.: interlúdio :. É Carnaval! – A História da Guitarra Baiana, parte 2 – Missinho (Chiclete com Banana)

O clima da cidade se torna outro. A atmosfera mais densa do que o lança-perfume que a senhora leva na bolsa. Todos os exus e santos estão à solta. As ruas de madrugada apinhadas de gente. O cheiro de mijo e álcool. As normas se alternam, a moral se amolece. Tudo parece poder acontecer, para o bem e para o mal.

O dia já havia nascido quando olhei o mar de gente, suada e semi-nua, debaixo do sol. Homens sem camisas, mulheres de peito de fora. E pensei: enfim civilização.
(Matheus Ultra)

Seguindo com a história de um dos instrumentos mais legitimamente brasileiros – ainda que quase totalmente restrito às proximidades da Baía de Todos os Santos – chegamos nos anos 1980 com um grupo que, como Armandinho, era e ainda é sinônimo de Carnaval: Chiclete com Banana. Sim, eu sei que eles fizeram muita porcaria depois, quando o Axé foi vendido para todo o país a partir, em primeiro lugar, de programas como o do Chacrinha, o da Xuxa e o do Faustão. Mas a história dos primeiros anos do Chiclete com Banana, além de conter inovações que se firmaram em todos os trios elétricos (assim como Dodô, Osmar e Armandinho, dá pra resumir como a amplificação dos velhíssimos batuques de Carnaval de modo a ocupar largas avenidas e praças com povo a sair pelo ralo), também tem música muito diferente do que o Chiclete se tornaria.

A história não vai surpreender os fãs de Pink Floyd: fundada por três irmãos Marques mais o guitarrista Missinho, este último fazia a maioria das músicas e tinha um estilo bastante único nas duas guitarras, a estrangeira e a baiana. Depois de alguns anos arrastando multidões em Salvador mas apenas em Salvador, Missinho cansou e saiu quando a banda começava a decolar para o sucesso nacional.

Os discos Energia (1984) e Sementes (1985) trazem música extremamente carnavalesca e ao mesmo tempo sofisticada e original, com a marca principal do Chiclete com Banana que é a mistura de tudo e mais um pouco, sem qualquer preocupação com o que vão pensar de se misturar Miami com Copacabana, chicletes com banana, rock e tamborim, metáforas do samba do baiano Gordurinha (1922 – 1969), “Chiclete com Banana”, regravado por Gilberto Gil em 1972, nome que a banda, como de costume, usou sem pedir licença ou bênção.

É também sem um pingo de vergonha que, em Energia (1984), eles vão da estrelas ao luar, de Pink Floyd a “um forró de Luiz”, da fogueira e balão de São João ao oceano, de Cuba à guitarra de Santana. Também Xangô, Oxum e o Ilê Aiyê. Tudo isso é citado nas letras, pra não falar dos vários empréstimos rítmicos e melódicos. Há ainda truques poéticos de sinestesia psicodélica como “bailando ao som de lindos astros”…

A cabeça que juntava com poesia essas fusões improváveis era Missinho, e ele dividia os vocais principais com Bell Marques mais ou menos metade das música pra cada um cantar. Depois da saída de Missinho em 1986, Bell ficou como líder da banda, e tem até hoje uma excelente voz e carisma no palco e no trio elétrico… mas em mais de 30 anos ele e seus dois irmãos devem ter tido talvez uma ou duas ideias próprias. Então o Chiclete com Banana ficou seguindo as modas dos anos 90 e 2000 sem a guitarra de Missinho: até 2000 ainda havia o guitarrista Jhonny, cria de Missinho (convidado por este para entrar na banda quando tinha 16 anos). Mas Johnny saiu em 2000. Em 2014, Bell Marques fez seu Carnaval de despedida com o Chiclete, saindo em carreira solo por motivos exclusivamente financeiros. O Chiclete, então, seguiu com os dois irmãos Marques como uma sombra ainda mais apagada do que tinha sido.

Mas voltemos para os primeiros anos. Faz muito tempo mesmo: o presidente ainda era o general Figueiredo, tinha até Censura prévia e por motivos não muito claros duas faixas de “Energia” foram censuradas: uma delas talvez por uma leve, levíssima conotação política e a outra por conservadorismo sexual mesmo, já que tinha versos como “transa ao luar” (rimando em seguida com Ravi Shankar!), o que incomodava um tipo de gente que fazia de tudo desde que entre quatro paredes. Essas duas faixas, então, circularam apenas em meia dúzia de LPs e aparecem aqui como bonus-tracks com o chiado do vinil.

Wadinho Marques, que hoje toca teclados mas em 1984 recebeu os créditos por violão, backing vocals e autoria de uma das músicas, explica o nome da banda: “Foi um amigo nosso, Nildão, cartunista, artista plástico aqui da Bahia que sugeriu que nós colocássemos esse nome, Chiclete com Banana pelo tipo de música que a gente fazia, nós misturamos muitos ritmos, há muito tempo que nós tocamos galope, reggae, rock, frevo, então ele via isso e achava que tinha que ser representado por um nome que fosse uma mistura. E nada mais que uma mistura tão louca como chiclete com banana.”

Nildão, aliás, é o responsável pela capa deste álbum, com uma Iemanjá surfista que pode parecer um sincretismo brilhante ou inadequado, a depender de quem olha. Representa bem, então, a música do disco. O destaque maior, em termos de guitarra baiana, é a primeira faixa, Mistério das Estrelas, com um ritmo de galope irresistível, como também sabe ser irresistível, às vezes, a voz aguda* nesta faixa ou então na faixa-título de Sementes, também de autoria de Missinho e transbordantemente carnavalesca.

* A voz é a de Missinho em Mistério das Estrelas. De Bell em Sementes. Em outras, é difícil de identificar. Na capa de Sementes, acima, Missinho é o cabeludo em pé de relógio; Johnny agachado no meio e Bell Marques agachado à direita.

Chiclete com Banana: Energia (1984)
A1 O Mistério das Estrelas (Missinho)
A2 Canto De Aledê (Missinho)
A3 Sujo Astral (Bell Marques/G. Roberto)
A4 Meu Balão (Missinho)
A5 Ondas De Baião (Missinho/Beto Nascimento)
B1 Luas (Missinho/Beto Nascimento)
B2 A Cor Do Cristal (Missinho/Beto Nascimento)
B3 Bahia Cubana (Missinho/Hercules Amorim)
B4 Me Segura Que Vou Dá Um Traço (Wadinho Marques)
B5 Estrela Menina (Missinho/Beto Nascimento)
Apenas vença (faixa bônus, censurada)
Minha gatinha é macrô (faixa bônus, censurada)

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P.S.: “Hoje o que vemos é um Carnaval feito para a elite”, dizia Missinho em 2014 em entrevista de lançamento do seu disco Instrumental Guitarra Baiana (que está todo no Youtube aqui). Enquanto isso, as declaraçoes públicas de Bell Marques são do tipo “aproveita agora para parcelar em 12 vezes o seu abadá para o Carnaval do ano que vem”…

Ao ser perguntado se ele tinha o desejo de tocar novamente com alguém, Missinho disse que era um desejo impossível, pois apesar de ter conhecido grandes artistas e músicos, a companhia que gostaria de reencontrar em cima dos trios era a de Osmar [pai do Armandinho que apareceu aqui ontem]. “Ele é uma figura que deixou uma saudade muito grande. Tinha uma juventude arrebatadora. Eu tinha uns 20 anos quando toquei com ele e ficava olhando, observando e admirado sua energia. Me apaixonei de primeira pela aquela emoção. Me perguntava como ele podia ter aquela energia toda? Depois eu mesmo me respondia dizendo: poxa, um cara que inventou o trio elétrico tinha que ser assim mesmo”, disse aos risos e lamentou: “Ele faz falta no Carnaval”.

Missinho e sua guitarra baiana de 4 cordas (2014)

Pleyel

.: interlúdio :. É Carnaval! – A História da Guitarra Baiana, parte 1 – Armandinho: A Cor Do Som ao vivo em Montreux

Carnaval: celebração coletiva que afronta o individualismo e a decadência da vida em grupo; conjunto de ritos que reavivam laços contrários à diluição comunitária, fortalecem pertencimentos e sociabilidades e criam redes de proteção social nas frestas do desencanto. (Luiz Antônio Simas)

Não me leve a mal que hoje é Carnaval então vou poupá-los dos textos longos. Como sabemos, a guitarra baiana é um instrumento elétrico de tamanho mais próximo do bandolim ou do cavaquinho do que da guitarra inventada pelos gringos. Instrumento essencial nos primeiros trios elétricos de Salvador, foi inventada por Dodô e Osmar, que também inventaram o trio – em resumo um bloco carnavalesco com música microfonada e amplificada. Mas naquela época, anos 1950, o instrumento ainda era chamado “pau elétrico” ou “cavaquinho elétrico”. No fim dos 60, Armandinho, filho de Osmar, começou a fazer com o instrumento solos de linguagem guitarrística inspirada em Jimi Hendrix, mas ao mesmo tempo, é claro, sem perder a reverência a Jacob do Bandolim, ao frevo pernambucano e a ligação anual com a festa de rua mais popular de Salvador, sem falar no berimbau também típico da cidade mais africana do Brasil.

Armandinho é sinônimo de Carnaval baiano e guitarra baiana até hoje. Mas durante o resto do ano ele também tem outros talentos: no fim dos anos 1970 criou a banda A Cor do Som, com colegas cariocas também interessados em misturar o rock de Londres com coisas como o chorinho tão carioca de Ernesto Nazareth, sem esquecer a guitarra baiana.

A Cor do Som – em atividade até hoje, com alguns longos hiatos – também poderia ser entendida historicamente como uma terceira onda de influência sincrética baiana no eixo Rio-São Paulo: a maioria dos músicos fazia parte das bandas de apoio de Moraes Moreira e outros dos Novos Baianos, que por sua vez tinham esse nome para diferenciá-los da leva anterior de baianos da Tropicália (Gil, Caetano, Gal e Bethânia).

A Cor do Som: Ao Vivo em Montreux (1978)
1 Dança Saci (Mu)
2 Chegando da terra (Armandinho)
3 Arpoador (Mu/Dadi/Gustavo/Armandinho)
4 Cochabamba (Aroldo/Moraes Moreira)
5 Brejeiro (Ernesto Nazareth)
6 Espírito infantil (Mu)
7 Festa na rua (Mu/Aroldo/Dadi/Armandinho)
8 Eleanor Rigby (McCartney/Lennon)

Armandinho – guitarra baiana
Aroldo – guitarra baiana
Mú – teclados
Dadi – baixo
Gustavo – bateria
Ari – percussão

Gravado ao vivo em julho de 1978 durante apresentação no 12º Festival de Jazz no Cassino de Montreux, Suíça

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A Cor do Som em 2014 (Ary Dias, Armandinho e outros fora da foto) com participação do inesquecível Moraes Moreira

Pleyel

L. Nono (1924-1990): Il canto sospeso / G. Mahler (1860-1911): Kindertotenlieder (Abbado, BPO)

100 anos de Luigi Nono (29 jan 1924 – 8 mai 1990)

“Il canto sospeso” (O canto suspenso) é, assim como o oratório de Schoenberg “Um Sobrevivente de Varsóvia”, uma obra que associa música atonal e vanguardista a reflexões sobre os horrores da guerra, no caso a de 1939-45, mas a mensagem geral se aplica a tantas outras guerras. A ideia de que o artista devia se posicionar politicamente em relação ao mundo ao seu redor é constante nas obras de Nono. Em Darmstadt por volta de 1960, Nono gerou polêmica ao criticar a concepção musical a-histórica de John Cage e a fascinação ingênua de Karlheinz Stockhausen com as novas tecnologias eletrônicas, o que tornaria o alemão um mensageiro do imperialismo norte-americano

“Em outras palavras, Nono, como Gramsci, entendia que o compositor devia intervir na sociedade tendo sempre em mente os contextos históricos e socioeconômicos, em oposição a uma música tabula rasa baseada nas abstrações do serialismo e na introdução da aleatoriedade e acaso.” (traduzido deste texto aqui)

É verdade que, olhando isso tudo décadas depois, pode parecer uma estéril briga de egos hiperespecializados em técnicas musicais experimentais: talvez muita gente queira apenas ouvir música clássica como um prazer de domingo, sem grandes batalhas teóricas. Ou talvez as batalhas teóricas mais importantes sejam outras… enfim, sob muitos ângulos a obra musical e militante de Nono pode parecer datada, mas também é possível que as sementes que ele lançou, e que hoje parecem menos potentes, germinem em um tempo futuro.

Afinal, em meio a tantas discussões teóricas tão tensas quanto complexas, o contexto das vanguardas musicais europeias nos anos 1950-60 se inseria em uma era de contestação quando, após duas guerras mundiais, havia uma quase unanimidade contra novas guerras quentes, gerando ideias novas sobre o que seria uma revolução baseada menos na tomada violenta do poder e mais na mudança das mentalidades: “you’d better free your mind instead”, dizia Jonn Lennon, ao que os afroamericanos do Funkadelic responderam: and your ass will follow, referindo-se à dança, claro.

A morte do autor, a microfísica do poder, a revolução molecular eram ideias que circulavam na Europa, com reflexos nos EUA e também em lugares mais esquecidos como o Brasil onde as batucadas e danças também tinham algo a ensinar aos revolucionários a pianista e compositora brasileira Eunice Katunda, membra do grupo Música Viva fundado por H. Koellreutter e amiga de Nono, estudou com ele ritmos e melodias brasileiros, árabes e espanhóis. Em 1951, a influência de Katunda aparece na Polifonica-Monodia-Ritmica de Nono, obra para seis instrumentos e percussão estreada em Darmstadt. Dedicada a Katunda, essa obra se baseia em movitos rítmicos afro-brasileiros de devoção a Iemanjá.

Voltando à obra composta em 1956 por Nono e gravada pela Filarmônica de Berlim com Abbado, no programa dos concertos nos quais foi gravada parte deste disco ao vivo, constava o seguinte texto:

Luigi Nono fazendo cara de sério

“Em Il canto sospeso, Nono recorda eventos de um passado terrível, eventos que, começando na Alemanha, se espalharam por toda a Europa. Ele lembra pessoas que se opuseram à tirania Nazista e foram presas, torturadas e assassinadas por aquele regime. Nono elaborou um epitáfio para aquelas pessoas – vítimas individuais mas também muitas de nomes desconhecidos.

Em 1992 a Alemanha está novamente ameaçada por um crescimento do ódio a ‘estrangeiros’ que tomou horríveis formas e se dirige contra cidadãos de outros países ou membros de outras culturas, religiões ou modos de vida.

Na nossa orquestra (…) há pessoas das mais variadas nacionalidades e origens, todas elas deixaram sua marca no perfil artístico da Filarmônica de Berlim. É a variedade de pessoas e estilos musicais que forma a base do nosso trabalho.”

Os textos da obra de Nono foram extraídos de um livro de cartas publicado na Itália em 1955: “Lettere di condamnati a morte della resistenza europea”. Nas faixas 1 e 6 deste CD, as cartas utilizadas por Nono são lidas em alemão: para quem não entende essa língua, as duas faixas podem ser puladas sem problemas.

A outra obra do disco, gravada ao vivo pela mesma orquestra e mesmo maestro, é o ciclo de canções Kindertotenlieder (Canções para a morte de crianças), composto por Gustav Mahler para mezzo-soprano e orquestra. Na época, Mahler já era pai, mas só em 1907 ele teria a terrível experiência de enterrar uma de suas filhas: Alma Mahler, esposa do compositor, se incomodava com a temática dessa obra estranhamente premonitória e talvez ela estivesse certa. O fato, contudo, é que se trata de uma obra-prima da longa história das músicas tristes, entre as quais podemos listar as várias Paixões de Cristo (de Bach e a Penderecki e Gubaidulina) e várias óperas sérias sobre os mais diversos temas.

Aliás, ainda no tema da música vocal, não posso deixar de recordar que Mahler escreveu muita coisa para vozes femininas graves: além dessas Kindertotenlieder, impossível não lembrar de Das Lied von der Erde (para tenor e contralto) e o 4º movimento da 3ª Sinfonia, com uma contralto cantando um misterioso texto de Nietzsche. Enquanto os grandes compositores de óperas, como Mozart, Bellini e Wagner, privilegiaram as vozes femininas mais agudas e brilhantes – sim, há a Carmen de Bizet e algumas outras mezzos que ganharam muitos aplausos, mas para cada Carmen houve dezenas de protagonistas sopranos – Mahler parecia preferir os instrumentos como a flauta e o oboé para os momentos mais alegres e a voz humana para momentos mais sérios. Em seu livro dedicado a Mahler (sem tradução para o português), T.W. Adorno apresenta sua interpretação bastante pessoal da música desse compositor. Para Adorno, há um “tom traumático na música de Mahler, um momento subjetivo de desespero”, o que torna sua música um prenúncio da modernidade mesmo que ele utilizasse melodias tonais. Em certas frases banais e previsíveis, (segundo o controverso Adorno) Mahler “não queria encontrar a paz perturbada pelo curso do mundo; pelo contrário, fez uso dela com violência para resistir à violência: os miseráveis restos do triunfo acusam os triunfantes. (traduzido do italiano)

Luigi Nono (1924-1990):
1-12. Il Canto Sospeso (1956)

Gustav Mahler (1860-1911):
13-16. Kindertotenlieder (1904)
17. Ich Bin Der Welt Abhanden Gekommen (from Ruckert Lieder, 1902)

Berliner Philharmoniker, Claudio Abbado
Rundfunkchor Berlin, Barbara Bonney (soprano), Susanne Otto (mezzo-soprano), Marek Torzewski (tenor) – Nono
Marjana Lipovšek (mezzo-soprano) – Mahler
Live recordings (1992)

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Abbado dando um sorriso apesar do repertório denso e grave

Pleyel

.: interlúdio :. Elza Soares & Wilson das Neves (1968)

Dois anos sem Elza Soares

Elza Soares: uma cantora que iniciou sua carreira no auge da bossa nova, mas não era nada bossa-nova. Foi o que falei na postagem em sua homenagem, há dois anos. Este disco de 1968 refutaria essa ideia? Afinal, mais ou menos metade das canções aqui reunidas fizeram sucesso em gravações de João Gilberto, Astrud Gilberto, Sergio Mendes e outros expoentes da bossa nova… Mas não, isso só mostra a personalidade de Elza ao pegar música que já era famosa e mudar tudo, principalmente tirando aquele certo doce balanço, aquela calma do violão bossa-nova, aquele Balanço Zona Sul – nome da primeira faixa do álbum – e subverter tudo com sua voz mais potente do que intimista, a bateria também barulhenta de Wilson das Neves e arranjos de metais meio jazzísticos. Aliás, o autor dos arranjos de metais é Nelsinho (1927-1996) e os nomes dos outros músicos não constam nos créditos do LP e se perderam na noite dos tempos.

Para constatar que Elza não é bossa nova, basta comparar, na canção O Pato, o scat singing de Elza, comparável ao das grandes musas do jazz, com a suave versão de João Gilberto, perfeita para se ouvir, digamos, deitado na rede. Os dois são geniais, não se trata aqui de uma disputa entre dois times de futebol, é claro. “O Pato”, aliás, é uma canção de Jaime Silva e Neuza Teixeira, composta no fim da década de 1940, mas se tornou mais conhecida após a gravação de João Gilberto para o seu segundo álbum, O Amor, o Sorriso e a Flor, de 1960.

A participação do baterista Wilson das Neves (1936-2017) abrilhanta o disco, a tal ponto que ele figurou na capa, um tanto embranquecido com truques de maquiagem e iluminação, assim como Elza. Wilson foi um nome da maior importância no samba e na bossa nova, tanto pelos inúmeros grupos em que tocou, como também por suas próprias composições. Não tão conhecido do grande público, Wilson era adorado por gente como Chico Buarque, que tinha o ritmo do baterista em todas as suas turnês de 1982 a 2012.

No meio de outros clássicos que nem preciso apresentar aqui – Garota de Ipanema, Deixa isso pra lá, lançada por Jair Rodrigues em 1964… – gostaria de dedicar mais algumas palavras a Mulata assanhada, samba de Ataulfo Alves (1909-1969). Autor também de Ai meu Deus que saudades da Amélia (este último, com Mario Lago), Ataulfo teve o azar de ter seus dois maiores sucessos “cancelados” em décadas mais recentes. A Amélia, por ter virado sinônimo de mulher submissa, obediente, nada a ver com Elza Soares e outras mulheres que admiramos hoje em dia. E sobre a “mulata assanhada”, o fato de que essas palavras vêm caindo em desuso é o menor dos senões: a letra toda pode causar vertigens em públicos acostumados com um repertório mais pasteurizado, entretenimento que não incomoda ninguém, com emoções limitadas e frias como uma sala de hospital. E Elza Soares, repito, é tão distante de um repertório morno como da obediência de uma Amélia.

Ataulfo Alves: quando jovem e quando velho

Elza Soares / Baterista: Wilson Das Neves (1968)
1 Balanço Zona Sul (Tito Madi)
2 Deixa isso pra lá (Alberto Paz, Edson Menezes)
3 Garota de Ipanema (Antonio Carlos Jobim, Vinicius De Moraes)
4 Edmundo – In the mood (Joe Garland/Andy Razaf/ versão Aloysio de Oliveira)
5 O Pato (Jayme Silva, Neuza Teixeira)
6 Copacabana (Alberto Ribeiro, João de Barro)
7 Teleco Teco nº 2 (Nelsinho/Oldemar Magalhães)
8 Saudade da Bahia (Dorival Caymmi)
9 Samba de verão (Marcos Valle/Paulo Sérgio Valle)
10 Se acaso você chegasse (Lupicínio Rodrigues/Felisberto Martins)
11 Mulata assanhada (Ataulfo Alves)
12 Palhaçada (Luiz Reis/Haroldo Barbosa)

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Chico Buarque e Wilson das Neves, 1994

Pleyel

Robert Schumann (1810-1856): Liederkreis, Dichterliebe – P. Schreier, tenor; A. Schiff, piano

Música de câmara boa é aquela marcada por um certo clima de intimidade: menos carregado, menos intenso ou sério do que um grandioso concerto de Tchaikovsky ou sinfonia de Bruckner. O tenor alemão Peter Schreier, já então um senhor de mais de sessenta anos com uma carreira cheia de sucessos em óperas de Wagner e Mozart e paixões de Bach, reuniu-se em 2002 com András Schiff – que tinha menos de 50 – para esse recital inteiro dedicado a Lieder de Schumann. Em português: canções. Outras notáveis vozes como o barítono D. Fischer-Dieskau e a soprano Jessye Norman provavelmente fizeram gravações dessas obras com mais virtuosismo vocal, mais precisão nas subidas e descidas, mas também com certos exageros e arroubos que soam melhor em árias de ópera… Aqui nesta gravação, a voz de Schreier soa humana, muito humana, ou seja: limitada, imperfeita, o que é um diferencial em nossos tempos de gravações perfeitíssimas tanto nos clássicos quanto na música pop de autotune e shows com playback. (Breve parêntesis pra falar de outro grande cantor maduro: nos shows no Maracanã em dezembro de 2023 aos 81 anos, Paul McCartney também mostrou uma voz bastante humana e bem cuidada, mas em uns 10% das canções havia algum playback? Ou não?)

Schreier e Schiff às vezes se rendem brevemente ao estrelismo característico de intérpretes famosos mas logo depois, como aquelas flores que se fecham à noite, se seguram nos vários momentos suaves com dinâmica marcada piano. Aliás, boa parte das temáticas das canções de Schumann são romanticamente noturnas com títulos como “Noite de luar”, “Diálogo na floresta” e “Noite de Primavera”.

E uma característica comum em todos os ciclos de Lieder de Schumann é a escrita para piano sempre interessante: o pianista não está apenas acompanhando o cantor, sempre tem seus momentos de brilho com alguns ritmos, manias, trejeitos bem típicos do Schumann das obras para piano solo como o Carnaval, as Sonatas ou a Kreisleriana.

Com seu jeito de tocar pontuando as frases musicais com um certo humor húngaro discreto mas quase constante, András Schiff tem uma afinidade especial com certos compositores: Bartók, claro, mas também os barrocos Bach e Scarlatti e os centro-europeus Haydn e Schumann. O mais comum é que Schiff faça mesmo os momentos mais carregados em termos intelectuais (no Bach) ou em termos emocionais (no Schumann) com uma pitada do mesmo sarcasmo que aparece no Bartók. Respeitando os estilos de cada compositor, claro, apenas adicionando um leve tempero exótico.

Robert Schumann (1810-1856):
1-9. Liederkreis, Op. 24 (poemas de Heinrich Heine)
10-21. Liederkreis, Op. 39 (poemas de Joseph von Eichendorff)
22-37. Dichterliebe, Op. 48 (poemas de Heinrich Heine)

Peter Schreier (1935 – 2019) – tenor
András Schiff (n. 1953) – piano
Recorded: Lukaskirche, Dresden, 2002

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Pleyel

W. A. Mozart (1756-1791) – Concertos para Piano Nº 5 a 14 (Brendel/Marriner/St Martin in the Fields)

Alfred Brendel (nasc. 5 jan. 1931) hoje completa 93 anos e vamos aproveitar a data para completar uma série de postagens que vinha lá de 2007, primórdios deste blog e época em que o veterano pianista dava seus últimos concertos e recitais antes de se aposentar. Depois eu, Pleyel, reativei os links em 2019 (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) adicionando algumas opiniões e imagens.

E depois de todo esse tempo, finalmente adicionamos esse lote com quase metade dos concertos do gênio de Salzburgo (aqui estamos excluindo da conta os concertos nº 1 a 4, exercícios infantis nos quais Mozart fez arranjos de música de outros autores). Provavelmente, pensarão vocês, se esses concertos demoraram tanto para aparecer é porque não importam tanto assim. E é verdade que a maior parte das apresentações ao vivo e discos se dedicam à metade final dos concertos para piano de Mozart. Mas no meio de alguns concertos um tanto burocráticos (para o meu gosto, do 5º ao 8º e o 13º), há algumas pérolas aqui. A tarefa de identificar as pérolas depende um pouco do gosto do freguês, mas há uma certa unanimidade sobre o fato de que o concerto divisor de águas, o “nada será como antes” desse grupo é o Concerto nº 9, de apelido “Jeunehomme” (que é mais ou menos o equivalente masculino de “mademoiselle” – senhorita -, ou seja, a forma educada de se chamar com um homem jovem em francês). Esse apelido foi usado por séculos, e é apropriado pois Mozart tinha apenas 21 anos quando o compôs! Mas recentemente descobriram que o concerto provavelmente se referia a Victoire Jenamy, jovem e admirada pianista da época, filha de um amigo de Mozart. Mais um caso de silenciamento do papel de mulheres na História.

Além do nº 9, meu coração bate mais forte pelo 10º, para dois pianos, pelo 11º, pelo 12º e pelo 14º, por motivos bem diferentes referentes a cada um deles. O 10º tem melodias e ritmos que lembram a Marselhesa, hino da França composto poucos anos depois. Os de nº 11 a 13 são os primeiros após a chegada de Mozart em Viena, onde ele teve contato com novas orquestras, com novos amigos e com antigas partituras de mestres como J.S. Bach, de modo que esses três concertos têm uma discreta inclinação para o contraponto bachiano.

Neste blog, além das integrais já postadas com Mitsuko Uchida e com Lili Kraus, destaco ainda as grandes gravações do 12º com Maurizio Pollini e a do 14º com Maria João Pires, que vocês conseguem encontrar pelo mecanismo de busca no alto da tela. Mas o austríaco Brendel e os ingleses da Academy of Saint Martin in the Fields não fazem feio frente a essa concorrência não, pelo contrário, são leituras que apontam para vários detalhes nessas obras que às vezes as outras gravações não apontaram, ou ao menos não do mesmo jeito. A suavidade, os detalhes e a leveza do toque de Brendel, nunca pesado ou sério, nem sempre me agrada quando ele toca Beethoven ou Schubert, mas com Mozart, se a memória não me falha, é sempre excelente.

W. A. Mozart (1756-1791):
Concertos para Piano e Orquestra Nº 5 a 14
Rondós para Piano e Orquestra KV 382 e 386

Alfred Brendel- piano
Neville Marriner – conductor
Academy of Saint Martin in the Fields

Recorded in London, 1970-1984

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Pleyel

.: interlúdio :. Lonnie Smith – Mama Wailer (1971)

A carreira de Lonnie Smith começou na banda do guitarrista George Benson, depois a partir de 1968 ele tornou-se band leader. Embora também tocasse outros teclados como o clavinet, seu instrumento principal sempre foi o órgão hammond. No meio dos anos 1970, quando o o som do hammond havia saído de moda, Smith também saiu um pouco de cena, mas participou da produção de alguns hits de outros artistas nos tempos da discoteca. Nos anos 1990, quando surge o movimento acid jazz, o som do órgão eletrônico já tinha deixado de ser ultrapassado para se tornar vintage, exótico e interessante. Assim, Smith voltou a se apresentar como líder e gravou outros álbuns com artistas como Norah Jones e Iggy Pop.

Em Mama Wailer, ouvimos Lonnie Smith em 1971, logo antes do seu som sair de moda. Acompanhado de gente muito talentosa, ele passa por alguns momentos meio “latin jazz” nas duas primeiras faixas, toca uma melodia da Carole King (então na crista da onda) e o lado B do LP era uma longa jam sobre um tema de outro compositor então muito famoso: Sly Stone.

The album’s centerpiece is surely “Stand,” one of the bold social statements from Sly And The Family Stone’s monumental album of the same name (Epic – 1969). Originally, Lonnie’s version took up a full side of an LP. But he made every minute count (…). In a great tribute to the song’s author, Sly Stone, Lonnie Smith treats us to a summer day in the ghetto. He gives the main theme a nervous beat, then grinds the funk to a slow burn for the solos – which find the organist weaving in and out of spots featuring Grover Washington’s tenor and Jimmy Ponder’s guitar. Then, just as suddenly, a sort of chase ensues, driven by Ron Carter’s hot-as-asphalt electric bass (astute listeners might recognize how Smith revisited this section in his own “Jimi Meets Miles” from 1994’s Foxy Lady). Grover yields to a scorching solo that wends into a stoned groove from Ponder’s guitar and finally segues into the kaleidoscopic finale of Smith’s solo. A masterpiece of social groove. (aqui)

Billy Cobham

Além dos solos de órgão, guitarra e sax, o disco tem o brilhante duo rítmico de Ron Carter no baixo e Billy Cobham na bateria, dois incansáveis músicos que estão (muito) ativos até hoje. Carter é nada menos do que o baixista mais gravado na história, com participação em mais de dois mil álbuns e menção no Guinness Book. E Cobham, se não tem esse recorde, tem uma invejável discografia como líder e em grupos como os de John McLaughlin (Mahavishnu), Freddie Hubbard, Milt Jackson e muitos outros. Cobham faz oitenta anos em 2024, assim como Chico Buarque. É claro que teremos merecidas homenagens nos próximos meses: na lupa de busca lá no alto, procurem por #billycobham80

Lonnie Smith – Mama Wailer
1. Mama Wailer (6:15) – written by Lonnie Smith
2. Hola Muncea (6:25) – written by Lonnie Smith
3. I Feel The Earth Move (5:00) – written by Carole King
4. Stand (17:20) – written by Sylvester Stewart

Clavinet, Organ – Lonnie Smith
Guitar – George Davis, Jimmy Ponder, Robert Lowe
Percussion – Airto Moreira, Richard Pratt, William King
Tenor Saxophone – Dave Hubbard, Marvin Cabell
Tenor Saxophone, Flute – Grover Washington
Trumpet, Flugelhorn – Danny Moore
Bass, Electric Bass – Ron Carter (1, 2, 4); Chuck Rainey (3)
Drums – Billy Cobham
Recorded at Van Gelder Studios< New Jerseym USA, July 1971

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Grover Washington Jr, outra estrela presente no disco

Pleyel

Valentin Silvestrov (1937): Post Scriptum; Epitaph; Drama (J. Lin – p., C. Duffalo – vl., Y. Dharamraj – vc.) / Bagatelas; Diálogos; O Mensageiro (H. Grimaud, p.)

Valentin Silvestrov

O ucraniano Valentin Silvestrov compôs sonatas para piano (aqui) quando mais jovem. A partir mais ou menos de 1990, ele entrou em uma nova fase e escreveu mais de cem peças curtas para piano: entre bagatelas, valsas que não têm nada de dançante, postludiums, noturnos, intermezzos… São obras sérias. Reflexões carregadas. Miniaturas pianísticas, sim, mas não espere nada parecido com as leves bagatelas de Beethoven, as tranquilas canções sem palavras de Mendelssohn ou os risonhos tangos brasileiros de Nazareth.

E sejamos francos: a Deutsche Grammophon não teria lançado um disco inteiro dedicado ao piano de Silvestrov se não fosse a sangrenta guerra na Ucrânia, terra natal do compositor que, desde 2022, vive em Berlim. Eu preferiria viver em um mundo sem guerras. Eu preferiria viver em um mundo onde os esforços se concentrassem para acabar com as guerras ao invés das torcidas dignas de um Coliseu, com gente torcendo, sorridente, pelo time que bombardeia hospitais contra o time que derruba aviões civis.

Em todo caso, o mundo no qual vivemos é este: uma gravadora conservadora como a DG havia no máximo dado um espacinho para Silvestrov entrar comendo pelas beiradas em 2020, em um disco de Grimaud dedicado a Mozart. E antes, em 2018, Silvestrov aparecia com duas Bagatelas em um disco de gatinhos que também incluía uma valsa de Chopin, Gnossiennes de Satie e o Clair de lune de Debussy. Então, se para os executivos da DG, o velho Silvestrov é novidade da qual se pode extrair dinheiro, para Grimaud, Silvestrov é um interesse já há muitos anos. Confesso que agora vejo com mais simpatia a tal Helena que não é de Troia nem de novela da Globo. Achava ela, sei lá, uma dessas que tentam tocar mais rápido como em uma corrida de carros, mas realmente a Grimaud tem bastante originalidade ao escolher seu repertório, não está apenas aderindo a essa moda de tocar o compositor ucraniano. De fato, parece que as bagatelas neste álbum são as do disco de 2018, uma terceira entra aqui, parece inédita, não vi notas explicativas mas tudo bem, nos viramos sem elas. Lançado em 2022 – só em meio digital – a partir de material que a DG já tinha em seus arquivos, o disco de Grimaud tem menos de 32 minutos de música. Então, para não acharem que este blog está de pão-duragem, compartilho mais abaixo um disco mais antigo. E em 2023 Grimaud lançou mais um álbum pela DG, agora dedicado às canções de Silvestrov para piano e voz. Mas este álbum mais recente fica pra outro dia aqui no blog: para os curiosos, PQP já havia postado aqui uma gravação dessas canções pela gravadora ECM.


Hélène Grimaud plays Valentin Silvestrov (2022)

Bagatelles I-XIII
01. Bagatelle I
02. Bagatelle II
03. Bagatelle III

Two Dialogues with Postscript
04. I. Wedding Waltz
05. II. Postlude
06. III. Morning Serenade

07. The Messenger (For Piano Solo)

Hélène Grimaud – piano

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Como contraponto às curtas obras do período tardio de Silvestrov, o disco lançado em 2007 pela gravadora Koch com a primeira gravação de uma peça que já era muito elogiada pelos entendidos sobre a música de vanguarda do leste europeu: Drama (1971), para piano, violino e violoncelo. Como nas suas sonatas para piano da mesma década, também temos uma linguagem mais experimental. Demandando enorme virtuosismo dos músicos, Silvestrov investiu também em aspectos cênicos nessa obra: os músicos entravam e saíam do palco, algo do tipo, que evidentemente se perde na escuta do CD. A pianista usa técnicas expandidas ou estendidas, ou seja, ela encosta com as mãos nas cordas do piano e outras coisas do tipo, para além do uso das teclas. Como me falou uma vez o querido Ranulfus logo após assistirmos um recital com obras de H. Cowell para piano*, é impressionante o quanto essas sonoridades do piano expandido ainda chamam atenção por soarem inovadoras, embora as obras de Cowell datem dos anos 1920 e as de Silvestrov, dos anos 1970.

*Tratava-se da pianista Késia Decotê, utilizando o piano “bem fora da caixinha”

Como seu contemporâneo Schnittke, Silvestrov alternava nos anos 1970 entre radicalidade dissonante e momentos mais consonantes, além de citações e pastiche. Peter Quantrill escreveu mais um pouco sobre esta obra e vou pedir desculpas por não traduzir:

A Ukrainian, he is another eastern European Minimalist, though not especially ‘holy’; if he has gods, they are likely to be Webern and Mozart. The latter is remembered in the deep-frozen conventions of Post-Scriptum (composed in 1990), which here receives its second recording. […]

Silvestrov shares an elegiac tendency with his contemporaries Giya Kancheli and Arvo Pärt that can become maudlin. The ten-minute Epitaph for cello and piano is one of several works Silvestrov composed in memory of his wife Larissa, who died in 1999; perhaps there is a fresh desolation that scores over the more weightily pondered Requiem for Larissa, but I hazard that the phrases, at least as played by Yves Dharamraj, are too short-winded to carry lasting weight or impact.

Nevertheless, Silvestrov distinguishes himself with the sharpness of his ears and the freshness of his thinking. The loving adieus of his later music came about through an immersion in the Western avant garde, with Webern as the fountainhead, which unlike Pärt he has not so much disowned as refined. This makes the 45-minute, tripartite Drama for piano trio (1971) a vitally important work, all the more so in this its first recording. For all the prepared-piano sonorities, plucked glissandos and serial harmonies and procedures, the frequency and expressive richness of the gestures create a strong sense of continuity. Played with commendable dedication and a fine awareness of sense and poetry – as it is here – it compels attention.


Valentin Silvestrov – Drama

1-3. Post Scriptum, for violin and piano (1990)
I. Largo 8:45
II. Andantino 3:46
III. Allegro vivace, con moto 2:44

4. Epitaph, for cello and piano (1999)

5-7. Drama (1971)
I. Sonata for violin and piano 18:35
II. Sonata for cello and piano 15:35
III. Trio for violin, cello and piano 10:12

Piano – Jenny Lin
Violin – Cornelius Dufallo
Cello – Yves Dharamraj
World premiere recording. Recorded June 2007 at Avatar Studios, New York

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D. Scarlatti: 6 Sonatas / J.S. Bach: Suíte Francesa nº 6 / L.v. Beethoven: Sonata opus 2 nº 2 / M. Rameau: 4 peças / Ravel: Concerto para a mão esquerda / Debussy: En blanc et noir / Fauré: Dolly, etc. (Robert Casadesus, piano)





A série “Great Pianists of the 20th Century”, lançada em 1999, juntou grandes gravações de 72 pianistas: algumas muito conhecidas e reeditadas como Arrau tocando Beethoven, Larrocha tocando Albéniz etc.; outras que não são tão fáceis de se encontrar, como é o caso da Fantasia de Schumann por Freire ou destas várias gravações feitas por Robert Casadesus entre 1947 e 1963.

A comparação entre os franceses Robert Casadesus e Alfred Cortot serve como ilustração do fato de que grandes figuras artísticas resistem à categorização em “escolas”. Enquanto Cortot buscava nas obras o que era mais romântico e frequentemente se movia por inspirações momentâneas, Casadesus, pelo contrário, buscava projetar a estrutura e a lógica interna de cada obra.

Então Cortot, assim como Guiomar Novaes (brasileira com educação em grande medida francesa), ambos se destacavam em suas interpretações de Chopin e Schumann. Já Casadesus, com sua elegência e clareza – mas também com momentos de brilho pianístico – talvez tenha sido o maior intérprete de Scarlatti e Rameau da sua época. Na mesma Paris onde vivia Casadesus, o crítico musical francês Claude Rostand escrevia sobre Domenico Scarlatti:

Apesar da liberdade, fantasia e humor impulsivo que caracterizam Scarlatti – na alegria como na emoção -, suas sonatas seguem um modelo mais ou menos constante. Nessas centenas de sonatas, as dificuldades técnicas não são objetivos em si mesmos: nenhuma ostentação, muita elegância. Quanto à invenção rítmica, ela é inesgotável, o que torna ainda mais notável o fato das sonatas jamais tatearem a confusão, mas serem sempre de uma naturalidade e transparência jamais igualada.
(Rostand, 1950, Les chefs-d’œuvre du piano, tradução especial para este blog)

Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 15 ago 1931

Casadesus também gravou muito Mozart, ausente nesta coleção, e Beethoven, que aparece com uma sonata do seu opus 2 dedicado a Haydn. Ela é tocada aqui com menos arroubos sentimentais do que nas interpretações de Arrau ou Pollini: mesmo no movimento lento “Largo apassionato”, Casadesus privilegia – como antes no Scarlatti – a elegância, característica importante do chamado classicismo vienense.

E Casadesus tocava, claro, a música dos compositores franceses que ele conheceu pessoalmente: Fauré, Debussy, Ravel. Embora o som do Concerto para mão esquerda de Ravel – com o grande maestro Eugene Ormandy – denuncie que a gravação é antiga e em mono (1947), ainda assim é muito interessante ouvirmos um pianista que conheceu bem o compositor: após o primeiro contato em 1922 quando Ravel ouviu Casadesus tocar o Gaspard de la nuit, os dois fizeram uma turnê em 1923 na Espanha e Inglaterra, não tenho certeza se a dois pianos ou se com Ravel regendo. Foram anos de amizade que tornaram Casadesus, por motivos óbvios, um intérprete respeitado das obras de Ravel.

Great Pianists of the Century – Robert Casadesus (1899-1972)
CD1
Jean-Philippe Rameau:
1. Gavotte
2. Le Rappel des Oiseaux
3. Les Sauvages
4. Les Niais de Sologne

Johann Sebastian Bach:
5-12. French Suite No. 6 in E, BWV 817

Domenico Scarlatti:
13. Sonata in E, K. 380
14. Sonata in A, K. 533
15. Sonata in D, K. 23
16. Sonata in G, K. 14
17. Sonata in B Minor, K. 27
18. Sonata in D, K. 430

Ludwig van Beethoven:
19-22. Sonata in A, Op. 2 No. 2

CD2
Claude Debussy:
En blanc et noir (For 2 Pianos, with Gaby Casadesus)
1. Avec Emportement
2. Lent. Sombre
3. Scherzando

Gabriel Fauré:
4-9. Dolly Suite, Op. 56
10. Prélude in D-flat, Op. 103 No. 1
11. Prélude in G Minor, Op. 103 No. 3
12. Prélude in D Minor, Op. 103 No. 5
13. Nocturne No. 7 in C-sharp Minor, Op. 74
14. Barcarolle No. 5 in F-sharp Minor, Op. 66
15. Impromptu No. 5 in F-sharp Minor, Op. 102

Maurice Ravel:
16. Piano Concerto in D “For the left hand”
The Philadelphia Orchestra, Conductor: Eugene Ormandy

Recorded:
1947 (Ravel); 1951 (Bach; Fauré: Nocturne, Barcarolle, Impromptu); 1952 (Rameau, Scarlatti, Beethoven); 1959 (Fauré: Dolly); 1961 (Fauré: Préludes); 1963 (Debussy)

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João Pedro Oliveira (nasc. 1959): Pirâmides de cristal (Ana Cláudia de Assis, piano)

As obras para piano presentes neste disco representam duas décadas de exploração das possibilidades do instrumento através de diersos modos de expressão criativa. Por vezes virtuosísticas, por vezes reservadas e discretas, as partituras de João Pedro Oliveira são sempre exigentes nas suas subtilezas.
In tempore (2000) é a primeira de três obras para piano e fita, resultando em notável demonstração dos recursos alargados que o uso da electrónica oferece. O compositor descreve a obra como um “jogo com o tempo”, mas pode também ser ouvida como um jogo com a identidade dos meios acústico e electrónico.
Em Pirâmides de cristal (1993), as delicadas instruções e pedal e as indicações de dinâmica contribuem para evocar as estruturas de cristal e as texturas transparentes sugeridas pelo título. Talvez por Oliveira ter sido organista, parece haver sugestões de Olivier Messiaen (e talvez de Pierre Boulez tardio) na irregularidade rítmica, nos trilos, afloramentos, que surgem em acordes impositivos, simultaneamente dissonantes e fantasmagoricamente ressunantes. O interesse do compositor pela auto-similitude dos fractais pode agir como guia da obra: percebemo-lo através de uma simetris aproximada à medida que a peça se constrói através de picos de intensidade e retrocessos em sucessiva ondulação.
Ao longo da componente electrónica de Mosaic (2010), o intérprete tanto toca piano como toy piano, acrescentando um tipo outro de interação à construção da obra. Oliveira reporta esta partitura às artes visuais, fazendo notar como em cada uma das pequenas pedras que compõem um mosaico está, geralmente, uma só cor, sem em si possuírem significado independente, antes revelando o seu papel e propósito quando vistos no contexto de um todo, como parte de uma imagem maior.
Uma sensação de fragmentação vai surgindo clara e convincentemente, e as imagens ténues que emergem das partes parecem sempre arriscar-se a cair em mil pedaços através de soluções que nos movem com surpresa e emoção. (Do encarte do disco)

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Stockhausen disse certa vez que tinha um ódio da música no tempo 4/4 porque ela evocava memórias da música de marcha interminável tocada nas rádios durante a guerra. (segundo Simon Behrman)

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“A orquestração de Messiaen era um leque de cores, de timbres. Mesmo o piano, o piano! Você não vai achar que isso é Debussy, porque não é. Ele tem alguma coisa de Debussy, mas é mais um Villa-Lobos da Prole nº2. A tal ponto que, quando eu estava com Messiaen, de 1969 a 73, várias vezes Mindinha Villa-Lobos ia à classe de Messiaen (…) e trazia os LPs como presentes (Mandú Sarará, as Serestas, A Prole 2). (…) Ele guardava isso e organizava (…) o caos vem de Villa-Lobos” (Almeida Prado, 2003 – aqui)

É verdade que o caos de Villa-Lobos, de Messiaen e de Stockhausen está presente na música para piano de J. P. Oliveira, nascido em 1959 em Lisboa (reler com o “naschido” típico do sotaque de Lisboa). Não estão presentes as síncopes do Villa-Lobos dos Chôros e Cirandas. É música sem aquela cadência dançante de obras pianísticas como as do Villa e, antes dele, as que Nazareth publicava com subtítulos como “tango carnavalesco” e “polka-lundú”. Esse lado carnavalesco tão brasileiro não aparece na música do português Oliveira, que é sempre séria. Ou então eu é que não entendi a piada, o que é sempre possível e aumenta a graça da piada para quem percebe do que se trata.

Ana Cláudia de Assis, sem dúvida, entendeu para onde aponta a retórica de Oliveira, que ela provavelmente conheceu pessoalmente com alguma intimidade, já que o português viveu longos anos em Belo Horizonte. Ela defende bem essa música de padrões simétricos e coloridos inesperados.

João Pedro Oliveira (nasc. 1959):
1. In tempore (piano e electrónica)
2. Pirâmides de cristal
3. Mosaic (piano, toy piano e electrónica)
4. Bagatela
5. Looking into the mirror (piano e electrónica)
6. ff (Frozen Fred)
7. ff (Frozen Ferenc)
8. ff (Frozen Franz)

Ana Cláudia Assis, piano
Gravado na Universidade Federal de Minas Gerais -UFMG (Belo Horizonte, Brasil, 2016 e 2019, faixas 2 e 4-8) e na Universidade do Aveiro (Portugal, 2010 e 2012, faixas 1 e 3)

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Ana Claudia Assis tocando pra um público muito atento

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.: interlúdio :. McCoy Tyner – Nights of Ballads & Blues (1963)

McCoy Tyner era um pianista que, em resumo, tinha dois jeitos de tocar. Um estilo percussivo, com acordes batucados como os de My Favorite Things, sua estreia com John Coltrane e um hit em 1961. Um estilo extremamente suave, com escalas e arpejos agudos que lembram o piano de um Chopin, Fauré ou Debussy. Mas com “blue notes”, claro.

Ou seja, mais ou menos como um ator que interpretava dois tipos principais de personagem, mas entre esses dois tipos ele percorria, do pianissimo ao fortissimo, uma ampla gama de sonoridades: talvez por isso, por ter tanta preocupação com os timbres do piano de cauda, ele nunca aderiu ao piano elétrico, ao contrário de outros mais ou menos seus contemporâneos como Herbie Hancock e Chick Corea ou ainda Cesar Camargo Mariano. Breve parêntese: alguns dias atrás assisti Elis e Tom, filme que retrata a gravação do clássico LP de 1974 e ali vemos um clima tenso entre Tom Jobim (partidário do piano acústico) e C.C. Mariano (que alternava entre o Fender Rhodes elétrico e o “piano de pau”). Tensão que acaba se resolvendo: na vida como na harmonia.

Voltando para McCoy Tyner: há discos em que ele transita entre os dois estilos básicos: por exemplo Open Sesame, com o quinteto de Hubbard, ou A Love Supreme, com o quarteto de Coltrane. Já em Ballads, com Coltrane, e neste Nights of Ballads and Blues, ele harmoniza tudo com toques suaves e elegantes nas teclas do piano. O baixista Steve Davis – que, anos antes, também estava na gravação de My Favorite Things – e o baterista Lex Humphries fazem o básico, o arroz com feijão e quem brilha é sempre o piano ao longo dos quase 40 minutos.

Thelonious Monk em pintura de Edú Marron

O repertório tem um tema de Tyner, dois de Thelonious Monk, um de Duke Ellington, duas canções de filmes da época e uma outra canção de melodia facilmente cantarolável mesmo que instrumental: We’ll Be Together Again. No lado B, Blue Monk (de Monk) e Groove Waltz (de Tyner), pelo contrário, são harmonicamente mais imprevisíveis, o que torna mais difícil assobiá-las. Monk (1917-1982), embora não tenha vendido discos na casa dos milhões, era muito respeitado por seus pares e foi, junto com Ellington, o compositor de jazz com o maior número de obras gravadas por outros artistas.

McCoy Tyner – Nights of Ballads & Blues
1. Satin Doll (Ellington, Mercer, Strayhorn) – 5:40
2. We’ll Be Together Again (Fischer, Laine) – 3:40
3. ‘Round Midnight (Monk) – 6:23
4. For Heaven’s Sake (Elise Bretton, Edwards, Donald Meyer) – 3:48
5. Star Eyes (De Paul, Raye) – 5:03
6. Blue Monk (Monk) – 5:22
7. Groove Waltz (Tyner) – 5:31
8. Days of Wine and Roses (Mancini, Mercer) – 3:21

McCoy Tyner – piano
Steve Davis – bass
Lex Humphries – drums

Recorded: 4 march 1963, Van Gelder Studio, New Jersey, USA

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O Clarinete na obra de Bruno Kiefer (1923-1987) – Diego Grendene, clarinete

O quinteto de sopros – clarinete, flauta, oboé, fagote e trompa – é uma formação que surgiu na época de Mozart e Haydn, porém nenhum dos dois compôs obras exatamente para esse grupo de instrumentos. Mozart provavelmente conhecia esse tipo de quinteto que aparece no catálogo Breitkopf desde 1782, diz Harold C. Robbins Landon, mas “ele negligenciou completamente essa combinação, assim como os trios e quartetos de mesmo tipo. Ele parecia firmemente convencido de que ao utilizar sopros em música de câmara isoladamente e não em pares, ele só garantiria a homogeneidade que estimava essencial se utilizasse instrumentos de acompanhamento – teclado ou grupo de cordas. Acompanhar um instrumento de sopro com cordas não era inovação, e a prática mais comum era trocar um primeiro violino de um quarteto de cordas por um sopro. Assim Mozart compôs seus quartetos para flauta e um quarteto para oboé.” (palavras de H.C.R. Landon)

Nas suas obras orquestrais, Mozart empregava constantemente os sopros em duplas: por exemplo no Requiem há dois clarinetes baixos, dois fagotes, dois trompetes e três trombones, no Concerto para Clarinete a orquestra tem duas flautas, dois fagotes e duas trompas, já na peça de adolescência “Exsultate, jubilate” e nos Concertos para Violino, são dois oboés e duas trompas. Haydn também passou longe dessa formação do quinteto, o mais perto a que chegou foi quando compôs um Sexteto em 1793 com dois clarinetes, dois fagotes e duas trompas. Bach, como chamei atenção aqui [BWV 127], utilizou pares de flautas e de oboés em várias cantatas e nas Paixões, somando a isso três trompetes na obras mais festivas.

Já a fusão entre um instrumento de sopro de cada tipo, ao contrário das duplas de iguais, gera combinações um tanto estranhas se comparadas com o som da união de violino, viola e violoncelo, que formam um conjunto bem mais homogêneo – ou, em outra interpretação, mais careta. O quinteto de sopros com um representante de cada instrumento, portanto, se já era vagamente conhecido por Mozart, ganhou um repertório mais vasto pouco após a morte do gênio de Salzburg com as obras do alemão Franz Danzi (1763-1826), do tcheco/alemão Anton Reicha (1770-1836) e do francês George Onslow (1784–1853): mais ou menos da geração de Beethoven, eram compositores que buscavam novas sonoridades diferentes dos já um tanto saturados quarteto de cordas e trio com piano. E, convenhamos, nomes em suma de pouca relevância.

Neste disco de obras de câmara de Bruno Kiefer, o quinteto e o trio de sopros (este último para clarinete, flauta e fagote) me parecem as obras de maior envergadura, representando interessantes experimentos com os timbres. Nesse quinteto de sopros composto em 1975, estamos em um mundo bem diferente da elegante Viena de Haydn: Kiefer combina os instrumentos criando sons estranhos, enigmáticos (nome de um movimento), quase o oposto exato do ideal sonoro dos vienenses. E nessa busca por sonoridades humorísticas, bizarras ou com qualquer outra característica menos a homogeneidade, Kiefer se aproxima de outros grandes compositores de século XX que reabilitaram o quinteto de sopros: Milhaud, Villa-Lobos, Schoenberg, Ligeti e outros. É uma formação que convinha para aqueles criadores que queriam ir além do sentimentalismo dos românticos e ao mesmo tempo não queriam repetir a homogeneidade e a pose “antigo regime” do classicismo vienense

Para mais informações sobre o brasileiro nascido na Alemanha e vivendo no sul do Brasil desde criança, deixo-os com parte de um texto que, aliás, anunciava um concerto celebrando o centenário de Kiefer. Este centenário, em abril de 2023, passou batido aqui no PQPBach mas, como dizem os gaúchos: bah, antes tarde do que nunca!

A entrada no Departamento de Música da UFRGS [em 1969] permitiu a Kiefer se dedicar todos os dias à composição musical – o resultado foi um catálogo que está entre os mais importantes da música brasileira de concerto da segunda metade do século passado.

A lista das mais de 130 composições de Bruno Kiefer inclui música sinfônica, música coral, música para piano, canções e música de câmara. Ele se dedicou a todos os tipos de música que estavam à sua disposição, construindo um estilo composicional único, caracterizado pelas melodias angulares, pela harmonia inovadora e pela temática que passa por um profundo enraizamento na terra – a terra gaúcha que Kiefer adotou como sua, transformando-a em música.
(Celso Loureiro Chaves, compositor e professor do Departamento de Música da UFRGS, aqui)

Bruno Kiefer (1923-1987): obras de câmara com clarinete
1-3. Três Poemas: O exílio, Poema da devastação, Estão enferrujados (barítono, piano, clarinete)
4. Monólogo (clarinete)
5. Pequena música (dois clarinetes)
6. Saudade (clarinete, piano)
7-9. Música para dois: I. Traquinice, II. Pequena Fuga, III. Espirituoso (clarinete, flauta)
10-12. Poema do Horizonte III: I. Moderado, II. Imploração, III. Enigmático (quinteto de sopros)
13-14. Coxilhas: I. Quase lento, II. Devagar – Mais Vivo etc (clarinete, flauta, fagote)

Diego Grendene (clarinete) – todas as faixas
Marcelo Coutinho (barítono), Thalyson Rodrigues (piano) – faixas 1-3
Cristiano Alves (clarinete) – faixa 5
Willian Lizardo (piano) – faixa 6
Sammy Fuks (flauta) – faixas 7-9
Sammy Fuks (flauta), Rodrigo Herculano (oboé), Jeferson Souza (fagote), Josué Soares (trompa) – faixas 10-12
Sammy Fuks (flauta), Jeferson Souza (fagote) – faixas 13-14

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Bruno Kiefer

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Chopin: Estudos completos, Allegro de Concerto, Fantasia-Impromptu, Barcarola (Arrau, piano)

– Se eu lhe contar, doutor, que chorei como uma criança quando
soube da morte de Chopin, vosmecê se admira?
– Eu não me admiro de nada.
– Que Chopin? – perguntou Bibiana.
Luzia, paciente, voltou-se para a sogra.
– É um compositor, dona Bibiana. Um homem que escrevia músicas, lindas músicas. Aquela valsa que eu toco e que a senhora gosta é dele…
Bibiana sorriu enigmaticamente.
– Pois chorei, doutor – continuou Luzia. – E sabe por que chorei mais? Porque Chopin morreu em 1849 e só três anos depois é que fiquei sabendo […] (Erico Verissimo, O Tempo e o Vento)

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A compositora e pianista Dinorá de Carvalho escreveu no Correio Paulistano (12 jun 1956):

Mãos de Chopin
Chopin é o suave poeta dos “Noturnos”, cujas mãos exprimem doçura, carícia, amor…
Mãos que espalharam pelo mundo as mais deliciosas harmonias, trazendo numa vida de sonhos, esperanças e amores a história do seu sofrimento intérmino.
Mãos, como contavam alguns de seus discípulos, a princesa Czartoryska, Mme. Dubois, Georges Mathias, que [Chopin] colocava no teclado planas, horizontais; tocava com a ponta dos dedos para não ferir as teclas, obtendo assim efeitos estranhos nos “Estudos”.

.:.

Para Maria Abreu, no Brasil “Chopin foi paradigma por ter sido espelho. O espelho que reproduziu nossa imagem sentimental.” (Do livro O Piano na Música Brasileira, 1992, p.45)

Essa “nossa imagem sentimental”, nas palavras da pianista e jornalista Maria Abreu (Porto Alegre, 1916-1995), se refere a uma certa fração do Brasil que ela conheceu quando jovem, não valendo para uma “imagem sentimental” brasileira em todos os tempos e lugares. Em todo caso, nota-se como a música do polonês, como um espelho, pode refletir imagens diferentes. O Chopin de Claudio Arrau tem essência diferente do de Guiomar Novaes que é diferente do Artur Rubinstein que é diferente do de Arturo B. Michelangeli que é diferente do de Samson François, para falarmos só de grandes pianistas em atividade nos anos 1950, década em que Arrau gravou os “24 Estudos” principais e os menos inspirados “3 Novos Estudos”. Essas gravações de Arrau foram todas feitas em Londres e saíram pelos selos Decca e Columbia. Depois, Arrau gravaria muito Chopin pelo selo Philips (anos 1970-80), mas os Estudos ele não gravaria nos anos finais da sua longa carreira. Os Estudos por Novaes também estão no acervo do blog. Rubinstein e Michelangeli fugiam desse repertório, tocando apenas estudos avulsos, nunca o conjunto inteiro.

Entre as características interessantes dessas gravações de Arrau, chamo atenção para a diferença de sonoridade entre as duas mãos em estudos como o opus 10 nº 6 e o opus 25 nº 6. Cada mão, ou seja, cada voz tem um tipo de dinâmica, de ataque nas teclas produzindo um timbre específico. Essa diferenciação fica ainda mais evidente no opus 10, de andamento Lento ma non troppo e apelido “Tristesse”, que tem praticamente três vozes, com alguns graves que fazem mais ou menos o papel dos pedais no órgão. Aliás, Chopin conhecia bem os Prelúdios e Fugas do Cravo Bem Temperado de Bach, que foram o ponto de partida para os seus próprios prelúdios, e é provável que conhecesse também algumas obras para órgão de Bach e as Invenções a duas e três vozes. Ou seja, Chopin compunha com um olho voltado para a polifonia do organista de Weimar e Leipzig e outro olho apontando para a melancolia que agradaria brasileiros (e até mais brasileiras, como as das três epígrafes acima). Na Barcarola, escrita 10 anos após os Prelúdios e também gravada aqui por Arrau, as harmonias mais cromáticas e os arpejos suaves apontam para sucessores franceses de Chopin como Fauré e Debussy.

Frédéric Chopin (1810-1849):
CD1
12 Études Op.10
Allegro de Concerto, opus 46
3 Nouvelles Études, op. posth.

CD2
12 Études Op.25
Fantaisie-Impromptu, opus 66
Barcarolle, opus 60

Claudio Arrau, piano
Recorded: 1956 (op. 10, 25, 46, posth.), 1953 (op. 60, 66)

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Chopin (1835), em aquarela de Maria Wodzińska, com quem fumou mas não tragou, digo, noivou mas não casou

Pleyel

Giovanni Gabrieli (1557-1612): Motetos, Canzonas / Claudio Merulo (1533-1604): Magnificat (Mabire, La Guilde des Mercenaires)

Mais um disco do “Trio Parada Dura” de Veneza: Merulo, Gabrieli e Gabrieli. Os três trabalharam mutos anos na Basílica de San Marco, a maior igreja de Veneza, financiada pelos ricaços que comandavam boa parte do comércio mediterrâneo. Eles começaram a empobrecer quando Portugal e Espanha, contornando a África, chegaram às Índias e de bônus encontraram a América, mas esse processo de empobrecimento durou séculos, de modo que por volta de 1550 a 1650 o comércio se reduzia mas a música de Veneza chegou ao seu auge: toda a Europa imitou e aprendeu com as inovações de Merulo, dos dois Gabrieli e de Monteverdi. Mas atenção: o Gabrieli que aparece aqui, Giovanni, era sobrinho do outro, Andrea, que apareceu na postagem de anteontem. Boa parte das obras de Andrea foram publicadas postumamente, com edição do sobrinho, que possivelmente fez certas contribuições colocando notas aqui e tirando ali, de modo que é difícil diferenciar os estilos dos dois Gabrieli.

Claudio Merulo era contratado como organista em San Marco, mas também compunha música vocal como o Magnificat aqui gravado. Já Andrea Gabrieli foi responsável pela música vocal da Basílica de San Marco, cargo que herdou de seu professor, o franco-flamenco Adrian Willaert (morto em 1562). Muitos estrangeiros vinham escutar a música de San Marco e, se possível, aprender um pouco com Willaert, Merulo, A. Gabrieli e, depois, com seu sobrinho G. Gabrieli. O sucessor deste último no cargo foi Monteverdi, o último compositor de renome internacional em San Marco. Depois, outros gênios ainda viveriam em Veneza mas sem relações diretas com a Basílica, como Barbara Strozzi (que, por ser mulher, jamais seria cogitada Maestrina di Capella della Serenissima Republica) e Vivaldi.

Como explica Adrien Mabire nas notas, o programa do disco se baseia nas obras de G. Gabrieli publicadas nos “Concerti” de 1587 e nas “Sacrae Symphoniae” de 1597. Ele mostra a gênese das grandes peças para coro simples e duplo, arte tipicamente veneziana, com o objetivo de restituir a essa música sua forma original, na qual vozes e instrumentos se misturam. Para nos ajudar a imaginar as influências sobra Giovanni Gabrieli, além de sua educação com seu tio e com Roland de Lassus, adicionamos três peças de outros compositores. Primeiro o Magnificat de Claudio Merulo. Este último era organista em San Marco quando os dois Gabrieli ali trabalhavam, é evidente o impacto de sua obra sobre Giovanni. Em seguida a canção de Adrian Willaert (1490-1562), mestre de capela em San Marco e professor de Andrea Gabrieli, canção que representa aqui uma pausa nas obras de igreja. Para fechar, uma pequena peça humorística de Roland de Lassus, com quem Giovanni trabalhou em Munique de 1575 a 1579, apenas cinco ou seis anos antes das primeiras composições de G. Gabrieli aqui gravadas. Ao contrário de outras gravações desse repertório, o conjunto aqui presente é mais reduzido, com seis cantores, quatro sopros e órgão. Nos motetos para mais de seis vozes, são os instrumentos que tocam as partes vocais, prática comum na época em que essa música era ouvida em grandes celebrações na Basílica de San Marco.

GLORIA A VENEZIA !

CLAUDIO MERULO (1533-1604)
1. Magnificat 5’38

GIOVANNI GABRIELI (1557-1612)
2. Canzon terza a 4 1’50
3. Ego Dixi a 7 2’42
4. Beati immaculati a 8 2’42

GIOSSEFO GUAMI (1542-1611)
5. Canzon alla francese « La Lucchesina » 2’46

G. GABRIELI
6. Inclina Domine a 6 3’20
7. O magnum mysterium a 10 2’50
8. Canzon quarta a 4 2’26
9. Jubilate deo a 8 3’22
10. Deus, deus meus a 10 3’43
11. Ricercar per organo 1’49
12. Domine exaudi a 10 1’52

ADRIAN WILLAERT (1490-1562)
13. Le dur travail 1’21

G. GABRIELI
14. Surrexit pastor bonus a 10 2’37
15. Canzon seconda 2’36
16. Beata es virgo maria a 6 3’24
17. Canzon « La Spiritata » a 4 3’00
18. Angelus ad pastores a 12 2’42

ROLAND DE LASSUS (1532-1594)
19. Lucescit iam o socii 2’58

La Guilde des Mercenaires
Adrien Mabire, direction et cornet

Chanteurs:
Violaine Le Chenadec, soprano; Anaïs Bertrand, mezzo soprano; Marnix De Cat, contre-ténor; Marc Mauillon, baryton-basse; Renaud Bres, baryton-basse; Marc Busnel, basse

Instrumentistes:
Benoit Tainturier – cornet
Juan Gonzales Martinez, Arnaud Bretecher, Abel Rohrbach – trombones
Jean-Luc Ho – orgue
Enregistré à la Chapelle Royale de Versailles, France, 2019

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2 trombones, 2 cornettos (não o sorvete, o instrumento renascentista com formato de chifre)

Pleyel

A. Gabrieli, C. Merulo, O. di Lasso, M. Facoli, G. Radino, G. Picchi: Fim do século XVI em Veneza (J.-M. Aymes / F. Bonizzoni, cravos)

Dois CDs dedicados à música para teclado do norte da Itália por volta de 1590-1600. Veneza: “tão única no mundo e tão estranha que parece saída de um sonho”, nas palavras de Juan del Encina por volta de 1500. Naquela época, ao mesmo tempo que começava lentamente a perder protagonismo comercial para as caravelas do comércio atlântico, Veneza mantinha-se como uma cidade notável por sua mistura de influências de todo o Mediterrâneo e especialmente da metade oriental daquele mar. Ao mesmo tempo, uma inovação recente havia se firmado há poucos anos: a impressão em papel. É preciso lembrar que a Bíblia de Gutenberg é de 1455, e que poucas décadas depois tanto Veneza quanto Roma já contavam com dezenas de casas comerciais que imprimiam – sabe-se lá o quê! Livros religiosos, seculares, talvez listas de mercadorias e também música, talvez nem tanta música em 1500, mas sem dúvida muita música mais para o fim daquele século.

Em 1600, Veneza seguia única com seus palácios de estilo meio gótico, meio bizantino, meio árabe – as três metades se equlibravam sobre as águas da laguna meio que por mágica, mas também por técnicas milenares. E seguia sendo uma das cidades com mais casas de impressão na Europa. Este disco traz obras para cravo impressas em Veneza entre 1588 e 1621: a música puramente instrumental apenas começava a ser escrita e publicada, ao contrário da vocal que já tinha tradição de manuscritos por monges e padres da idade média. Não é um acaso que a difusão da imprensa tenha coexistido com essa ideia nova e revolucionária de se registrar no papel música instrumental.

No disco da Harmonia Mundi, temos alguns dos primeiros compositores a publicarem obras impressas (e não só manuscritas) para instrumentos de teclado. Alguns deles – Facoli, Radino, Picchi – escreveram volumes de obras ligeiras, danças e coisas do tipo, que dão um interessante panorama de como devia ser a vida musical em Veneza e região vizinha por volta de 1600.

Andrea Gabrieli e Claudio Merulo já são outra coisa, compará-los com esses outros citados é como comparar duas grandes árvores com pequenas flores. A flor tem beleza, aroma, simpatia, mas uma árvore de dezenas de metros, cheia de galhos mas também cipós e epífitas, insetos e pássaros em sua copa, isso é algo mais próximo da complexidade da escrita de A. Gabrieli, cheia de encontros e desencontros de diferentes vozes em contraponto e outras sutilezas.

Andrea Gabrieli sucedeu ao seu professor, o franco-flamenco Adrian Willaert (morto em 1562) no cargo de responsável pela música da Basílica de San Marco. Muitos estrangeiros vinham escutar a música de San Marco e, se possível, aprender um pouco com Willaert, A. Gabrieli e, depois, com seu sobrinho G. Gabrieli, outro importante compositor de Veneza. Ambos foram organistas na Basílica de São Marcos, isso é bem documentado, mas a atividade deles tocando cravo ou clavicórdio em casas, palácios e jardins já é um assunto sobre o qual podemos apenas sonhar. O volume “Canzoni alla francesa & Ricercari Ariosi libro Quinto”, como o nome indica, reunia obras de A. Gabrieli que se baseavam em melodias de canções, fossem elas de origem popular ou inventadas pelo compositor. O princípio é simples como uma semente, mas dele se originavam exuberantes árvores sonoras.

Sobre Andrea Gabrieli, as notas do CD nos informam: compositor prolífico e respeitado, ele reune em sua música para teclado as heranças dos polifonistas franco-flamencos e a da música espanhola para órgão, a mais evoluída do século XVI com compositores como Antonio de Cabezòn e Juan Bermudo. O seu “Pass’e mezzo Antico” está mais próximo de certas obras espanholas do que do “Pass’e mezzo” de Picchi, de estilo bem mais solto. Gabrieli faz um rico trabalho imitativo, caracterizado, ao mesmo tempo, mais por elegância do que por virtuosismo.

Andrea Gabrieli, além de organista, foi cantor no coro de San Marco quando jovem. De sua ligação com a polifonia vem provavelmente a predominância das formas imitativas. Ricercari e Canzoni são mais frequentes em sua obra do que a forma mais livre da Toccata, a qual tinha como mestre inigualável seu colega em San Marco, Claudio Merulo.

Gabrieli se baseou em uma célebre canção muito famosa naqueles tempos, “Suzanne un jour”, de Lassus, para transformá-la praticamente em uma Pavana – palavra derivada de Padoana, de Pádua, cidade próxima a Veneza – cheia de ornamentos. Para dar uma ideia da distância entre a [i] canzon de Gabrieli e o modelo vocal, o disco apresenta uma versão da canção de Lassus, originalmente para cinco vozes, apenas com a parte de soprano cantada por Kiehr. Era comum naquela época essa prática de improvisos e passagi que traziam apenas uma distância lembrança da canção original.

O disco termina com uma Toccata de Claudio Merulo: embora nascido na Emilia-Romagna (região italiana situada entre Veneza e a Toscana), ele permaneceu em Veneza como organista em San Marco por quase 30 anos, e foi ali que ficou famoso também como compositor, fazendo música para os nobres de Veneza e também comparecendo em Florença no casamento de Franceso de’ Medici como embaixador da Serenissima República de Veneza. Ele foi inovador sobretudo nas suas toccatas, com alternância de momentos polifônicos e passagi brilhantes de virtuosismo. Isso significa que ele alternava, na mesma composição, momentos de contraponto elaborado sob certas regras e momentos bastante livres. Esse estilo influenciou as Toccatas de italianos como Frescobaldi e A. Scarlatti e ainda as de gente de terras distantes como Sweelinck na Holanda, Buxtehude e J.S. Bach na Alemanha.

A toccata de Merulo aqui presente foi publicado no seu segundo livro de “Toccate d’Intavolatura d’organo”. Intavolatura significa introdução. Esse nome, equivalente ao de “Prelúdio” em séculos seguintes, indicava que boa parte da música instrumental publicada era compreendida como introdução a um “Prato Principal” que costumava ser a música vocal, fosse ela sacra ou profana.

Marco Facoli (séc. XVI)
1-10. Peças de “Il secondo Libro d’Intavolatura di Balli d’Arpicordo (Veneza, 1588)
Aria della Comedia nuovo, Aria della Marchetta Schiavonetta,
Aria della Signora Livia, Padoana prima dita Marucina, Aria della Signora Fior d’Amor, Aria della Signora Ortensia,
Aria della Signora Michiela, Padoana quarta dita Marchetta à doi modi, Napolitana “Deh pastorella cara”, Napolitana “S’io m’accorgo ben mio”

Andrea Gabrieli (ca. 1510-1586)
11-12. Peças de “Il Terzo Libro de Ricercari (Veneza, 1596)
Pass’e mezzo antico in cinque modi variati, Ricercar del secondo tono

Giovanni Maria Radino (séc XVI – após 1607)
13-17. Peças de “Il primo Libro d’Intavolatura di Balli d’Arpicordo (Veneza, 1592)
Gagliarda seconda, Gagliarda prima, Padoana prima, Gagliarda terza, Gagliarda quarta,

Orlando di Lasso (1532-1594)
18. Peça de “Mellange d’Orlande de Lassus” (Le Roy & Ballard, 1570)
Susanne ung jour (G. Guerault), chanson

Andrea Gabrieli (ca. 1510-1586)
19-20. Peças de Canzoni alla francese & Ricercari Ariosi, Libro Quinto (Veneza, 1605)
Canzon deta “Suzanne un iour” d’Orlando Lasso, Canzon deta “Frais et Galliard” di Crequillon

Giovanni Picchi (fin do séc. XVI – início séc. XVII)
21-28. Peças de “Intavolatura di Balli d’Arpicordi” (Veneza, 1621)
Ballo ditto il Steffanin, Todescha con il suo Balletto, Ballo ditto il Picchi, Padoana ditta La Ongara, Ballo ongaro con il suo Balletto, Ballo alla Polacha con il suo Saltarello, Pass’e mezzo, Saltarello del Pass’e Mezzo

Claudio Merulo (1533-1604)
29. Peça das “Toccate d’Intavolatura d’organo, Libro Secondo”
Toccata Seconda

Jean-Marc Aymes – cravos fabricados por Philippe Humeau, cópias de Giovanni Antonio (Veneza, 1579) e anônimo italiano
Faixa 29: claviorganum por Philippe Humeau e Etienne Fouss
Faixas 9, 10, 18: Maria-Cristina Kiehr, soprano

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O cravo assinado “Baffo – Venetus – 1574”. Abaixo, mais detalhes dele
Na tábua, figuras que remetem à antiguidade greco-romana Junto ao teclado, arabescos típicos do mundo islâmico


Os dois livros que nos transmitiram as toccatas de Merulo foram publicados pelo autor, que também era editor de partituras. Sabemos que, de maneira geral, a escrita musical se transformou progressivamente e se enriqueceu de novos sinais gráficos a fim de permitir uma melhor transmissão das intenções do autor para o intérprete. Certos compositores sentiram este exigêncie de precisão com mais acuidade do que outros, e Merulo certamente foi um destes: ao contrário de Frescobaldi, porém, ele não utilizou, para alcançar tal objetivo, indicações dinâmicas ou agógicas, ou prefácios explicando o que a página musical não podia conter. Ele colocou seu pensamento unicamente na notação escrita, que articulou através de uma variedade de ritmos e de agrupamentos de notas absolutamente sem igual.

Merulo obriga assim o intérprete a se equilibrar entre, de um lado, a precisão da escrita musical e, de outro lado, seu renome como improvisador, o que faz pensar em interpretações fundamentalmente livres e inventivas. Sua precisão de escrita, da fato, poderia facilmente afastar o intérprete em nosso século do espírito original das obras, preocupado apenas com a realização meticulosa de cada detalhe. Mas se consideramos as partituras […] como a tradução escrita de alguma coisa que escapa à notação musical tradicional, então o intérprete alcança um leque fascinante de possibilidades, o que lhe permite recriar o clima de improviso que esteve presente no nascimento dessas obras. É, então, a busca por um equilíbrio delcado entre a fidelidade ao texto e a liberdade de interpretação que me conduziu ao longo da execução dessas obras sedutoras.
(Fabio Bonizzoni, 1997)

Claudio Merulo (1533-1604):
Toccate, Ricercari, Canzoni

Fabio Bonizzoni, cravo veneziano (anon.), fim do século XVI & órgão da Madonna di Campagna em Ponte in Valtellina, 1519-1589
(venetian harpsichord, anon., end of 16th c. & organ from Ponte in Valtellina, 1519-1589)

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O cartão de visitas do barbudo Claudio Merulo

Pleyel

.: interlúdio :. Carla Bley – the Lost Chords find Paolo Fresu – ao vivo em Köln, 2010

Carla Bley (1936-2023) foi pianista, compositora, arranjadora, além de fases mais ligadas ao fusion, quando tocou órgão hammond, piano elétrico e mais. Uma das poucas instrumentistas mulheres a liderar grupos de jazz – na verdade só consigo lembrar de uma outra, Alice Coltrane, e o fato de ambas terem precisado também do sobrenome dos ex-maridos para se estabelecerem comercialmente diz um pouco sobre a indústria musical… Aliás, um detalhe curioso de sua biografia: tendo estudado piano desde pequena, ela se enturmou junto a outros músicos em Nova York começando em um cargo de pouco prestígio, o de vendedora de cigarros na mítica casa de shows Birdland.

O jornalista alemão Wolfgang Sandner resumiu as qualidades de Carla Bley como: “uma grande estimuladora, musa, criadora de ideias e também alguém que recusava o virtuosismo, o perfeccionismo, convencionalismo e falso pathos”.

Vários dos seus discos já foram postados aqui e comentados por PQPBach (aqui eles todos), então não vou enrolar, apenas observar que também vale a pena conhecer mais sobre o trompetista italiano Paolo Fresu que, felizmente, segue vivo!

Ah sim, já ia esquecendo, neste show de 2010 em Colônia, Alemanha, as composições tocadas são todas de Carla Bley: quatro delas foram lançadas em um disco de 2007 (que pode ser conferido no link acima) e aqui aparecem em versões mais longas, com mais improvisos. O outro tema, Vashkar, é bem mais antigo, tendo sido gravado por Paul Bley na década de 1960 e por Jaco Pastorius na de 70.

Carla Bley – the Lost Chords find Paolo Fresu – Live – MusikTriennale Köln, 2010
1. Vashkar (Carla Bley) – 10:02
2. Radio Announcement – 01:31
3. Two Banana (Carla Bley) – 04:24
4. Three Banana (Carla Bley) – 09:15
5. Four (Carla Bley) – 09:49
6. Five Banana/One Banana more (Carla Bley) – 13:24

Carla Bley – piano, organ, arranger
Paolo Fresu – trumpet
Andy Sheppard – tenor sax
Steve Swallow – bass
Billy Drummond – drums
Stadtgarten, Köln, Germany – 26/4/2010

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A Deusa Carla Bley

Pleyel

Frédéric Chopin (1810-1849): 24 Prelúdios / Robert Schumann (1810-1856): Carnaval (Freire, piano)

Nelson Freire, vocês sabem, foi muito aplaudido e respeitado em vários lugares do mundo. Curiosamente, ao contrário dos últimos anos de sua carreira, quando lotava a maior sala de concertos de Paris (Philharmonie) e tocava com grandes orquestras e maestros em Londres, Leipzig (aqui) e São Petersburgo, o início de sua carreira teve um acolhimento maior na América do Norte. Foi nos EUA e no Canadá que ele gravou alguns recitais que seriam depois lançados comercialmente ou que circulariam entre fãs (como este aqui de 1975 com Scherzo de Chopin e Sonata de Scriabin de altíssimo nível).

Suas primeiras gravações em estúdio lançadas comercialmente, portanto, foram pela CBS (Columbia), selo americano que depois seria incorporado à japonesa Sony. Curiosidade inútil: no mesmo estúdio da Columbia (30th st., New York) onde Nelson gravou os 24 Prelúdios de Chopin, no ano anterior Miles Davis havia gravado o álbum Jack Johnson e, antes, Filles de Kilimanjaro, Kind of Blue e outros álbuns. Vladimir Horowitz também gravou muita coisa lá.

O disco com os Prelúdios recebeu o prestigioso Prêmio Edison em Amsterdam. Mas, apesar desses sucessos de crítica antes dos 30 anos, ele só teria um grande público europeu a ponto de lotar salas como o Concertgebouw de Amsterdam em recitais solo lá por volta do ano 2000.

O disco de hoje é uma compilação da revista francesa Diapason lançada em 2015, testemunhando o prestígio que ele tinha em Paris, onde viveu suas últimas décadas, passando alguns meses em sua outra casa no Rio de Janeiro próxima à pacata praia da Joatinga. Chopin e Schumann são compositores que sempre estiveram muito próximos do coração de Nelson, assim como de seus grandes ídolos que ele chegou a conhecer e, em certos aspectos, imitar: A. Rubinstein (1887-1982), G. Novaes (1896-1979), V. Horowitz (1903-1989)…

Em dezembro de 2021, ao dar “adeus a um poeta do piano”, a revista Diapason recordou o disco Brasileiro (2012), com obras que evocam os anos de estudo de Freire no Rio de Janeiro. Ali, “o grande saudadista” (no original em francês: le grand saudadiste) retornava para as atmosferas, paisagens e cheiros do Brasil. Essa exótica definição de Freire com o neologismo saudadista ajuda a explicar a maneira como ele se entrega de corpo e alma para a linguagem romântica de Chopin e Schumann. A homenagem da Folha de São Paulo foi na mesma linha da Diapason: “Nelson Freire foi o elo entre a era de ouro do piano e o terceiro milênio”.

Capa da reedição da Diapason (2015) pegou uma outra foto da mesma seção que rendeu a capa do LP dos Prelúdios. Nesta aqui ele está menos sério e o pescoço aparece mais

Frédéric Chopin:
24 Préludes, op. 28
Impromptu No. 2, op. 36
Mazurka em si menor, op. 33 nº 4
Mazurka em ré maior, op. 33 nº 2
Robert Schumann:
Carnaval – Scènes mignonnes sur quatre notes (Pequenas cenas sobre quatro notas)
Nelson Freire, piano

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – mp3 320kbps

Original Releases:
Préludes: 1971 (recorded: Columbia 30th Street Studio, New York City, USA)
Impromptu, Mazurkas: 1983 (recorded: Herrenhaus Gut Hasselburg, Neustadt, Germany)
Carnaval: 1969 (recorded: Kirchgemeindehaus, Winterthur, Switzerland)

Nelson Freire com retratos de L. Branco, G. Novaes e F. Liszt (Crédito: Inst. Piano Brasileiro)

Pleyel

 

Johann Sebastian Bach (1685-1750): Cantatas BWV 97, 127 e 156 (Doyle, Kooij, Haegele, Lutz, Bach-Stiftung St. Gallen)

Nas obras corais de Bach, muitos são os momentos de celebração grandiosa: os grandes corais com tímpanos e três trompetes do oratório de Natal, da BWV 80 (festa da Reforma), do Magnificat, etc. Há outros momentos que são de de séria reflexão sobre a vida após a morte: a cantata BWV 106, as Paixões de Cristo, etc. E há ainda movimentos ou cantatas inteiras com  orquestração minimalista, camerística, simplicidade nos meios permitindo um ou dois instrumentos se destacarem. Neste disco de cantatas gravadas sob a direção do suíço Rudolf Lutz, temos sobretudo esse terceiro aspecto de Bach, com momentos memoráveis do oboé, flautas doces, violino e violoncelo, um de cada vez, ressaltando o colorido típico de cada um deles.

No século seguinte, Hector Berlioz escreveria em seu Traité d’instrumentation (1844) que o oboé “tem um caráter camponês, cheio de afeto, mesmo de timidez. A graça inocente, a doce alegria, ou a dor de um ser frágil, tudo isso convém aos sons do oboé: ele as exprime maravilhosamente no seu cantabile.”

Jean Jacques de Boissieu – Um oboísta e dois pastores (1782)

O movimento mais famoso da BWV 156 é a Sinfonia que abre a cantata: um grande solo para oboé que aparece às vezes em compilações do tipo “O melhor de Bach”, tendo sido gravada por orquestras sinfônicas maiores regidas por maestros como Ormandy e Stokowski. Aqui, o oboé é acompanhado por uma orquestra de seis violinos e instrumentos são de época, com cordas de tripas de carneiro, etc.

Na já citada Cantata BWV 106 (apelidada Actus Mysticus, ou Actus Tragicus) os cantores são acompanhados por um número reduzido de instrumentos: duas flautas doces, violas de gamba e continuo, sem violinos. Da mesma maneira, na longa ária para soprano da cantata BWV 127, duas flautas doces e o continuo fazem o acompanhamento quase o tempo todo sozinhos, enquanto soprano e oboé solam em uma espécie de dueto em que o instrumento e a cantora repetem um ao outro. As cordas fazem uma breve entrada no meio do movimento, mas na maior parte do tempo os três instrumentos de sopro tocam sozinhos com o continuo, aqui composto de órgão, cravo, fagote, violoncelo e violino. Aliás, refletindo as diferenças de caráter entre cantatas, Rudolf Lutz e sua turma variam a composição do continuo. Na BWV 156, não há cravo, por exemplo.

O oboé, portanto, é o ator que rouba a cena em muitos momentos das cantatas BWV 127 e 156. Na 127, o caráter mais suave e tímido se explica pela data para a qual a obra foi escrita: para um domingo logo antes da quaresma, no qual o público na igreja já se preparava para o período de reflexão e ausência de festas. Ainda sobre a cantata BWV 127, o maestro e boxeador J. E. Gardiner escreveu sobre as duas árias desta cantata: após a primeira e mais longa, “para soprano com oboé obbligato e acompanhamento staccato de duas flautas doces”, caso alguém tenha “caído de sono durante essa ária hipnótica e arrebatadora, “Bach chama um trompete e o naipe de cordas inteiro” no movimento seguinte, uma evocação do Juízo Final, com uma “selvagem seção em 6/8 em que o inferno aparece em verdadeiro estilo concitato (‘animado’) Monteverdiano. Teologicamente e musicalmente é altamente complexo, sofisticado e inovador”, conclui Gardiner sobre esse movimento que funde recitativo e ária com mudanças de humor meio à maneira de C.P.E. Bach.

A última cantata do álbum, a BWV 97, é a única aqui a se abrir com um grandioso movimento coral mais grandioso – a BWV 156 começa com a “sinfonia” instrumental” e a 127 começa com um coro, mas de escrita um tanto sóbria. Mas o destaque nela, ao menos para os meus ouvidos, fica também nas árias com poucos instrumentos. Cada um dos quatro solistas tem sua ária: o baixo tem como acompanhamento apenas o continuo (violoncelo e órgão nesta gravação), depois o tenor faz a ária mais notável, em dueto com um violino solista à maneira de Vivaldi. As cantatas para uma voz solo e violino solista obbligato, como se sabe, eram comuns na Itália: A. Scarlatti e Händel (no seu período italiano) compuseram dezenas delas, talvez mais de cem…

A voz de alto – aqui cantada por uma mulher, ao contrário desta gravação de cantatas para alto solo – tem como acompanhamento não só um violino mas um naipe de cordas sem sopros; e finalmente na ária para soprano temos novamente dois oboés roubando a cena. Essa progressão bastante esquemática, com a ária da voz mais grave sendo seguida pelas outras vozes em ordem crescente, não é a regra na maioria das cantatas, o que dá a impressão de que nesta cantata, datada de 1734 (portanto uma das últimas de todas as mais de 200), Bach estava exercendo um pouco seu lado de grande mestre ensinando aos pupilos: vejam, crianças, como se fazem árias e coros com todos os tipos de vozes e instrumentos…

Johann Sebastian Bach (1685-1750):
1-5. Cantata BWV 127 «Herr Jesu Christ, wahr’ Mensch und Gott» (para o domingo antes da Quaresma, estreada em Leipzig, 11/fev/1725)

6-11. Cantata BWV 156 «Ich steh mit einem Fuß im Grabe» (para o 3º domingo após a Epifania, estreada em Leipzig, 23/jan/1729[?])

12-20. Cantata BWV 97 «In allen meinen Taten» (para data desconhecida, estreada em 1734)

Choir & Orchestra of the J.S. Bach Foundation, Conductor: Rudolf Lutz

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Ao longo desses anos, todas as mais de 200 cantatas de Bach serão apresentadas pela fundação J.S.Bach Stiftung de Saint Gallen, Suíça. Eles já passaram da metade, em um ritmo lento: cada dia uma única cantata acompanhada de debates sobre os temas e contexto de cada uma.

Diálogo entre oboé e duas flautas doces na BWV 127

Pleyel

Franz-Joseph Haydn (1732-1809): Missa in tempore belli (Doyle, Eichenberger, Berchtold, Friedrich, Lutz, Bach-Stiftung St. Gallen)

A Suíça, vocês sabem… Tem várias cidades médias para padrões europeus e que no Brasil seriam consideradas pequenas, mas onde circula muita grana e, consequentemente, muita arte:

Basel (Basiléia), onde foram estreadas tantas obras de Bartók, Honegger, Stravinsky, Dutilleux, graças ao apoio do bilionário Paul Sacher (músico e empresário, casado com a herdeira da La Roche).

Davos, onde se encontram anualmente os bilionários do Fórum Econômico Mundial para … [o jurídico do PQP Bach sugeriu retirar este trecho para evitar processos]

Montreux e Lugano, famosas pelos seus festivas de jazz… Luzern (Lucerna ou Lucerne), com um importante festival de música de concerto, associado a nomes como Abbado e Boulez.

Lausanne, no mesmo lago de Montreux e da irmã maior Genebra. Lausanne e Genebra são sedes de duas orquestras que gravaram muito por gravadoras como Decca (aqui, com E. Ansermet) e Erato (aqui, com M.J. Pires) nos anos 1950 a 80, com naipes menores e sonoridades mais leves que as das orquestras alemãs.

Com exceção de Genebra e da capital Zurich, as outras cidades citadas têm menos de 200 mil habitantes. É o caso ainda de Saint Gallen, próxima de Zurich e a 1/3 do caminho entre esta e Munique. Nessa cidade de umas 80 mil pessoas – mas vai saber quantos milionários e mecenas das artes – existe desde 2006 uma fundação chamada J.S. Bach-Stiftung, St. Gallen, dedicada às obras corais de Bach. A orquestra e o coro que se formaram nesse contexto, após anos dedicados ao repertório de um só compositor, resolveram fazer outras obras, principalmente para coro e orquestra, como a 9ª Sinfonia de Beethoven e esta Missa in tempore belli (Missa em tempos de guerra), assim nomeada por Haydn por ter sido composta em 1796, em meio às longas guerras que se seguiram à Revolução Francesa e mais especificamente no momento em que tropas francesas começavam a ameaçar os países aliados dos Bourbon e do Antigo Regime.

Com instrumentos de época e cantores super entrosados, o time joga realmente em conjunto. Imagino que a maioria seja de suíços e alemães, mas também se destaca a voz de Julia Doyle, soprano inglesa que apareceu aqui recentemente na Paixão de São João regida por Gardiner.

O que surpreende nessa Missa é o uso da percussão: não é que o tímpano fosse uma novidade em música sacra… Na Missa em Si Menor de Bach, por exemplo, ele aparece para reforçar os momentos de exaltação grandiosa, como o Gloria e o Osanna. A genialidade de Haydn foi usar o tímpano como elemento dramático, sobretudo nos dois movimentos finais: o Benedictus se inicia com cordas misteriosas e rufares de tambores em uma longa introdução instrumental, antes dos solistas entrarem, com destaque para a suave voz angelical de Julia Doyle. Não é um tambor de elevação divina, bem pelo contrário, é um tom de ameaça de quem teme que os canhões cheguem perto da sua casa, talvez mesmo tiros de canhão poderiam cair no seu muro… balas perdidas… coisas bem distantes do cotidiano dos brasileiros de 2023, é claro…

E os tambores de guerra seguem soando no movimento final, Agnus Dei – que segundo os especialistas em Haydn é o coração desta missa, com o destaque dado ao “dai-nos a paz”. Imagina-se que este trecho representaria a opinião de Haydn, que só podia ser expressa em latim já que o efetivo fim da guerra contra Napoleão era tema para os mais altos diplomatas e não se esperava, numa sociedade cheia de censura e regras hierárquicas, que um compositor, mesmo respeitado como Haydn, expressasse qualquer opinião sobre o tema em público.

Se a paz imediata era a vontade de Haydn, não foi esse o curso da História: a missa é de 1796, quando o exército austríaco acumulava derrotas e temia-se a invasão de Viena. E essa invasão viria a acontecer bem depois, em maio de 1809: o bairro onde morava Haydn foi bombardeado de 10 a 13 de maio daquele ano. Dias depois, Haydn morria aos 77 anos e foi homenageado por Napoleão, que admirava o compositor, o que não o impedia de travar longa guerra contra os seus parentes e amigos. Os últimos anos de Haydn, assim como os anos do Beethoven “heroico” (Sinfonias 3 a 6, Sonata Appassionata, etc), foram anos de preocupação com guerras bastante violentas: para quem vivia em Viena, uma bala de canhão sempre poderia cair no dia seguinte. Viver em guerra é mais ou menos assim. Não é legal, né?

Franz-Joseph Haydn (1732-1809):
Missa in tempore belli, Hob. XXII:9 “Paukenmesse”
1. Kyrie
2. Gloria
3. Credo
4. Sanctus
5. Benedictus
6. Agnus Dei

Julia Doyle, soprano
Claude Eichenberger, alto
Bernhard Berchtold, tenor
Wolf Matthias Friedrich, bass
Choir & Orchestra of the J.S. Bach Foundation, Conductor: Rudolf Lutz
Live Recording

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Julia Doyle, soprano de timbre suave e cristalino, sem exageros operísticos

Pleyel

Sofia Gubaidúlina (n. 1931): Canticle of the Sun, Preludes, In Croce (Wispelwey, Collegium Vocale Gent)

Uma constatação que não é novidade mas é sempre bom lembrar: fama, glória e reputação internacional dependem não só de fatores intrínsecos às obras artísticas mas também a fatores externos como tendências geopolíticas, guerras, modas, etc. Um exemplo recente: Silvestrov, nascido em 1937, finalmente foi bem mais ouvido desde 2022, ao mesmo tempo em que bombas destruíam a Ucrânia onde ele vivia.

Com o fim da Guerra Fria, surgiram na cena europeia vários nomes da ex-URSS, normalmente pouco reconhecidos naquele país por não se alinharem com as ideias da burocracia de Moscou quanto ao que deveria ser a música revolucionária. Naquele contexto pré 1989 o Estado soviético tinha juízos de valor sobre música, teatro, literatura etc. e poder para realizar ostracismos, censuras e silenciamentos. Isso pra não falar no período anterior, mais stalinista, quando matavam mesmo e sumiam com os corpos, como aliás também se fez por toda a América do Sul durante parte da Guerra Fria.

Sobre essa temática, recomendo a leitura de “Lukács 1955”, do francês Henri Lefebvre (1901-1991), ainda não traduzido em português, ou ao menos do resumo que aqui fez J. P. Netto. Para Lefebvre, o filósofo [mas também o compositor] teria o direito/dever de não se inclinar aos juízos filosóficos oficiais (partidários e/ou estatais) e de pensar com sua própria cabeça. Uma perspectiva corajosa – e perigosa – para os intelectuais vinculados aos partidos comunistas no século XX.

Assim, desde mais ou menos 1990 ganharam notoriedade nomes como Schnittke, Gubaidulina, Pärt e Vasks, todos estes nascidos entre 1931 e 1946 e já maduros quando de repente surgem convites de grandes orquestras, reportagens em grandes jornais e revistas, além de patrocínios, pois sem dinheiro não se vai muito longe.

Amiga de Schnittke, Gubaidulina talvez seja mais parecida estilisticamente com Arvo Pärt e Krzysztof Penderecki (1933-2020), devido ao caráter sempre espiritualmente carregado de suas músicas. Ela se interessa por música sacra nos mais diversos sentidos da palavra, com a espiritualidade podendo se expressar em obras instrumentais (aqui) e podendo dar origem também a uma longa Paixão de Cristo que estreou em 2000 por encomenda da cidade de Stuttgart (Alemanha) para celebrar 250 anos de morte de J. S. Bach.

Nesta outra obra do disco de hoje, que também se insere no período em que a compositora “saiu do armário” após anos de trabalho mais ou menos solitário e discreto, há a presença de um coral, de um violoncelo solista e de percussionistas. Sem os outros naipes orquestrais, Gubaidúlina se aventura por diferentes possibilidades de combinação desses instrumentos. O coro faz muitas peripécias em trechos sem palavras (só com “ah-ah”‘s, “hm-hm”‘s e coisas do tipo). Já nos momentos em que cantam as palavras escritas por São Francisco de Assis, as vozes soam mais sóbrias, representando um certo respeito de Gubaidúlina com o texto.

E qual é o texto, afinal? Um cântico escrito por volta de 1284. Como resume a wikipedia,

O Cântico das Criaturas (em italiano: Cantico delle creature; em latim: Laudes Creaturarum), também conhecido como Cântico do Irmão Sol (italiano: Cantico di Frate Sole) é uma canção religiosa cristã composta por Francisco de Assis. Escrita no dialeto da Úmbria, acredita-se que esteja entre as primeiras obras escritas no idioma italiano.

Aprendemos, assim, que São Francisco de Assis (1181 – 1226) acreditava (séculos antes de Lutero) que as orações deviam ser feitas na linguagem que o povo entendia. Décadas antes de Dante Alighieri (c. 1265 – 1321), Francesco Petrarca (1304 – 1374) e Giovanni Boccaccio (1313 – 1375), portanto, Francisco de Assis estava escrevendo em italiano. Esse mesmo cântico, além de Gubaidúlina, inspiraram em 2015 a encíclica “Laudato si” (em português: ‘Louvado sejas’; subtítulo: “sobre o cuidado da casa comum”), na qual o Papa Francisco critica o consumismo e a degradação do planeta.

O disco tem ainda duas obras de câmara de Gubaidulina, não por acaso, escritas na época em que nenhuma grande orquestra ou coro tinha interesse na compositora. Os Prelúdios para violoncelo solo (1974) já apareceram em uma gravação integral no blog. Aqui, Wispelwey escolheu os cinco que mais lhe agradam. Tanto o violoncelista como o Collegium Vocale Gent são mais conhecidos por suas interpretações historicamente informadas do repertório dos séculos 18 e 19, mas mostram aqui que não se limitam a Bach e Beethoven.

Sofia Gubaidúlina (n. 1931):
1-19. The Canticle of the Sun (Il Cantico Frate Sole)
20-24. Preludes for violoncello solo
25. In Croce (for cello and bajan)

Pieter Wispelwey, violoncelo
Collegium Vocale Gent – Daniel Reuss, conductor
An Raskin, bajan

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Sofia Gubaidúlina

Pleyel

Ustvolskaya (1919-2006), Gubaidulina (1931-), Górecki (1933-2010), Pelécis (1947-): Obras para piano e orquestra

SKMBT_C25210092715100_0001Repostagem, a pedido, deste álbum com quatro compositores contemporâneos: duas russas, um polonês e um letão.

Galina Ustvolskaya (1919-2006) estudou em Leningrado com Shostakovich [e teve um caso amoroso com ele, dizem]. Seu Concerto para Piano data de 1946. O papel tradicional do solista é forte: as percussões reforçam o piano. Ustvolskaya emprega uma escrita tradicional com temas retomados em imitação. O conjunto parece refletir uma atmosfera pesada após a guerra na União Soviética. Lubimov percebe este concerto como “cortado entre a agressão do desespero e a prostração de uma oração silenciosa”.

Sofia Gubaidulina nasceu em 1931 na República Tartara e se impôs como um dos principais nomes da vanguarda russa, se interessando pelo serialismo e pela música eletrônica. Sua carreira começa tardiamente, aos 40 anos, e se torna internacional após o encontro com Gidon Kremer, intérprete militante da música contemporânea. [Kremer, desde 1997, é regente da Kremerata Baltica, segue regendo e tocando muita música contemporânea]

Da mesma geração mas com um percurso totalmente diferente, o polonês Górecki (1933-2010) teve renome internacional a partir da sua 3ª Sinfonia. O concerto para cravo ou piano op. 40 data de 1980. Sua força expressiva, trazida ao mesmo tempo pela repetição e pela tensão, evoca o caráter “motorik” [em alemão no original] da época construtivista.

Nascido em Riga em 1947, tendo estudado lá e em Moscou, com Aram Khachaturian, ele se interessou também pela música antiga [aqui, significa anterior ao século XVIII] e fez pesquisas e publicou textos sobre Johannes Ockeghem e Palestrina [séculos XV e XVI]. No Concertino bianco, que data de 1984, ele adota voluntariamente uma linguagem linear.

Após as certezas que habitaram os partidários da música serial e os membros da vanguarda baseada na experimentação, assistimos hoje a uma multiplicação de estilos reveladores de um período de dúvidas, de renúncias, e do desencanto deste fim de século.
(Das muito eruditas notas do disco, escritas por Catherine Steinegger em 1995. Traduzi e adicionei as datas de morte de dois. Dois estão vivos em 2018)

Snow Leopard, comentarista da amazon, escreveu sobre Sofia Gubaidulina:

As comparações mais comuns são com Shostakovich e Prokofiev. Eu prefiro descrever sua música como mais similar à de Ustvolskaya, mas o problema é oferecer como comparação alguém menos conhecido que Gubaidulina. Contudo, os clusters e a aridez de Ustvolskaya são mais suaves e “líricos” em Gubaidulina – é claro, trata-se de um lírico apenas comparativo. Há muito pouco da era Romântica na música de Gubaidulina; em vez disso, há o tipo de ênfase na espiritualidade que fez a fama de Penderecki e Ligeti.

Introitus: Concerto para piano e orquestra de câmara, composto em 1978, é uma das obras orquestrais mais famosas de Gubaidulina. Começa com um solo de flauta imediatamente ameaçador e se move por paisagens sublimes de som e atmosfera para terminar finalmente, 23 minutos depois, em um longo trinado do piano. O efeito da peça é difícil de descrever, mas parece uma janela para o mundo de uma outra pessoa.

Galina Ustvolskaya
1. Concerto for Piano, String Orchestra and Timpani (17:23)
Sofia Gubaidulina
2. ‘Introitus’ Concerto for Piano and Chamber Orchestra (24:22)
Henryk Górecki
Concerto for Piano and String Orchestra Op.40
3. Allegro Molto (4:12)
4. Vivace (3:59)
Georgs Pelécis
Concertino Bianco for Piano and Chamber Orchestra in C Major
5. Con Intenerimento (4:48)
6. Con Venerazione (5:54)
7. Con Anima (2:50)

Conductor – Heinrich Schiff
Orchestra – Deutsche Kammerphilharmonie Bremen
Piano – Alexei Lubimov

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Sofia Gubaidúlina (é assim a pronúncia russa do sobrenome)

Pleyel e o piano russo, parte 5

Alessandro Scarlatti (1660-1725): Cantatas para Baixo (Péter Fried)

Um disco para quem quer ouvir um barroco exótico, diferente das centenas de concertos para violino de Vivaldi, cantatas, prelúdios e fugas de Bach… O baixo, como o nome já indica, é a voz mais grave da divisão que já era comumente utilizada nos tempos dos Scarlatti pai e filho. As vozes de  soprano e o alto variavam, segundo os lugares e momentos, entre mulheres, garotos jovens ou homens castrados (castrati, violenta tradição italiana que remontava aos eunucos do Império Bizantino). Mas as vozes de tenor e baixo eram sempre de homens.

As cantatas de A. Scarlatti, assim como antes dele as de Barbara Strozzi e, depois, as de Vivaldi, Händel, Rameau e Hasse eram majoritariamente compostas para vozes mais agudas, de soprano e alto, o que não deixa de ter relação com a ideia geral, naquela época e não só naquela época, de que às mulheres cabia a vida do lar e, aos homens, a vida pública. Pois essas cantatas, escritas para uma ou duas vozes, basso continuo e às vezes um ou dois instrumentos obbligato*, eram música vocal para salões e outros ambientes da intimidade entre amigos, ao contrário da ópera encenada em grandes palcos. Como diz E. Gyenge no libreto do CD, as cantatas de Scarlatti são música de câmara, um diálogo entre cantores e instrumentistas. O texto de cada peça fala fundamentalmente de amor romântico. Nesse ambiente mais privado, não se fazia referência ao casamento e outros sacramentos da Igreja, pelo contrário, as letras dessas cantatas falam de ciúmes entre amantes, de amores “tiranos” e jamais seriam musicadas pelo carola J.S. Bach:

Mi tormenta il pensiero,
mi consuma il desio,
ambo tiranni son del viver mio.

(Me atormenta o pensamento, me consome o desejo, ambos tiranos do meu viver)

Tiranna ingrata, che far dovrò?
Se vuoi ch’io mora, morrò per te

Ma tu ch’altro non brami
ch’il mio duol, il mio pianto e i miei sospiri,

Affanato, tormentato (…) mi conviene di servir

(Tirana ingrata, o que devo fazer? Se queres que morra, morro por ti
Mas não queres nada além da minha dor, choro e suspiros
Faminto, tormentado, (…) me convém servir)

Os assuntos são muito mais próximos dos sujeitos neuróticos de Freud ou Proust do que os textos chapa-branca das cantatas de Bach. Com longos melismas e outras acrobacias vocais dificílimas (e no virtuosismo que exigem dos cantores, Alessandro e Johann Sebastian se aproximam), o homem de voz grave canta amores sofridos que, também em nossos tempos, encontram expressão musical em músicas como o brega. Como cantou Gonzaguinha em 1983, um homem também chora.

E é aí que entra o exótico dessas cantatas em seu tempo, pois a voz de baixo, nas óperas e oratórios, era comumente ligada a personagens poderosos. Alguns exemplos:

Plutão, Senhor do Hades grego (L’Orfeo de Monteverdi, montagem de Harnoncourt em Zurich)

Nas óperas de Monteverdi, são papéis de baixo: Plutão, deus do submundo, em L’Orfeo; Netuno, rei dos mares, em Il ritorno d’Ulisse in patria, enquanto os heróis dessas duas óperas, Orfeu e Ulisses, são tenores que lutam contra a força bruta de gigantes por meio das artes e da inteligência…

A. Scarlatti, em seu oratório Il primo omicidio, reserva o papel de baixo para Lúcifer. Em sua ópera Il Pompeo, o baixo é o imperador Julio Cesar, também transformado em deus na religião romana.

Nas Paixões de J.S. Bach e também nas de C.P.E. Bach, o personagem de Jesus é sempre um baixo, seguindo uma tradição de muitas outras Paixões do norte da Europa como a de Byrd (ca. 1605) e a de Schütz (1666).

No fim do século 18, na Flauta Mágica de Mozart, o poderoso sacerdote Sarastro usa alguns dos baixos profundos mais graves do repertório operístico.

A voz do baixo e sobretudo os baixos profundos, portanto, eram reservados a personagens poderosos, divinos ou demoníacos. As cantatas de Scarlatti para esses cantores, assim, mostram um raramente representado lado íntimo desses homens que, mesmo poderosos e machões, sofriam por amor.

E repito: isso tudo é incomum no mundo musical europeu. Com sua intimidade camerística e pré-romântica, essas cantatas para baixo de A. Scarlatti não têm, que eu saiba, paralelo em nenhuma obra dos outros grandes compositores para voz do seu século (Bach, Händel, Pergolesi, Mozart…) e talvez possam ser chamadas de bisavós dos Lieder de Schubert para voz masculina, como por exemplo a versão para baixo do seu Winterreise (aqui).

Alessandro Scarlatti (1660-1725): Cantatas for Bass
1-3. Imagini d’orrore – para baixo, 2 violinos e continuo
4-11. Splendeano in bel sembiante – para baixo e continuo
12-19. Mentre un zeffiro arguto – para baixo, 2 violinos e continuo
20-23. Mi tormenta il pensiero (Amante parlando con il pensiero) – para baixo e continuo
24-28. Cor di Bruto, e che risolvi? – para baixo e continuo
29-31. Tiranna ingrata, che far dovro? – para baixo, 2 violinos e continuo
32-36. Tra speranza e timore – para baixo, um violino e continuo

Péter Fried (bass)
Savaria Baroque: Piroska Vitárius (violin), Katalin Orosházi (violin), Ottó Nagy (cello), Ágnes Várallyay (harpsichord), Gábor Tokodi (baroque guitar), Pál Németh (artistic director)

Gravado em: Hungaroton Studio, 2006
Partituras editadas por Pál Németh a partir de manuscritos no Conservatórios de Napoli e Paris, Biblioteca de Schwerin e British Museum, London.

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* O nome obbligato era usado para um instrumento específico que o compositor desejava – no caso das cantatas desde disco, um ou dois violinos – e se opõe ao basso continuo, que podia ser executado por diversos instrumentos graves a depender do que estivesse disponível em cada apresentação e local. Neste disco o continuo é executado por cravo, teorba (um parente do alaúde), violão barroco e violoncelo, com destaque para este último. Outros instrumentos usados para o continuo na época incluíam o órgão (nas igrejas), a viola da gamba e o fagote.

Pleyel

Oliver Messiaen (1900-1992): La fauvette des jardins, Rondeau, Prelúdio, etc (Håkon Austbø, piano)

Dias atrás, escrevi aqui que Prokofiev era, em certos sentidos, o anti-Debussy de sua geração. Pois é verdade também que Messiaen, como um continuador do legado de Debussy, é mais ou menos um anti-Prokofiev. Ele não compôs balés, valsas, minuetos, nada para a dança de pés humanos: mais interessante, para ele, era ouvir o som dos pássaros, do vento sobre as águas, de sinos de igreja. Ao contrário de outros compositores que evitavam “entregar o jogo” sobre suas ideias e métodos, Messiaen deu entrevistas e escreveu livros e libretos de obras explicando essa sua busca por sons exóticos e para além da musicaldade humana.

Com a palavra, Messiaen:

“Sempre gostei dos cantos de pássaros. Quando comecei a anotá-los devia ter 17 ou 18 anos, os transcrevia muito mal. Depois tive lições em campo com ornitólogos de renome.”

“Os Choros de Villa-Lobos, que considero maravilhas de orquestração, foram para mim o ponto de partida de algumas justaposições de timbres”

[Entrevista a] Claude Samuel: Um dia, quando eu disse que você era um compositor, você acrescentou: “Eu sou um ornitólogo e um ritmista.” Em que sentido o segundo desses títulos deve ser entendido?

Olivier Messiaen: Eu sinto que o ritmo é a parte primordial e talvez essencial da música. Eu acho que provavelmente existia antes da melodia e da harmonia, e na verdade tenho uma preferência secreta por esse elemento.

C.S.: Se você não se importar, vamos ver alguns exemplos concretos. O que é música rítmica?

O.M.: Resumindo, a música rítmica é música que despreza repetição e divisões iguais, e isso se inspira nos movimentos da natureza, movimentos de durações livres e desiguais. Há um exemplo muito marcante de música não-rítmica que é considerada rítmica: marchas militares. A marcha com seu andamento cadencial, com sua sucessão ininterrupta de valores de notas absolutamente iguais, é antinatural. A marcha genuína na natureza é acompanhada por um fluxo extremamente irregular; é uma série de quedas, mais ou menos evitadas, ocorrendo entre batidas.

C.S.: Então, a música militar é a negação do ritmo?

O.M.: Absolutamente.

C.S.: Você pode nos dar alguns exemplos de música rítmica interessante no repertório clássico ocidental?

O.M.: O maior ritmista da música clássica é certamente Mozart. O ritmo dele tem uma qualidade de movimento, mas pertence principalmente ao campo da acentuação, derivada da palavra falada e escrita. Se a colocação exata dos acentos não for observada, a música mozartiana é completamente destruída.

C.S.: Vamos continuar a nossa pesquisa de compositores rítmicos com uma parada obrigatória em Debussy.

O.M.: Conversamos sobre a orquestração de Claude Debussy e seu amor pela natureza – vento e água. Este amor levou-o diretamente à irregularidade em durações de notas que mencionei, característica do ritmo e permitindo-lhe evitar repetições.

Mais do que um criador de melodias, Olivier Messiaen considerava-se um pesquisador de ritmos: “Tratado de ritmo, de cor e de ornitologia” é o nome do livro em vários tomos que ele escreveu entre 1949 e 1992. O ritmo, portanto, vem em 1º lugar nessa longa obra na qual explica os aspectos importantes de seu método de composição, que, aliás, ele não pretendia impor aos seus alunos (Murail, Stockhausen, Boulez, Almeida Prado… cada um seguiu seu caminho). Os ritmos complexos apaixonavam Messiaen: ele dava como exemplo a simetria das asas das borboletas, compara com a simetria em catedrais góticas e em ritmos simétricos que, diz ele, “os Hindus foram os primeiros a notar e usar, ritmicamente e musicalmente, esse princípio”.

Neste CD que completa as gravações do piano de Messiaen pelo norueguês Håkon Austbø, a obra mais importante e mais longa é La fauvette des jardins: embora o título principal faça referência a um pequeno passarinho europeu, os títulos dos três movimentos mostram que, ao invés de um foco exclusivo neste bicho, a obra evoca uma ampla paisagem de noite e depois de dia: (I) a noite, (II) o lago verde e violeta, (III) ondulações da água. Como Debussy (La cathédrale engloutie para piano, Sirènes para coro e orquestra, La Mer para orquestra), Messiaen se diverte criando cenas aquáticas com meios musicais.

Olivier Messiaen:
1. Les offrandes oubliées (1931)
2. Fantaisie burlesque (1932)
3. Pièce pour le tombeau de Paul Dukas (1935)
4. Rondeau (1943)
5. Prélude (1964)
6-8. La fauvette des jardins (1970-72):
I. (la nuit)
II. (le lac vert et violet…)
III. (ondulations de l’eau…)

Håkon Austbø, piano

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““Eles cantaram muito antes de nós. E inventaram a improvisação coletiva, pois cada pássaro, junto com os outros, faz um concerto geral” – Messiaen sobre os pássaros

Pleyel

Sergei Prokofiev (1891-1953): Sonata para Piano nº 1 e 6, Danças de Cinderela, Estudos (Argentieri)

Um disco recente com música que eu amo profundamente (principalmente as Sonatas 1 e 6) interpretada por uma pianista jovem e pouco conhecida. Poderia dar errado: não seria a primeira nem a segunda vez se eu parasse o disco no meio e retornasse aos grandes mestres do passado – ou no caso de Prokofiev, dois grandes pianistas ainda vivos mas já na casa dos 70 anos: Sokolov e Raekallio.

A aposta na moça italiana, porém, deu certo: Stefania Argentieri faz um Prokofiev envolvente e escolhe um repertório bastante interessante, começando com obras maduras (Peças de Cinderela, de 1944, 6ª Sonata, de 1940) e passa depois para obras de quando o compositor tinha menos de 20 anos. Nessa abordagem cronológica invertida, é como se a pianista mergulhasse na individualidade de Prokofiev mostrando como ele partiu de ideias que circulavam em sua época e foi criando, aos poucos, um lugar próprio para si.

Com seus ritmos constantes ligados à dança (não por acaso seus balés e música para o palco em geral tiveram tanto sucesso), Prokofiev seria, na sua geração, uma espécie de anti-Debussy. O francês, em sua busca pelos sons do vento e do mar, nunca imitava o ritmo previsível dos relógios. É verdade que o jovem Debussy havia composto, na Suite Bergamasque (de 1890, retocada para publicação em 1905), um minueto e um passepied, duas danças de ritmo constante apesar de extremamente sofisticadas. Mas seu estilo ainda estava em formação. É nos 24 Prelúdios para piano (1909-1913) que a linguagem de Debussy está plenamente formada e ele utiliza ritmos constantes apenas para quebrá-los pouco depois, como em La sérénade interrompue (A serenata interrompida), de nome autoexplicativo, e em Hommage à S. Pickwick Esq. P.P.M.P.C. (Homenagem a um personagem cômico de Charles Dickens). Nesta última, o hino da Grã-Bretanha começa solene e grave, mas logo se torna bem-humorado e grotesco justamente pelas interrupções e irregularidades.

Assim como Debussy, Prokofiev precisou tatear um pouco antes de achar o seu estilo que aparece nas danças extraídas do balé Cinderela e na 6ª Sonata. Na sua 1ª sonata, Prokofiev ainda era um jovem compositor e pianista estudando no Conservatório de São Petersburgo. O estilo às vezes parece imitar o de Scriabin, mas uma imitação muito bem feita, uma cópia de gênio. E nos estudos a figura de Chopin também aparece nas entrelinhas.

Vejamos abaixo, nas palavras extraídas do encarte do álbum por Attilio Cantore (professor em Milão), outros aspectos da relação entre Prokofiev e o vasto e agitado mundo que existia ao redor dele. Nessa verificação da hipótese mais ou menos óbvia de que Prokofiev não era um sábio em sua torre de marfim isolado da música do século XX, o interessante é percebermos como Prokofiev ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que ninguém mais poderia ocupar.

Aluno de Liadov, Tcherepnin e Rimsky-Korsakov, de quem assimilou a veia épica, Sergei Prokofiev apareceu na cena russa e internacional bastante jovem. Seu ecletismo encontrou um terreno fértil numa época em que o cenário musical incluía o impressionismo francês, o romantismo sinfônico tardio da Europa central, além do “profeta” Scriabin e Schönberg participando da crise na organização tonal.

Se é verdade que Prokofiev, quando mais maduro, se sentia estrangeiro ao pensamento dodecafônico, é igualmente verdade que em 1911 foi o jovem Prokofiev que estreou na Rússia os Klavierstücke, Op. 11 de Schönberg. Igualmente significante foi a nunca resolvida rivalidade com Stravinsky: uma contínua batalha com o compositor 9 anos mais velho, também formado em São Petersburgo, que levou o mais jovem ao estudo e à assimilação tática e tácita de características de Stravinsky.

A música de Prokofiev oferece um retorno à tonalidade: de um jeito novo, ele cria um mundo tonal cheio de “notas erradas”. Sua escrita, embora mostre diversas influências, parece evitar estratégias codificadas: é uma escrita com suas próprias leis. Mesmo na mesma obra, podem coexistir diferentes princípios de difícil identificação.

Retrato de Prokofiev por Anna Ostroumova – Paris, 1926

Sergei Prokofiev (1891-1953):
Seis peças de Cinderela, op.102
1 I. Valsa: Cinderela e o Príncipe
2 II. Variação de Cinderela
3 III. A disputa
4 IV. Valsa: Cinderela vai para o baile
5 V. Pas de Chale
6 VI. Amoroso
Sonata para Piano nº 6 em lá maior, op. 82
7 I. Allegro Moderato
8 II. Allegretto
9 III. Temp di Valzer, Lentissimo
10 IV. Vivace
11 Sonata para Piano nº 1 em fá menor, op. 1
Quatro Estudos, op. 2
12 No. 1 em ré menor
13 No. 2 em mi menor
14 No. 3 em dó menor
15 No. 4 em dó menor
16 Suggestion Diabolique, op. 4 nº 4

Stefania Argentieri, piano
Recorded at Teastro Giuseppe Curci, Barletta, Italy, 2019

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Stefania Argentieri é professora em Lecce, sul da Itália: no mapa, é o salto alto da bota

Pleyel

Antonio Vivaldi (1678-1741): Concerti per le Solennità (Carmignola, Sonatori de la Gioiosa Marca)

 Seguimos com mais Vivaldi festivo. Neste disco, todos os concertos são para o mesmo solista, o violino de Carmignola. Para termos uma ideia do clima festivo em que eram executados e ouvidos esses concertos, as imagens aqui falam mais do que as palavras. (Millôr Fernandes tinha aquela frase: “Uma imagem vale mais do que mil palavras. Agora tente dizer isso com uma imagem.”)

Comecemos, então, muito antes de Vivaldi: houve um tempo, longo tempo, em que por muitos séculos Veneza mandava no comércio de boa parte do Mediterrâneo, fazia comércio com bizantinos, turcos, persas, sírios, judeus e outros povos… O mosaico acima, de 1200 e pouco, retrata a Basilica di San Marco recebendo – em festa! – o corpo do evangelista São Marcos, que venezianos tomaram dos cristãos coptas da antiquíssima Igreja de Alexandria (que se mantinha após a islamização do Egito, mas fraca politicamente e representando uma minoria social, minoria que ainda corresponde a milhões de pessoas, 10% ou um pouco menos da população do Egito de hoje). O mosaico tem uma incongruência histórica: em cima do portal central com seu Cristo e o emblema IC XC (Jesus Cristo), podem ser vistos os quatro cavalos roubados de Constantinopla em 1204. Clique na imagem para ver os cavalos melhor. Napoleão depois levaria os cavalos para Paris mas o Congresso de Viena (1815) os devolveria. Ou seja, como fizeram Napoleão e ingleses no Egito e Atenas, antes o fez Veneza: roubou com base no princípio básico segundo o qual “quem pode, pode; quem não pode, se sacode!” (Como vovó já dizia…)

Não foi na imensa Basilica di San Marco que Vivaldi trabalhou, aliás em seu tempo ela talvez já fosse musicalmente pouco respeitada, apesar de toda a beleza dos mosaicos brilhantes e tesouros roubados. Mas em dois concertos gravados neste álbum temos uma característica musical que foi desenvolvida cerca de cem anos antes em San Marco: são concerti a due cori, ou seja, nos quais os músicos se dividem em dois grupos, um de cada lado da igreja, com o público no centro, é claro. Essa forma espacial e conceitual é bastante diferente daquela que se consolidou no estilo chamado de “teatro italiano”, que tem como característica a nítida separação entre o público e o palco, com este último na frente, em um tablado mais alto. Existem outras formas, além do público atrás (teatro italiano) ou no meio (due cori): por exemplo nas arenas greco-romanas e nos atuais estádios de futebol, o público fica em torno do espetáculo. Cada uma dessas organizações espaciais resulta em relações sujeito-objeto diferentes, é assunto para várias horas de conversa tomando bons vinhos. Retomemos o essencial: Vivaldi passou alguns períodos fora de Veneza e depois voltou a trabalhar no Ospedale della Pietà, encontrando o lugar reformado: em 1724 a igreja se adaptou arquitetônica e musicalmente ao formato com dois coros (ou duas orquestras na linguagem de hoje), aquele que em San Marco já era comum desde 1600! E assim podemos ter certeza de que os dois concertos per la Santissima Assunzione di Maria Vergine foram compostos quando Vivaldi já tinha cerca de 50 anos, representando o seu estilo maduro.

Uma estranha relíquia: a língua de Santo Antônio

Os demais concertos do álbum, associados a outras festas cristãs, são anteriores. O primeiro deles provavelmente é o RV 212, para a “festa da santa língua de Santo Antônio de Pádua”, em fevereiro de 1712, quando Vivaldi morava naquela cidade. Nascido em Lisboa e morto em Pádua (Padova), seguidor de São Francisco, Santo Antônio foi canonizado pouco após sua morte em 1231: grande orador, sua língua incorruptível (“mumificada” de alguma forma) é venerada na Basílica dedicada a este santo em Pádua, 3ª maior cidade na região do Vêneto atrás de Veneza e Verona. Normalmente quando se fala em Santo Antônio nas línguas neo-latinas, é dele que se fala, enquanto em outros lugares o nome se refere sobretudo ao eremita Santo Antônio, que viveu no deserto no século IV e sofreu as famosas tentações retratadas por Hieronymus Bosch, Salvador Dalí e tantos outros pintores de imaginação fértil.

Tentações de Sto Antonio (Bosch, circa 1500, versão do MASP, único Bosch no Brasil)
Cerimônia religiosa na igreja de San Lorenzo, em Veneza, em quadro pintado em 1789 por Gabriele Bella. Pelo menos dois concertos de Vivaldi, o RV 286 e o RV 562, foram encomendados a Vivaldi com a intenção de abrilhantar cerimônias em San Lorenzo

O Concerto em ré maior apelidado Grosso Mogul não parece ter sido assim nomeado por Vivaldi, o nome aparece apenas nas partituras desse concerto que circularam na Alemanha. J.S. Bach gostava tanto dele que fez uma transcrição para órgão (BWV 594). Na partitura original, ao invés de “Grosso Mogul” (título do imperador muçulmano que mandava em boa parte da Índia, da dinastia que fez o Taj Mahal em 1653), consta a sigla RBDV, cujo significado é desconhecido mas, segundo o professor Reinhard Strohm, o V deve se referir a ela, novamente ela, a Virgem Maria. Com suas cadências longas, difíceis e impressionantes, o concerto provavelmente data do primeiro momento de fama de Vivaldi em Veneza, por volta de 1713: após períodos em Brescia, Pádua e Vicenza, ele voltou para sua cidade natal em meio a muitas celebrações após as vitórias militares contra os turcos. Além de solar em seus concertos para violino, Vivaldi também estreou naquela época como compositor de oratórios com um de nome grandioso: “A vitória naval prevista por Sua Santidade o Papa Pio V”, referência a uma outra vitória de Veneza e aliados contra o Império Turco Otomano (em 1572, veja o quadro de Veronese aqui).

Gabriel Bella: sposalizio nobile alla salute circa 1780 (pintura usada na capa deste e de outros discos

Antonio Vivaldi (1678-1741):
1-3 – Concerto “Per la Solennità della S. Lingua di S. Antonio di Padova” in D Major, RV 212
4-6 – Concerto “Il Riposo – Per il Santo Natale” in E Major, RV 270
7-9 – Concerto “Per la Solennità di S. Lorenzo” in F Major, RV 286
10-12 – Concerto in due Cori “Per la Santissima Assunzione di Maria Vergine” in D Major, RV 582
13-15 – Concerto in due Cori “Per la Santissima Assunzione di Maria Vergine” in C Major, RV 581
16-18 – Concerto “LDBV” (“Grosso Mogul”) in D Major, RV 208

Giuliano Carmignola, violino principale
Sonatori de la Gioiosa Marca
Recorded: Chiesa San Vigilio Col San Martino, Treviso, Veneto, Italia, 1996

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Um post-scriptum em outro tom menos celebratório: as línguas estrangeiras são interessantes para desnaturalizar o que ouvimos desde sempre. “Virgem Maria” é uma expressão tão banal quanto “cruz credo”, mas lendo que em italiano dois desses concertos eram dedicados à “Assunzione di Maria Vergine” me salta aos olhos a grosseria, a fofoca que é associar, como se diz “Alexandre o Grande”, “Maria, a Virgem”. Uma preocupação com a virgindade – nunca a dos homens, claro – que me lembra aqueles que hoje em dia ficam se preocupando com banheiro unissex ou se autointitulando “imbrochável”.

No mesmo século 18 em que Vivaldi viveu, os arquivos da inquisição na América portuguesa registram casos de padres acusados de, durante a confissão, “apalpar os seios das mulheres, meter suas mãos por debaixo das saias, beijá-las, agarrá-las”, perguntar “se queriam pecar com eles”, se tinham “vaso [vagina] grande ou pequeno” e, “ouvindo confissões de mulheres casadas, perguntavam até sobre o tamanho do pênis dos maridos” (cito aqui o historiador Ronaldo Vainfas, Moralidades Brasílicas, 1997).

Quero crer que esses padres que se aproveitavam das confissões para novos pecados tenham sido minoria no século de Vivaldi (no fundo, jamais saberemos porque o que foi denunciado e anotado são gotas d’água no oceano ou ao menos na lagoa). Também creio que precisamente essa minoria de padres que apalpavam as mulheres no escuro – e/ou se informavam sobre seus maridos com vistas a pecados futuros – foram precisamente aqueles que mais se preocupavam com a virgindade de Maria.

Igrejas de Veneza, por Andrejs Bovtovičs

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