Aproveitando que hoje é dia de Natal, publicamos a versão de Herreweghe do Oratório escrito por meu pai. Ah, vocês sabem tanto quanto eu: são seis cantatas bem legais, as primeiras mais legais que as últimas, apesar de que todas são muito boas. Aqui não há o elemento kitsch e mentiroso da festa comercial-religiosa, aqui é Natal mesmo, com a grandiosidade da história inventada e retocada pelos homens.
Elas impressionam pela coerência, riqueza musical e unidade. As seis Cantatas foram apresentadas pela primeira vez em 1734, em Leipzig, uma a uma em cada feriado que antecedia o Natal. A seguir, apresento um artigo de Ricardo de Mattos, retirado daqui, sobre o Oratório. Feliz Páscoa!
Johann Sebastian Bach – 1.685/1.750 – encerrou a composição do seu Oratório de Natal no mês de outubro de 1.734, ocorrendo sua primeira execução nas comemorações natalinas do mesmo ano. A evidente finalidade d’esta obra era celebrar o nascimento de Jesus Cristo, e esta homenagem ao facto máximo do cristianismo verifica-se no decorrer e alternância de 31 recitativos, catorze corais, dez árias, oito coros, dois ariosos, um quarteto, um terceto, um dueto e uma sinfonia.
Bach foi um homem de entranhada e madura religiosidade. Uma crença fervorosa e sincera transparece em suas obras sacras, e diante d’isso podemos calcular seu senso de responsabilidade ao compor um oratório pelo advento d’Aquele que tanto amou. O compositor era luterano, mas esta peça é tão bonita e possui nobreza tal que já comovia, e ainda comove, pessoas de credo diverso. Ao romper esta barreira, já mostra uma primeira face de sua excelência.
O texto-base do Oratório de Natal é formado por trechos dos Evangelhos segundo São Lucas e São Mateus, complementado com versos de Christian Friedrich Henrici, dito “Picander”. Este poeta é autor do texto de várias cantatas e da Paixão Segundo São Mateus. Muitas foram, contudo, as intervenções de Bach. Não há como acompanhar o Oratório sem ler o texto, e quem, como eu, não fala alemão, deve procurar uma versão acompanhada da tradução. Não é difícil ouvir a música em alemão, ler o trecho e sua tradução ao mesmo tempo.
Oratório e cantata, nos séculos XVII e XVIII, são géneros musicais a apresentar certa confusão, e a peça de Natal ora comentada pode trazer ainda mais dúvidas. O oratório irmana-se à ópera por descender dos mistérios medievais, dela diferindo apenas pela temática, pois inicialmente era acompanhado até de acção, cenário e costume. A cantata nada mais é além de uma peça profana para ser cantada e tem sua origem nos madrigais, ainda da Idade Média. Tínhamos então peças para serem cantadas – cantatas – e peças para serem tocadas – toccatas. Até aqui tudo simples e claro. Introduzindo na cantata o coro, levando-a para a igreja e no oratório substituindo-se a encenação pela narração – ficando esta a cargo do narrador ou historicus – confundiram-se os géneros. Talvez a única diferenciação restante seja a extensão, sendo maior a do oratório. Além disso, uma cantata pode ser religiosa ou profana – a Cantata do Café, do próprio Bach – mas um oratório será sempre religioso ou, no mínimo, de orientação religiosa, como As Estações, de Haydn. Este Oratório de Natal mostra bem a referida mistura, porém é um caso proposital. Na igreja de São Tomás, em Leipzig, para a qual foi composto, as celebrações natalinas estendiam-se por seis dias: 25, 26 e 27 de dezembro, primeiro e seis de janeiro e o primeiro domingo do ano. Assim, ou para não fraccionar uma peça única, ou para não repetir a mesma durante esses seis dias, Bach dividiu-o em seis partes, ou seis cantatas, reunidas de forma mais ou menos uniforme. Recebeu algumas críticas não só pela indefinição do género – nada tão indefinido assim, convenha-se – como pelo aproveitamento da música e texto de outras cantatas. O novo aproveitamento não era hábito exclusivo de Bach, mas a ocupação de alguns compositores levava a tal proceder. Vivaldi utilizou na ária Dell’aura al sussurrar o conhecido tema do allegro da Primavera.
O carácter geral do Oratório é glorificar, exaltar o espírito pelo nascimento do Messias, sendo assim oposto ao das Paixões, nas quais predominam a consternação e o drama. Com este objectivo de alegrar as almas, a primeira peça é um retumbante coro, ao qual os trompetes e tímpanos conferem um carácter de intrata:
Regozija-vos, cantai de alegria! Louvai estes dias!
Abandonai vossos temores, cessai vossos prantos,
Entoai hinos de regozijo e alegria!
Uni vossas vozes para cantar a glória do Altíssimo,
Adoremos o nome do Todo Poderoso!
Após o coro, inicia-se a narrativa, com a viagem de José e Maria de Nazareth à Belém. O parto ocorre e a contralto, primeiro em recitativo, depois em ária, admoesta Sião a bem receber o Salvador dos judeus, já padecentes do jugo romano. Cristo nasceu sob Augusto e foi crucificado na era de Tibério. Dando-se o parto no presépio, um coro de sopranos acompanhado do baixo – não ainda no papel de Herodes – acentua a humildade do facto (“Pobre veio à terra/Quem saberá honrar como merece/ O Amor que nos oferece nosso Salvador?”). O mesmo baixo, na ária seguinte, lembra a pouca importância do meio escolhido para nascer por aquele que reina sobre o mundo. Além d’isso, percebemos em vários momentos um capricho de ternura bem próprio de Bach, que curiosamente lembra-nos os escritos de Santa Terezinha do Menino Jesus e São Pedro Julião Eymard. Repare-se no coral Ach mein herzliebes Jesulein – Ah, meu bem amado Jesusinho! Aqui Bach demonstra o amor mencionado, referindo-se ao Menino como se pudesse estar pessoalmente com ele.
A segunda parte inicia-se com uma sinfonia pastoral substituindo um previsível coro, e melhor escolha Bach não poderia ter feito. Pastoral é uma obra vocal ou instrumental que pela melodia e emprego de certos instrumentos (flauta, oboé) pretende reproduzir um ideal de vida simples e pacífica, tal como imaginou-se sempre, nas Artes, ser a dos pastores. Pesquisando este ideal, chegamos em Virgílio. Ulisses desejou, em certa altura da Odisseia, ter nascido um mero pastor. Portanto, a escolha da sinfonia pastoral para iniciar a segunda parte, ou segunda cantata, é perfeita para retractar o ambiente rústico do nascimento de Jesus. Pode-se afirmar que toda esta cantata é pastoral, pois o tema da sinfonia repete-se no último coral, só retornando no coro de abertura da quarta parte.
Segundo a mensagem da segunda parte, os simples serão os primeiros a encontrar Jesus Cristo, e nos Evangelhos encontramos o desenvolvimento doutrinário desta assertiva. Basta ler o Sermão da Montanha. A última ária de contralto é uma canção para embalar o Recém Nascido. Esta parte foi apresentada pela primeira vez há exactos 268 anos.
Se na segunda cantata os pastores são avisados por um anjo – soprano – do nascimento de Jesus, na terceira eles efectivamente visitam-no. O mesmo coro do início é o do final (da capo), responsável pela volta do clima de júbilo. Deve-se reparar no duo de soprano e baixo Herr dein Mitled, dein Erbarmen – Senhor, Tua piedade, Tua Misericórdia.
A quarta parte, segundo o plano de comemorações da igreja de São Tomás, foi executada em primeiro de janeiro de 1.735. Por isso a primeira menção que o Evangelista faz em seu recitativo é à circuncisão e baptismo de Jesus, factos celebrados no dia. Após um arioso emoldurado por dois recitativos, segue-se a curiosa ária Flösst, mein Heiland, flösst dein Namen – Poderia, meu Salvador, poderia seu Nome. Nela temos duas sopranos, a segunda servindo de eco para a primeira. Eco mesmo: a primeira termina um verso e a segunda repete a última palavra apenas, de preferencia com o inte’rprete fora de cena. E um oboé ecoa esta segunda soprano. Este efeito do eco pode ser percebido também no concerto Audi , coelum do orato’rio Vésperas da Virgem Maria de Cláudio Monteverdi (1.567/1.643) e mais recentemente, na ária de Violetta Follie! Delírio vano é questo! na famosa ópera La Traviata de Giuseppe Verdi (1.831/1.901) Bach dedicou toda esta parte à relação entre o homem e Jesus, bem como a Sua palavra.
Um mui alegre coro complementado por vozes infantis inaugura a quinta cantata, dedicada à chegada dos Magos e à reacção de Herodes ao receber a notícia. Muita atenção para a ária Erleucht’ auch meine finstre Sinnen – Ilumina também meus escuros sentidos, na qual o baixo é acompanhado pelo órgão e pelo oboé.
Um coro épico abre a sexta e última cantata, apresentada na Epifania de 1.735. Por este motivo Bach destacou a visita dos Reis Magos ao Menino, embora também se discorra sobre a ordem de Herodes e à fuga de José e Maria. Esta a cantata mais dramática de todo o conjunto, transpirando tensão e aflição. O alívio pela salvação do Menino recompõe, no quarteto e coral finais, a sobreexcitação e alegria dominantes em todo o Oratório. Nada adianta eu tagarelar sobre esta excelente obra. Ela deve ser apreciada e sua contribuição para um Natal melhor será inafastável
Christmas Oratorio, BWV 248
1. Part I: Jauchzet, Frohlocket!, Chorus
2. Part I: Es Begab Sich Aber Zu Der Zeit, Recitative
3. Part I: Nun Wird Mein Liebster BrÄUtigam, Recitative
4. Part I: Bereite Sich, Zion, Alto Aria
5. Part I: Wie Soll Ich Dich Empfangen, Chorale
6. Part I: Und Sie Gebar Ihren Ersten Sohn, Recitative
7. Part I: Er Ist Auf Erden Kommen Arm, Chorale For Soprano And Bass
8. Part I: Wer Kann Die Liebe Recht ErhÖH’n, Bass Recitative
9. Part I: Grosser Herr Und Starker KÖNig, Bass Aria
10. Part I: Ach, Mein Herzliebes Jesulein!, Chorale
11. Part Ii: Sinfonia
12. Part Ii: Und Es Waren Hirten, Tenor Recitative
13. Part Ii: Brich An, O SchÖNes Morgenlicht, Chorale
14. Part Ii: Und Der Engel Sprach Zu Ihnen, Recitative For Tenor & Soprano
15. Part Ii: Was Gott Dem Abraham Verheissen, Bass Recitative
16. Part Ii: Frohe Hirten, Eilt, Tenor Aria
17. Part Ii: Und Das Habt Zum Zeichen, Tenor Recitative
18. Part Ii: Schaut Hin!, Chorale
19. Part Ii: So Geht Denn Hin!, Bass Recitative
20. Part Ii: Schlafe, Mein Liebster, Alto Aria
21. Part Ii: Und Alsobald War Da Bei Dem Engel, Tenor Recitative
22. Part Ii: Ehre Sei Gott In Der HÖHe, Chorale
23. Part Ii: So Recht, Ihr Engel, Bass Recitative
24. Part Ii: Wir Singen Dir In Deinem Heer, Chorale
25. Part Iii: Herscher Des Himmels, Chorus
26. Part Iii: Und Da Die Engel Von Ihnen Gen Himmel FÜHren, Tenor Recitative
27. Part Iii: Lasset Uns Nun Gehen Gen Bethlehem, Chorus
28. Part Iii: Er Hat Sein Volk GetrÖSt, Bass Recitative
29. Part Iii: Dies Hat Er Alles Uns Getan, Chorale
30. Part Iii: Herr, Dein Mitleid, Dein Erbarmen, Duet For Soprano & Bass
31. Part Iii: Und Sie Kamen Eilend, Tenor Recitative
32. Part Iii: Schliesse, Mein Herze, Dies Selige Wunder, Alto Aria
33. Part Iii: Ja, Ja! Mein Herz Soll Es Bewahren, Alto Recitative
34. Part Iii: Ich Will Dich Mit Fleiss Bewahren, Chorale
35. Part Iii: Und Die Hirten Kehrten Wieder Um, Tenor Recitative
36. Part Iii: Seid Froh, Dieweil, Dass Euer Heil, Chorale
37. Part Iv: Fallt Mit Danken, Fallt Mit Loben, Chorus
38. Part Iv: Und Da Acht Tage Um Waren, Tenor Recitative
39. Part Iv: Immanuel, O SÜSses Wort, Recitative For Soprano & Bass
40. Part Iv: Jesu Du, Mein Liebstes Leben/Komm!, Ich Will Dich Mit Lust Umfassen, Ar
41. Part Iv: FlÖSst, Mein Heiland, Aria For 2 Sopranos
42. Part Iv: Wohlan! Dein Name Soll Allein, Recitative & Arioso For Soprano & Bass
43. Part Iv: Ich Will Nur Dir Zu Ehren Leben, Tenor Aria
44. Part Iv: Jesus Richte Mein Beginnen, Chorale
45. Part V: Ehre Sei Dir, Gott, Gesungen, Chorus
46. Part V: Da Jesus Geboren War Zu Bethlehem, Recitative
47. Part V: Wo Ist Der Neugeborne KÖNig Der Juden?, Chorus & Recitative
48. Part V: Dein Glanz All’finsternis Verzehrt, Chorale
49. Part V: Erleucht’ Auch Meine Finstre Sinnen, Bass Aria
50. Part V: Da Das Der KÖNig Herodes HÖRte, Tenor Recitative
51. Part V: Warum Wollt Ihr Erschrecken, Alto Recitative
52. Part V: Und Liess Versammeln Alle Hohenpriester, Tenor Recitative
53. Part V: Ach, Wenn Wird Die Zeit Erscheinen?, Trio For Soprano, Alto, & Tenor
54. Part V: Mein Liebster Herrschet Schon, Alto Recitative
55. Part V: Zwar Ist Solche Herzensstube, Chorale
56. Part Vi: Herr, Wenn Die Stolzen Feinde Schnauben, Chorus
57. Part Vi: Da Berief Herodes Die Weisen Heimlich, Tenor Recitative
58. Part Vi: Du Falscher, Suche Nur Den Herrn Zu FÄLlen, Soprano Recitative
59. Part Vi: Nur Ein Wink, Soprano Aria
60. Part Vi: Als Sie Nun Den KÖNig, Tenor Recitative
61. Part Vi: Ich Steh’ An Deiner Krippen Hier, Chorale
62. Part Vi: Und Gott Befahl Ihnen Im Traum, Tenor Recitative
63. Part Vi: So Geht! Genug, Mein Schatz, Tenor Recitative
64. Part Vi: Nun MÖGt Ihr Stolzen Feinde Schrecken, Tenor Aria
65. Part Vi: Was Will Der HÖLle Schrecken Nun, Choral Recitative
66. Part Vi: Nun Seid Ihr Wohl Gerochen, Chorale
Barbara Schlick (Soprano)
Michael Chance (Countertenor)
Howard Crook (Tenor)
Peter Kooy (Bass)
Collegium Vocale Ghent
Collegium Vocale Ghent Orchestra
dir. Philippe Herreweghe
BAIXE AQUI A PARTE 1 – DOWNLOAD PART 1 HERE
BAIXE AQUI A PARTE 2 – DOWNLOAD PART 2 HERE