Ludwig van Beethoven (1770-1827) – Trinta e três Variações sobre uma Valsa de Anton Diabelli, Op. 120 – Mitsuko Uchida #BTVHN253

 

Admito: quase que não demos os parabéns a Ludwig. Ontem mesmo nosso colega René apontou que o aniversário de quem chamou de vice-padroeiro do blog passara em branco, pelo que resolvi antecipar essa postagem que já tinha no prelo, e ainda em tempo de lhe render homenagem. Afinal, presume-se que Beethoven, batizado em 17 de dezembro de 1770, nasceu um dia antes, mas nem ele próprio sabia em que dia sua querida mãe o trouxera ao mundo, de modo que celebrava seu natalício no dia 17 e, alemão que era, provavelmente não apreciasse a ideia de receber parabéns na véspera, esperando com isso agouros ainda piores que os tantos desgostos que teve na vida.

Não foi só para não fazer desfeitas, entretanto, que lhes apresento esta gravação. Faço-o porque desde que foi lançada, há já ano e meio, ela quase só encontrou, entre um e outro resmunguinho, bramidos de aclamação. Não me importaria com eles, claro, e jamais haveria de compartilhá-la, por óbvio, se um desses bramidos não fosse meu – e porque sim, meus caros, essa leitura de Dame Mitsuko para as Variações Diabelli é realmente transcendental.

Admito, também, enquanto ainda surfo a mesma onda sincericida com que abri essa postagem, que esperava algo bem diferente quando me coloquei a ouvi-la pela primeira vez. Talvez mais o fogo e a fúria com que Mitsuko-san atacara, por exemplo, a leviatânica Hammerklavier, que demonstrações da sabedoria amealhada em quase sete décadas a debulhar os caroços do repertório beethoveniano. Estranhei, por exemplo, as diminutas cisuras na apresentação do tema e a acentuação peculiar dos tempos da valsinha (ou, mais apropriadamente, do Ländler) de Diabelli, só para, algumas variações adiante, ouvir essa acentuação fazer todo sentido, ao reaparecer como um dos poucos elementos reconhecíveis do tema, então  transfigurado por completo. Quando dei por mim, uma fabulosa hora já tinha passado e me vi a recomeçar a jornada com Uchida, a reencontrar a valsinha de Diabelli e reconhecer a coerência sobre-humana que a arte dela concedera àquele longo arco de trinta e três transformações.

[Poucas vezes, aliás – se me permitem não só parênteses, mas também colchetes -, a preferência de Beethoven pelo termo Veränderungen (“transformações”) em lugar do consolidado Variationen para o título da primeira edição soou-me tão sobejamente honrada numa gravação dessa sua última grande obra para piano, testamento da dedicação de uma vida inteira, e desde a tenra idade, tanto ao piano quanto à forma das variações]

Escutei-a inda outra vez – a terceira em sequência -, com a partitura em mãos, e me maravilhei com a atenção da intérprete às indicações precisas de articulação e dinâmica que Beethoven lhe deixou, a despeito de toda minha (agora reconhecia) insensata estranheza inicial. Estava, e isso vocês já perceberam, inteiramente arrebatado pela gravação. Passei então alguns meses sem ouvi-la, para tentar ganhar dela algum distanciamento, e então reencontrá-la, talvez, com ouvidos mais críticos. Teria eu, perguntava-me, embriagado pelo hype dos bramidos supracitados, realmente exagerado em minha reação? Ou teria tão só, doente de tanta dor, doideira e feiúra que testemunhara no Brasil dos anos anteriores, me deixado emocionar por um encontro schopenhaueriano com a Arte ante o sofrimento da vida?

“Não”, respondi – e foi um “não” tão cabal, e tanto, e a tal ponto, que hesito até em revisitar as minhas gravações outrora prediletas das Diabelli. Teriam sido elas menos convincentes? Não lhes sei responder. Talvez haja algumas com mais colorido, ademais fundamental para sustentar quase uma hora toda em Dó maior (pois apenas quatro das variações, todas no final da série, não são nessa tonalidade), mas, se aqui a cores não faltam, tampouco Mitsuko-san as exagera. Talvez outras realcem mais os bruscos contrastes de temperamento que permeiam, com sugestões da legendária rabugice do compositor, a maior parte da obra. Uchida, sabiamente, consegue realçar tais contrastes e o abundante humor da partitura sem que isso soe como histrionismo raso. Mais ainda: ela supera sem taquicardias aparentes as medonhas exigências técnicas para nos oferecer uma sequência de tours de force que jamais exaspera  e nos deixa, ao final de cada variação, sempre doidos de vontade pelo que vem a seguir (e sua maestria é tamanha que eu convido os leitores-ouvintes a perceberem que até as durações dos intervalos entre as variações parecem escolhidos à perfeição).

Ouço-a uma vez mais, enquanto preparo esta postagem, e ela me reforça a impressão de que esse registro está para esse K-2 (e não Everest, porque é ainda mais repleto de despenhadeiros) da literatura pianística como a lendária gravação de Carlos Kleiber está para a Quinta do renano: uma interpretação reveladora, tão rica em atenção ao detalhe, ao pulso e à arquitetura de uma obra-prima que nos fará ouvir com ouvidos novos, e ainda mais aguçados, tudo o que vier depois.

Mesmo depois de tanta rasgação de seda, não serei capaz de recomendar-lhes essa gravação o bastante. Reconheço que há poucos frutos mais espinhudos dos visionários anos finais da carreira de Beethoven (sim, Grosse Fuge: estou olhando para ti!) e que as Diabelli são de difícil digestão a muitos ouvintes. Convido-os, ainda assim, a arriscar o repasto: talvez o que lhes tenha faltado até hoje, enfim, fosse alguém com os afiados dedos de Uchida para perfurar-lhe a carapaça e remover-lhe os caroços.


Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)

Trinta e três variações em Dó maior para piano sobre uma valsa de Anton Diabelli, Op. 120
1 – Tema: Vivace
2 – Variação I: Alla marcia maestoso
3 – Variação II: Poco allegro
4 – Variação III: L’istesso tempo
5 – Variação IV: Un poco più vivace
6 – Variação V: Allegro vivace
7 – Variação VI: Allegro ma non troppo e serioso
8 – Variação VII: Un poco più allegro
9 – Variação VIII: Poco vivace
10 – Variação IX: Allegro pesante e risoluto
11 – Variação X: Presto
12 – Variação XI: Allegretto
13 – Variação XII: Un poco più moto
14 – Variação XIII: Vivace
15 – Variação XIV: Grave e maestoso
16 – Variação XV: Presto scherzando
17 – Variação XVI: Allegro
18 – Variação XVII: Allegro
19 – Variação XVIII: Poco moderato
20 – Variação XIX: Presto
21 – Variação XX: Andante
22 – Variação XXI: Allegro con brio – Meno allegro – Tempo primo
23 – Variação XXII: Allegro molto, alla «Notte e giorno faticar» di Mozart
24 – Variação XXIII: Allegro assai
25 – Variação XXIV: Fughetta (Andante)
26 – Variação XXV: Allegro
27 – Variação XXVI: (Piacevole)
28 – Variação XXVII: Vivace
29 – Variação XXVIII: Allegro
30 – Variação XXIX: Adagio ma non troppo
31 – Variação XXX: Andante, sempre cantabile
32 – Variação XXXI: Largo, molto espressivo
33 – Variação XXXII: Fuga: Allegro
34 – Variação XXXIII: Tempo di Menuetto moderato

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

Mitsuko Uchida, piano

Outra sugestão de René Denon

Vassily

2 comments / Add your comment below

  1. Mas que beleza de texto, Vassily!
    Convenceu-me no ato! Já baixei minha versão e a começo a ouvir…
    Com suas palavras adiante e meu senso tão menos sofisticado que o seu, tudo o que me restará é entregar-me ao talento de Uchida…
    Ah, claro: obrigado!
    🙂

  2. Gostei bastante. Na verdade, achei revelador: inevitável não sentir como que o universo dessa obra ainda mais largo e cheio de dimensões.
    Obrigado por compartilhar. E — não poderia deixar de repetir isto — é sempre muito bom ler sua prosa.

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