Eu, também responsável, não poderia deixar postagem de tal monta (veja abaixo) passar sem oferecer alguma informação. Pois trabalho em conjunto com FDP e trago um pouco de literatura e um punhado de dados para enriquecer a experiência de novatos e veteranos.
Kind of Blue em tópicos rápidos
• Gravado em 22 de março (lado A, as três primeiras faixas) e 09 de abril de 1959 (lado B)
• Lançado em 17 de agosto daquele mesmo ano
• O álbum mais vendido da história do jazz
• E um dos mais importantes e influenciais de toda a música
• Nasceu do esgotamento do bebop diante da criatividade de Miles
• E do seu encontro com um livro chamado Lydian Chromatic Concept of Tonal Organization
• Kind of Blue, em termos de composição, foi precedido pela faixa Milestones, do disco homônimo de 58
• Marca o surgimento do jazz modal – baseado em escalas, ao invés de acordes
• E disso, um retorno à melodia, ao invés do duo técnica + velocidade do bebop
• É um disco que flui fácil nos ouvidos à primeira audição; na segunda, se percebe a enorme complexidade dos temas
• Gênio? disse Bill Evans: “Miles conceived these settings (as escalas) only hours before the recording dates.
“So What” consists of a mode based on two scales: sixteen measures of the first, followed by eight measures of the second, and then eight again of the first. “Freddie Freeloader” is a standard twelve bar blues form. “Blue in Green” consists of a ten-measure cycle following a short four-measure introduction. “All Blues” is a twelve bar blues form in 6/8 time. “Flamenco Sketches” consists of five scales, each to be played “as long as the soloist wishes until he has completed the series”.
• Evidentemente, a banda também não sabia quase nada sobre o que gravaria ao chegar no estúdio
• Wynton Kelly, que havia substituído Bill Evans há pouco no grupo de Davis, toca apenas “Freddie Freeloader”
• E Cannonball Adderley não participa de “Blue in Green”
• Sobre a obra, definiu Chick Corea: “It’s one thing to just play a tune, or play a program of music, but it’s another thing to practically create a new language of music, which is what Kind of Blue did.”
Este cão, que não sabe contar – e muito menos entende de teoria musical – apenas esmigalha informação disponível, e lembranças, para os leitores. Assim como não esquece da melhor crônica que já leu sobre Kind of Blue, escrita no blog de Rafael Galvão – e compartilha. Inadvertidamente, a copio abaixo. É também resenha do livro de Ashley Kahn sobre Kind of Blue. Leiam logo, antes que ele descubra.
Kind of Blue
Oct 5th, 2007 por Rafael Galvão
Há algo de desgraçado no jazz. Algo que faz com que ninguém o ouça impunemente, que condena aquele que o conhece a nunca mais conseguir voltar atrás, a nunca mais se contentar de verdade com menos que aquilo; algo que eleva, para sempre, os padrões pelos quais se julga a música, qualquer tipo de música, não apenas a popular.
É difícil, para aquele que ouve o trumpete de Louis Armstrong, ouvir qualquer outra música com trumpete e não exigir que tenha a mesma qualidade, a mesma qualidade dramática, a mesma síncope, o mesmo swing — em última instância, as mesmas notas altas e desesperadas. E isso vale também para o piano, para o trombone, para o saxofone. É no jazz que a banda de música tradicional atinge o ápice, que eleva a arte de tocar esses instrumentos à perfeição.
O jazz é a forma superior de música popular. É o que de melhor fez um século que viu a música erudita se diluir em redundâncias medíocres como as trilhas para cinema ou grandes vazios como a música experimental, e que teve como principal trilha sonora o rock e o pop, galhos menos floridos do mesmo tronco que gerou o jazz.
E Kind of Blue, disco de Miles Davis, é a forma superior de jazz. Nunca mais o jazz atingiria um ponto semelhante, de perfeição quase absoluta. Foi ali, em um disco com a participação de mestres como John Coltrane e Bill Evans, gravado em duas sessões, com o primeiro take sendo o que valia, que o jazz atingiu a perfeição. Kind of Blue é um desses discos fundamentais por uma razão: é perfeito. Das notas iniciais de So What à última nota de All Blues, o que se tem não é a apenas a obra-prima do que chamavam jazz modal; é uma síntese de tudo o que o jazz tinha feito até aquele momento, do dixieland ao bebop: é a música popular elevada ao nível máximo que ela pode alcançar, quase ao nível da música erudita tradicional.
Embora tenham sido Louis Armstrong e Duke Ellington a dar ao jazz o status de arte, foi aquela geração — Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Miles Davis e John Coltrane, pela ordem — que elevou o jazz ao ponto máximo da música ocidental. Uma geração ambiciosa, consistente, que explodia os limites da música e apontava uma infinidade de caminhos ao mesmo tempo em que solidificava, com um talento nunca mais igualado, uma tradição de 50 anos de jazz. Infelizmente, quase na mesma época surgiria Ornette Coleman com uma nova mudança, e a porteira seria aberta para bobagens como free jazz e fusion; mas isso não importa. Ouve Ornette Coleman quem quer e quem gosta. O importante, mesmo, é que há um disco que explica, sem sequer uma palavra, o que é o jazz, que concentra em cinco faixas cinqüenta anos do mais assombroso gênero musical que o século XX criou. E esse disco é Kind of Blue.
A Barracuda, do Freddy Bilyk, lançou no começo deste ano um livro que conta a saga desse disco: “Kind of Blue — A história da obra prima de Miles Davis“, de Ashley Kahn, conta a história desse disco de maneira inteligente e simples. Contextualiza o disco em sua época e nas trajetórias de seus músicos, sem perder tempo com fofocas e explorações sensacionalistas ou simplesmente mundanas de detalhes pouco importantes, como os problemas com drogas que praticamente todos eles enfrentaram.
Kahn mostra o processo de criação das músicas, explicando a razão de cada termo utilizado com clareza e simplicidade notáveis. Detalha cada sessão, e explica cada música de um jeito simples mas completo. Explica por que o disco foi tão importante. E explora o legado de um álbum que foi recebido sem tanta euforia, mas que aos poucos se consolidou como o disco mais importante da história do jazz.
A importância de Miles Davis pode ser medida pelo que ele disse em um jantar na Casa Branca. Naquela ocasião, ele não mentiu. E Kind of Blue foi uma dessas revoluções. Talvez não tão importante, do ponto de vista “revolucionário”, quanto Birth of Cool; mas um disco estupidamente superior.
Por explorar com simplicidade um assunto tão fascinante mas ao mesmo tempo tão complexo, “Kind of Blue” é um daqueles livros indispensáveis para quem gosta de jazz, mas também para músicos que querem saber como pode funcionar uma sessão de gravação. É importante, também, para compositores que buscam densidade em seu processo criativo.
Há alguns anos, a Gabi me convidou para escrever uma coluna sobre jazz no site da Antena 1. A resposta foi a costumeira, uma recusa, mas dessa vez não foi apenas pela falta de tempo crônica: eu sabia que jamais poderia escrever sobre jazz porque isso requer uma erudição que eu, definitivamente, não tenho. Palavras e expressões como diatônica, escala cromática, modalismo não fazem parte do meu vocabulário habitual. E ler “Kind of Blue” me deixou com a certeza de que eu estava certíssimo ao dizer não. Mas, ainda mais que isso, me deu o conforto de saber que um sujeito como Ashley Kahn pode tornar essas palavras difíceis compreensíveis até para mim.