, o que não deixa de ter relação com a ideia geral, naquela época e não só naquela época, de que às mulheres cabia a vida do lar e, aos homens, a vida pública. Pois essas cantatas, escritas para uma ou duas vozes, basso continuo e às vezes um ou dois instrumentos obbligato*, eram música vocal para salões e outros ambientes da intimidade entre amigos, ao contrário da ópera encenada em grandes palcos. Como diz E. Gyenge no libreto do CD, as cantatas de Scarlatti são música de câmara, um diálogo entre cantores e instrumentistas. O texto de cada peça fala fundamentalmente de amor romântico. Nesse ambiente mais privado, não se fazia referência ao casamento e outros sacramentos da Igreja, pelo contrário, as letras dessas cantatas falam de ciúmes entre amantes, de amores “tiranos” e jamais seriam musicadas pelo carola J.S. Bach:

Mi tormenta il pensiero,
mi consuma il desio,
ambo tiranni son del viver mio.

(Me atormenta o pensamento, me consome o desejo, ambos tiranos do meu viver)

Tiranna ingrata, che far dovrò?
Se vuoi ch’io mora, morrò per te

Ma tu ch’altro non brami
ch’il mio duol, il mio pianto e i miei sospiri,

Affanato, tormentato (…) mi conviene di servir

(Tirana ingrata, o que devo fazer? Se queres que morra, morro por ti
Mas não queres nada além da minha dor, choro e suspiros
Faminto, tormentado, (…) me convém servir)

Os assuntos são muito mais próximos dos sujeitos neuróticos de Freud ou Proust do que os textos chapa-branca das cantatas de Bach. Com longos melismas e outras acrobacias vocais dificílimas (e no virtuosismo que exigem dos cantores, Alessandro e Johann Sebastian se aproximam), o homem de voz grave canta amores sofridos que, também em nossos tempos, encontram expressão musical em músicas como o brega. Como cantou Gonzaguinha em 1983, um homem também chora.

E é aí que entra o exótico dessas cantatas em seu tempo, pois a voz de baixo, nas óperas e oratórios, era comumente ligada a personagens poderosos. Alguns exemplos:

Plutão, Senhor do Hades grego (L’Orfeo de Monteverdi, montagem de Harnoncourt em Zurich)

Nas óperas de Monteverdi, são papéis de baixo: Plutão, deus do submundo, em L’Orfeo; Netuno, rei dos mares, em Il ritorno d’Ulisse in patria, enquanto os heróis dessas duas óperas, Orfeu e Ulisses, são tenores que lutam contra a força bruta de gigantes por meio das artes e da inteligência…

A. Scarlatti, em seu oratório Il primo omicidio, reserva o papel de baixo para Lúcifer. Em sua ópera Il Pompeo, o baixo é o imperador Julio Cesar, também transformado em deus na religião romana.

Nas Paixões de J.S. Bach e também nas de C.P.E. Bach, o personagem de Jesus é sempre um baixo, seguindo uma tradição de muitas outras Paixões do norte da Europa como a de Byrd (ca. 1605) e a de Schütz (1666).

No fim do século 18, na Flauta Mágica de Mozart, o poderoso sacerdote Sarastro usa alguns dos baixos profundos mais graves do repertório operístico.

A voz do baixo e sobretudo os baixos profundos, portanto, eram reservados a personagens poderosos, divinos ou demoníacos. As cantatas de Scarlatti para esses cantores, assim, mostram um raramente representado lado íntimo desses homens que, mesmo poderosos e machões, sofriam por amor.

E repito: isso tudo é incomum no mundo musical europeu. Com sua intimidade camerística e pré-romântica, essas cantatas para baixo de A. Scarlatti não têm, que eu saiba, paralelo em nenhuma obra dos outros grandes compositores para voz do seu século (Bach, Händel, Pergolesi, Mozart…) e talvez possam ser chamadas de bisavós dos Lieder de Schubert para voz masculina, como por exemplo a versão para baixo do seu Winterreise (aqui).

Alessandro Scarlatti (1660-1725): Cantatas for Bass
1-3. Imagini d’orrore – para baixo, 2 violinos e continuo
4-11. Splendeano in bel sembiante – para baixo e continuo
12-19. Mentre un zeffiro arguto – para baixo, 2 violinos e continuo
20-23. Mi tormenta il pensiero (Amante parlando con il pensiero) – para baixo e continuo
24-28. Cor di Bruto, e che risolvi? – para baixo e continuo
29-31. Tiranna ingrata, che far dovro? – para baixo, 2 violinos e continuo
32-36. Tra speranza e timore – para baixo, um violino e continuo

Péter Fried (bass)
Savaria Baroque: Piroska Vitárius (violin), Katalin Orosházi (violin), Ottó Nagy (cello), Ágnes Várallyay (harpsichord), Gábor Tokodi (baroque guitar), Pál Németh (artistic director)

Gravado em: Hungaroton Studio, 2006
Partituras editadas por Pál Németh a partir de manuscritos no Conservatórios de Napoli e Paris, Biblioteca de Schwerin e British Museum, London.

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE (mp3 320 kbps)

* O nome obbligato era usado para um instrumento específico que o compositor desejava – no caso das cantatas desde disco, um ou dois violinos – e se opõe ao basso continuo, que podia ser executado por diversos instrumentos graves a depender do que estivesse disponível em cada apresentação e local. Neste disco o continuo é executado por cravo, teorba (um parente do alaúde), violão barroco e violoncelo, com destaque para este último. Outros instrumentos usados para o continuo na época incluíam o órgão (nas igrejas), a viola da gamba e o fagote.

Pleyel

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