Esta é uma seleção composta: as faixas 1 e 2 foram gravadas e lançadas em 1963 no vinil com a capa ao lado; a faixa 4, já em 1957/62, e a faixa 3 apenas em 1969/72 – o que deixa entreouvir que a técnica e timbre do “barítono do século” ainda podem ter amadurecido entre seus 32 e 44 anos.
O repertório é todo barroco, e geralmente entendemos isso como “contemporâneo de Bach” – mas vejamos: quando João Sebastião nasceu:
- Rosenmüller tinha morrido há um ano (com 65)
- Alessandro Scarlatti estava na ativa, com 25 anos
- Couperin tinha 17
- Telemann tinha seus 4 aninhos (e sobreviveria JSB por mais 18)
Aldous Huxley chama a atenção, em um ensaio, para que “barroco” não parece significar o mesmo em música e nas demais artes: nestas, “barroco” sugere uma extensão da inventividade renascentista pelos terrenos do tenso, assimétrico, dramático, exagerado; já na música, o trajeto parece ser do irregular para o regular, do inventivo e do emocional para o cada vez mais padronizado e convencional (com o que Bach aparece como uma espécie de canto de cisne da invenção e originalidade no barroco).
Aqui temos em Rosenmüller (faixa 3) uma amostra do barroco seiscentista de sabor tardo-renascentista – e teríamos uma amostra do tardo-barroco mais tediosamente convencional se tivéssemos conservado a peça de Telemann incluída no vinil acima: uma cantata não-religiosa, humanista, sobre o valor da esperança (Die Hoffnung ist mein Leben), quem sabe prefigurando o que Schiller faria pouco mais tarde com o valor da alegria. Nobre intento… só que acabou dando numa das peças barrocas mais chatas que já ouvi!
Felizmente o próprio tio Dietrich se encarregou de salvar a honra de Telemann, gravando o que suspeito ser sua obra prima: a cantata tragicômica sobre a morte de um canário “experimentado em sua arte” por obra de um gato – animal que termina merecendo um movimento para xingar sua glutonice, e mais um para desejar que o canário o arranhe e bique por dentro – ao lado de frases da mais autêntica e compungida ternura dedicadas ao passarinho. Talvez mais uma confirmação de que o convívio com animais humaniza – enquanto o convívio só com ideais mumifica.
De entremeio temos o sempre intenso Couperin cantando as dores de Jerusalém subjugada pelos babilônios lá por 600 a.C. – isso como abertura das cerimônias católicas relativas à… morte de Jesus, nesse estranho sincretismo que é a cultura judaico-cristã.
E temos Alessandro! Alessandro Scarlatti, que, no meu sentir, enquanto os outros saíam do barroco provinciano seiscentista meramente para a convencionalidade dos salões da nobreza, Alessandro dá o passo e não vê só os salões: já vislumbra lá na frente a volta do primado do sentimento no romantismo, bem como a criatividade livre, expressa na imprevisibilidade e na assimetria, a ser reivindicada pelos criadores do século XX.
Eu falaria dias sobre os detalhes do meu xodó nesta seleção, que é a Infirmata, Vulnerata do Alessandro – que alguns querem ver como peça sacra, o que não me convence… – mas vou só mencionar que, quando minha mente está “tocando” Infirmata, Vulnerata, com a maior facilidade ela “desliza de faixa” e prossegue pela Actus Tragicus, composta por Bach aos 22-23 anos – ou seja: quando Alessandro estava nos seus 47-48. Para facilitar o acesso às sutilezas emocionais da obra, incluo abaixo o texto latino com uma tentativa de tradução… e deixo vocês com a música. Vão lá!
(Ah, sim: titio Dietrich & amigos foram de uma geração anterior ao movimento de instrumentos de época e interpretações estilisticamente autênticas – mas não por isso deixam de fazer música da melhor! Em todo caso, se vocês quiserem comparar com uma leitura “de época” da Infirmata, Vulnerata – com contratenor, dois violinos, órgão e tiorba no contínuo – a realização de que mais gostei até agora vocês encontram em https://www.youtube.com/watch?v=7Q1b6YsiROo . – Qual eu prefiro? As duas, claro! Se posso ter duas coisas gostosas, a troco do quê vou colocar hierarquia entre elas?)
INFIRMATA, VULNERATA: O TEXTO
(Tentativa de interpretação nas entrelinhas: Ranulfus)
Infirmata, vulnerata
Enfermada e ferida
puro deficit amore
por puro amor insuficiente
et liquescens gravi ardore
e pelo ardor penoso que se liquefaz,
languet anima beata.
jaz doente a alma abençoada.
O care, o dulcis amor,
Ó caro, ó doce amor,
quomodo mutatus es mihi in crudelem,
de que modo te transmudaste para mim em cruel,
quem numquam agnovisti infidelem!
a mim que nunca pudeste dizer infiel!
Vulnera percute, transfige cor.
Machuca, golpeia, transpassa o coração:
Tormenta pati non timeo.
sofrer as torturas não temo.
Cur, quaeso, crudelis
Por quê, por favor, cruel ...
es factus, es gravis?
... te tornaste, e sombrio?
Sum tibi fidelis,
A ti sou fiel,
sis mihi suavis.
a mim sê suave!
Vicisti, amor, vicisti,
Venceste, amor, venceste,
et cor meum cessit amori.
e meu coração se rende ao amor.
Semper gratus, desiderabilis,
Sempre bem-vindo e desejável,
semper, semper eris in me.
sempre, sempre estarás em mim.
Veni, o care, totus amabilis,
Vem, ó querido, todo amável,
in aeternum diligam te.
serei eternamente ligad@ a ti.
[Da capo] Semper gratus, desiderabilis,
[Da capo] Sempre bem-vindo e desejável,
semper, semper eris in me... In me.
sempre, sempre estarás em mim... Em mim.
FAIXAS
01 Alessandro SCARLATTI (1660-1725)
Infirmata, Vulnerata (Enferma e ferida)
Moteto(?) sobre poema em latim de autor desconhecido
Lançado em vinil em 1963 – 6 movimentos – 13’42
02 François COUPERIN (1668-1733)
Première Leçon de Ténèbres: Pour le Mercredi
(1º Ofício de Trevas: para a Quarta-Feira Santa)
Texto: Vulgata Latina: Lamentações de Jeremias, cap.1
Lançado em vinil em 1963 – 7 movimentos – 16’36
03 Johann ROSENMÜLLER (1619-1684)
Von den himmlischen Freuden (Das alegrias celestiais)
Cantata para barítono e baixo contínuo
Lançado em vinil em 1972 – 4 estrofes – 9’10
04 Georg Philip TELEMANN (1681-1767)
Trauermusik eines kunsterfahrenen Kanarienvogels
(Música fúnebre para um canário virtuose =
“Kanarienkantate” [Cantata do Canário])
Lançado em vinil em 1962 – 9 movimentos – 16’50
MÚSICOS
Voz (barítono): Dietrich Fischer-Dieskau (1925-2012)
Flauta transversal: Aurèle Nicolet (faixas 1 e 2)
Oboé: Lothar Koch (faixa 4)
Violino: Helmuth Heller (f. 1, 2 e 4); Koji Toyoda (f. 3)
Viola: Heiz Kirchner (faixa 4)
Cello: Irmgard Popper (f. 1, 2 e 4); Georg Dondere (f. 3)
Contrabaixo: Hans Nowak (faixa 3)
Cravo: Edith Picht-Axenfeld
. . . . . . .BAIXE AQUI (download here)
Ranulfus – com a colaboração dos leitores
Pedro Goria, Carlos Alberto Penha e João Ferreira