O som e o mundo perderam Radu Lupu no último dia 17, e novamente vejo-me aqui a tentar homenagear, com minha escrita capenga, alguém que era tremendamente mais do que ela. E, se não podemos dizer que a morte nos privou de um artista que ainda teria o que nos legar – pois o Mestre, que não gravava havia décadas, escolhera deixar os palcos há três anos -, eu reconheço que seu desaparecimento frustrou a nesguinha de esperança que eu ainda tinha de ouvi-lo ao vivo. Quem teve esse privilégio – entre eles, muitos de seus colegas de instrumento, que invariavelmente o idolatravam – conta que ninguém, vivo ou morto, se comparava a Lupu.
(Kirill Gerstein)
[Lupu] tem o dom incomum de iluminar tudo que ele toca com rara inteligência musical”
(András Schiff)
Lupu tem o raro dom de deixar a música falar por si mesma”
(Nikolai Lugansky)
As eulogias que recebeu nos últimos dias não foram menos enfáticas. A minha preferida é
… que chega bem perto de definir o Mestre que, no entanto, era muito inseguro acerca de suas tremendas capacidades. Ao amigo Kirill Gerstein, afirmou que não era realmente um pianista, mas que sabia “tocar frases musicais”. A um produtor, tascou: “você gosta de boa articulação? Ouça Perahia“! À insegurança, que o fazia odiar estúdios de gravação e a perenidade de seus registros, somava-se um perfeccionismo notório, ainda que mais preocupado com a coerência da narrativa musical do que com a perfeição nota a nota: o mesmo produtor que foi mandado ouvir Perahia afirmou, em sua eulogia, que “suas gravações quase sempre foram sensacionalmente bem recebidas, mas tendo ouvido os takes que ele rejeitou, só posso recomendar que, se você encontrar suas gravações ao vivo, é nelas que você ouvirá o autêntico Lupu”.
(o Mestre, infelizmente, não se deixava gravar ao vivo – a não ser que o desobedecessem, como foi no caso dessa gravação do concerto no. 27 de Amadeus que o Pleyel conseguiu, e que FDP Bach publicou ontem, juntamente com, vejam só, um disco do duo Lupu-Perahia)
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Um “pianista dos pianistas”? Provavelmente, a julgar pelos tantos nomes célebres que se apinhavam em seu camarim nos raríssimos recitais, e pela frequência com que sua figura hirsuta e brahmsiana, mas também sorridente e bonachona, aparecia nas redes sociais de outros músicos menos afeitos à reclusão, como vemos acima. E também aos completos diletantes, aos tocadoresdepiano como eu, Lupu soava como nenhum outro: era, mais que músico maiúsculo, um consumado poeta do piano. Se não acreditam em mim, hão de se convencer por este punhado de gravações que ora lhes alcanço, que se juntará ao outro punhado que já existia aqui no PQP Bach, e que não estará muito longe de formar a discografia completa desse gênio tão bissexto aos estúdios. A primeira, com os improvisos de Schubert, foi a que me tornou lupumaníaco para sempre: nunca escutei qualquer gravação que se lhe comparasse. A segunda, com a impressionante sonata que Brahms escreveu aos tenros 20 anos, já tinha sido recomendada até pelo patrão, mas ainda não aparecera aqui. Completo meu tributo a mostrar-lhes outros veios do talento do Mestre: seu camerismo nos quintetos para piano e sopros de Mozart e Beethoven; prestando um acompanhamento de luxo para Barbara Hendricks num belo CD com Lieder de Schubert, que faz par com outro que o chefinho já postara aqui; e como concertista, tocando um Primeiro de Brahms cheio de nuances que, como sói acontecer sob seus dedos, soa igual a nenhum outro.
In memoriam Radu Lupu (Galaţi, Romênia, 30/11/1945 – Lausanne, Suíça, 17/4/2022)
Franz Peter SCHUBERT (1797-1828)
Improvisos para piano, D. 899 (Op. 90)
1 – No. 1 em Dó menor: Allegro molto moderato
2 – No. 2 em Mi bemol maior: Allegro
3 – No. 3 em Sol bemol maior: Andante
4 – No. 4 em Lá bemol maior: Allegretto
Improvisos para piano, D.935 (Op. 142)
5 – No. 1 em Fá menor: Allegro moderato
6 – No. 2 em Lá bemol maior: Allegretto
7 – No. 3 em Si bemol maior: Tema e variações
8 – No. 4 em Fá menor: Allegro scherzando
Sonata para piano no. 3 em Fá menor, Op. 5
1 – Allegro maestoso
2 – Andante espressivo
3 – Scherzo. Allegro energic
4 – Intermezzo. Andante molto
5 – Allegro moderato ma rubato
6 – Tema e Variações em Ré menor (arranjo do Sexteto para cordas em Si bemol maior, Op. 18)
Wolfgang Amadeus MOZART (1756-1791)
Quinteto em Mi bemol maior para piano e sopros, K. 452
1 – Largo – Allegro moderato
2 – Larghetto
3 – Rondo: Allegretto
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Quinteto em Mi bemol maior para piano e sopros, Op. 16
4 – Grave – Allegro ma non troppo
5 – Andante cantabile
6 – Rondo: Allegro ma non troppo
Han de Vries, oboé
George Pieterson, clarinete
Vicente Zarzo, trompa
Brian Pollard, fagote
Franz SCHUBERT
De Schwanengesang, D. 957
1 – No. 1: Liebesbotschaft (Rellstab)
2 – No. 2: Ständchen (Rellstab)
3 – Lachen und weinen, D. 777 (Rückert)
De Refrainlieder, D. 866
4 – No. 3: Die Männer sind mechant! (Seidl)
5 – Auf dem Strom, D. 943 (Rellstab)
com Bruno Schneider, trompa
6 – Sehnsucht, D. 879 (Seidl)
7 – An den Mond, D. 193 (Hölty)
8 – Versunken, D. 715 (Goethe)
9 – Der Hirt Auf Dem Felsen, D. 965 (von Chézy/Müller)
com Sabine Meyer, clarinete
10 – Du liebst mich nicht, D. 756 (von Platen-Hallermünde)
11 – Die Liebe hat gelogen, D. 751 (von Platen-Hallermünde)
12 – Die junge Nonne, D. 828 (Jachelutta)
13 – Klaglied, D. 23 (Rochlitz)
14 – Ellen’s Dritter Gesang (Ave Maria), D. 839 (Scott)
De Zwei Szenen aus dem Schauspiel ‘Lacrimas’, D. 857:
15 – No. 1: Delphine (Schütz)
16 – Heidenröslein, D. 257 (Goethe)
Barbara Hendricks, soprano
Concerto para piano e orquestra no. 1 em Ré menor, Op. 15
1 – Maestoso
2 – Adagio
3 – Rondo: Allegro non troppo
London Philharmonic Orchestra
Edo de Waart, regência
Radu Lupu, piano
Para completar a homenagem, restaurei alguns links com o precioso som de Lupu, que estavam inativos…
… e lhes recomendo fortemente esta postagem do colega René Denon, com um Schumann para a eternidade:
Vassily
Belo texto e homenagem, Vassily. Por mais vivência e escuta, estamos sempre a aprender e descobrir grandes artistas. A morte de Lupu me leva a melhor conhecer sua obra e gravações. Obrigado e abraço!
Olá, Vassily!
Bom trabalho!
Abraços do
René
Muito obrigado por isso, Vassily!