A.Scarlatti (1660-1725): Infirmata, Vulnerata. F.Couperin (1668-1733): Leçon de Ténèbres I. J.Rosenmüller (1619-1684): Von himmlischen Freuden. G.Ph.Telemann (1681-1767): ‘Cantata do Canário’. Dietrich Fischer-Dieskau, barítono.

Esta é uma seleção composta:  as faixas 1 e 2 foram gravadas e lançadas em 1963  no vinil com a capa ao lado; a faixa 4, já em 1957/62, e a faixa 3 apenas em 1969/72 – o que deixa entreouvir que a técnica e timbre do “barítono do século” ainda podem ter amadurecido entre seus 32 e 44 anos.

O repertório é todo barroco, e geralmente entendemos isso como “contemporâneo de Bach” – mas vejamos: quando João Sebastião nasceu:

  • Rosenmüller tinha morrido há um ano (com 65)
  • Alessandro Scarlatti estava na ativa, com 25 anos
  • Couperin tinha 17
  • Telemann tinha seus 4 aninhos (e sobreviveria JSB por mais 18)

Aldous Huxley chama a atenção, em um ensaio, para que “barroco” não parece significar o mesmo em música e nas demais artes: nestas, “barroco” sugere uma extensão da inventividade renascentista pelos terrenos do tenso, assimétrico, dramático, exagerado; já na música, o trajeto parece ser do irregular para o regular, do inventivo e do emocional para o cada vez mais padronizado e convencional (com o que Bach aparece como uma espécie de canto de cisne da invenção e originalidade no barroco).

Aqui temos em Rosenmüller (faixa 3) uma amostra do barroco seiscentista de sabor tardo-renascentista – e teríamos uma amostra do tardo-barroco mais tediosamente convencional se tivéssemos conservado a peça de Telemann incluída no vinil acima: uma cantata não-religiosa, humanista, sobre o valor da esperança (Die Hoffnung ist mein Leben), quem sabe prefigurando o que Schiller faria pouco mais tarde com o valor da alegria. Nobre intento… só que acabou dando numa das peças barrocas mais chatas que já ouvi!

Felizmente o próprio tio Dietrich se encarregou de salvar a honra de Telemann, gravando o que suspeito ser sua obra prima: a cantata tragicômica sobre a morte de um canário “experimentado em sua arte” por obra de um gato – animal que termina merecendo um movimento para xingar sua glutonice, e mais um para desejar que o canário o arranhe e bique por dentro – ao lado de frases da mais autêntica e compungida ternura dedicadas ao passarinho. Talvez mais uma confirmação de que o convívio com animais humaniza – enquanto o convívio só com ideais mumifica.

De entremeio temos o sempre intenso Couperin cantando as dores de Jerusalém subjugada pelos babilônios lá por 600 a.C. – isso como abertura das cerimônias católicas relativas à… morte de Jesus, nesse estranho sincretismo que é a cultura judaico-cristã.

E temos Alessandro! Alessandro Scarlatti, que, no meu sentir, enquanto os outros saíam do barroco provinciano seiscentista meramente para a convencionalidade dos salões da nobreza, Alessandro dá o passo e não vê só os salões: já vislumbra lá na frente a volta do primado do sentimento no romantismo, bem como a criatividade livre, expressa na imprevisibilidade e na assimetria, a ser reivindicada pelos criadores do século XX.

Eu falaria dias sobre os detalhes do meu xodó nesta seleção, que é a Infirmata, Vulnerata do Alessandro – que alguns querem ver como peça sacra, o que não me convence… – mas vou só mencionar que, quando minha mente está “tocando” Infirmata, Vulnerata, com a maior facilidade ela “desliza de faixa” e prossegue pela Actus Tragicus, composta por Bach aos 22-23 anos – ou seja: quando Alessandro estava nos seus 47-48. Para facilitar o acesso às sutilezas emocionais da obra, incluo abaixo o texto latino com uma tentativa de tradução… e deixo vocês com a música. Vão lá!

(Ah, sim: titio Dietrich & amigos foram de uma geração anterior ao movimento de instrumentos de época e interpretações estilisticamente autênticas – mas não por isso deixam de fazer música da melhor! Em todo caso, se vocês quiserem comparar com uma leitura “de época” da Infirmata, Vulnerata – com contratenor, dois violinos, órgão e tiorba no contínuo – a realização de que mais gostei até agora vocês encontram em https://www.youtube.com/watch?v=7Q1b6YsiROo . – Qual eu prefiro? As duas, claro! Se posso ter duas coisas gostosas, a troco do quê vou colocar hierarquia entre elas?)

INFIRMATA, VULNERATA: O TEXTO
(Tentativa de interpretação nas entrelinhas: Ranulfus)

Infirmata, vulnerata
Enfermada e ferida
puro deficit amore
por puro amor insuficiente
et liquescens gravi ardore
e pelo ardor penoso que se liquefaz,
languet anima beata.
jaz doente a alma abençoada.

O care, o dulcis amor,
Ó caro, ó doce amor,
quomodo mutatus es mihi in crudelem,
de que modo te transmudaste para mim em cruel,
quem numquam agnovisti infidelem!
a mim que nunca pudeste dizer infiel!

Vulnera percute, transfige cor.
Machuca, golpeia, transpassa o coração:
Tormenta pati non timeo.
sofrer as torturas não temo.

Cur, quaeso, crudelis
Por quê, por favor, cruel ...
es factus, es gravis?
... te tornaste, e sombrio?
Sum tibi fidelis,
A ti sou fiel,
sis mihi suavis.
a mim sê suave!

Vicisti, amor, vicisti,
Venceste, amor, venceste,
et cor meum cessit amori.
e meu coração se rende ao amor.

Semper gratus, desiderabilis,
Sempre bem-vindo e desejável,
semper, semper eris in me.
sempre, sempre estarás em mim.
Veni, o care, totus amabilis,
Vem, ó querido, todo amável,
in aeternum diligam te.
serei eternamente ligad@ a ti.
[Da capo] Semper gratus, desiderabilis,
[Da capo] Sempre bem-vindo e desejável,
semper, semper eris in me... In me.
sempre, sempre estarás em mim... Em mim.

FAIXAS

01 Alessandro SCARLATTI (1660-1725)
Infirmata, Vulnerata (Enferma e ferida)
Moteto(?) sobre poema em latim de autor desconhecido
Lançado em vinil em 1963 – 6 movimentos – 13’42

02 François COUPERIN (1668-1733)
Première Leçon de Ténèbres: Pour le Mercredi
(1º Ofício de Trevas: para a Quarta-Feira Santa)
Texto: Vulgata Latina: Lamentações de Jeremias, cap.1
Lançado em vinil em 1963 – 7 movimentos – 16’36

03 Johann ROSENMÜLLER (1619-1684)
Von den himmlischen Freuden (Das alegrias celestiais)
Cantata para barítono e baixo contínuo
Lançado em vinil em 1972 – 4 estrofes – 9’10

04 Georg Philip TELEMANN (1681-1767)
Trauermusik eines kunsterfahrenen Kanarienvogels
(Música fúnebre para um canário virtuose =
“Kanarienkantate” [Cantata do Canário])
Lançado em vinil em 1962 – 9 movimentos – 16’50

MÚSICOS
Voz (barítono): Dietrich Fischer-Dieskau (1925-2012)
Flauta transversal: Aurèle Nicolet (faixas 1 e 2)
Oboé: Lothar Koch (faixa 4)
Violino: Helmuth Heller (f. 1, 2 e 4); Koji Toyoda (f. 3)
Viola: Heiz Kirchner (faixa 4)
Cello: Irmgard Popper (f. 1, 2 e 4); Georg Dondere (f. 3)
Contrabaixo: Hans Nowak (faixa 3)
Cravo: Edith Picht-Axenfeld

.  .  .  .  .  .  .BAIXE AQUI (download here)

Ranulfus – com a colaboração dos leitores
Pedro Goria, Carlos Alberto Penha e João Ferreira

11 comments / Add your comment below

    1. Valeu, Pleyel!
      Eu tinha apostado que viria um comentário SEU! rsrs

      Sei que pouca gente vai dar atenção a essa postagem: não é lançamento recente, e até ESTE meio parece ter sido contaminado pela obsessão da novidade, das figuras em moda, etc… Bom, não sabem o quanto perdem, “se entregando” assim!

  1. Caro Ranulfus,
    No site russo RuTracker.org – https://rutracker.org/forum/index.php – (sistema torrent), há uma caixa, Les Introuvables de Dietrich Fischer-Dieskau, com seis CDs, que contêm, entre muitas outras obras, Premiere Leçon De Tenebres, Pour Le Mercredi Saint (Couperin), ‘Infirmata, Vulnerata’, Cantate Pour Baryton, Flute, Violon & Basse Continue (A. Scarlatti) (CD 4) e Spiritual Cantata “Erquicktes Herz”,
    Spiritual Cantata “Ihr Völker, hört”, Secular Cantata “Die Hoffnung ist mein Leben” (“Hope is My Life”),
    Social cantata “Trauermusik eines kusterfahrenen Kanarienvogels” (“Mourning music for the death of the Canary experienced in the arts”) (Telemann) (CD 5).

    Para baixar, é necessário se registrar (grátis).
    O link da página para download é: https://rutracker.org/forum/viewtopic.php?t=5379206
    Uma vez aberto o torrent no programa (eu uso uTorrent), é possível selecionar os CDs que se quer baixar.

    Observação: abrir o site no Google Chrome é melhor, porque ele traduz as páginas do russo para o inglês.

    Espero ter ajudado.

    Carlos A. Penha

    1. Gratíssimo, Carlos!

      Embora eu tenha recebido os arquivos deste disco específico antes de receber a sua mensagem, a totalidade desse material me interessa muito – inclusive a “Música Fúnebre para um Canário”, obra extraordinária de Telemann (como para compensar a não tão extraordinária contida neste disco).

      Mais uma vez, muito muito obrigado!

      1. Caro Ranulfus,

        Fico feliz por, de alguma forma, ter sido útil.
        Sempre que estiver ao meu alcance, estou à disposição.

        Um grande abraço!

  2. CONFIRMADÍSSIMO, Pedro: está aí o material completo!
    Provavelmente vou levar alguns dias para reorganizar o texto da postagem, e até mesmo os arquivos do modo como estou idealizando – mas já pode considerar o processo a caminho.

    E agradeço mais uma vez: se já havia sido uma grande alegria recuperar a peça do A. Scarlatti depois de muitos anos sem ouvi-la, agora tenho a dupla alegria de ouvir também a peça do Couperin, que amo quase tanto – e também a de poder oferecer o material na íntegra – mesmo que eu considere a peça do Telemann, ainda que humanista e bem intencionada no texto, de uma banalidade musical constrangedora, rsrs

    Valeu mesmo, mesmo!

    1. Opa… gratíssimo por sua colaboração, João!
      Agora estou “inundado” de links para esse material … e vou lhe adiantar:
      já baixei tudo, e estou processando.

      Esta postagem-lagarta está prestes a voltar como borboleta 🙂

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