A carreira de Saariaho pode ser resumida em duas fases: a primeira nos anos 1980-90, quando ela utilizava artefatos eletrônicos para amplificar os sons dos instrumentos e/ou para adicionar sons novos; a segunda, a partir dos anos 1990, quando a maior parte das obras é apenas para instrumentos acústicos, mas as preocupações estéticas continuam voltadas para timbres raros e inesperados, mesmo que com instrumentos tradicionais. Os harmônicos e sutilezas no toque do arco nas cordas são surpreendentes em obras como Près, para violoncelo e dispositivo eletrônico (1992) e Oi kuu, para violoncelo e clarinete baixo (1990). Esta última nasceu voltada para a lua, pois oi kuu em finlandês significa algo como “para uma lua”.
Este disco, com suas obras completas para violoncelo solo e em duos, pega justamente a transição entre as duas fases: a obra mais antiga é de 1988 e a mais nova, de 2000. Com a palavra, Kaija Saariaho:
Creio que o que me interessa no violoncelo é o seu ambitus [latim: extensão entre a nota mais grave e a mais aguda]. Se imaginarmos por exemplo várias camadas de textura, o registro grave do violoncelo combina com os harmônicos, oferece uma rica palheta de timbres. O fato de que o instrumento seja fisicamente maior que o violino permite uma realização mais precisa das mudanças de cores e de harmônicos. Com o violino, trata-se sobretudo de uma mecânica de precisão mais, para o violoncelo, a escrita é de certa maneira mais realista, mesmo se, naturalmente, ela é igualmente difícil de executar.
O violoncelo é o meu instrumento preferido, ao menos é o que eu creio porque volto a ele regularmente. O fato de haver violoncelistas notáveis que sempre estiveram dispostos a cooperar comigo certamente contribuiu para isso.
Por que apreciamos ou gostamos de alguma coisa, no fundo é difícil responder a esta questão. Quando escrevi Petals, minha primeira peça para violoncelo, eu já estava concentrada sobre a textura. Examinava as diferentes texturas sonoras e as possibilidades de as metamorfosear.
Na década de 1980 eu me interessava pela questão de saber como podemos, ao amplificar ou modificar eletronicamente sons delicados e frágeis, criar uma música irreal e onírica. Como as pequenas coisas às quais dificilmente prestaríamos qualquer atenção podem subitamente tornar-se imensas e ocupar o espaço sonoro.
Então um dia, passe a me interessar pela fragilidade e pela vulnerabilidade em si mesmas. Na minha última peça para violoncelo, Sept Papillons, não quis amplificar o som [com efeitos eletrônicos] mas espero que o ouvinte preste extrema atenção para escutar todas as pequenas nuances, mesmo as mais frágeis.
Ao escrever essas obras, sempre tentei imaginar o som do violoncelo e seus diferentes tipos de toque de forma bastante concreta e física, ou seja, como os dedos se colocam sobre as cordas, como isso soa. São as duas coisas que me importam mais, no fim das contas: a imaginação sonora em si e essa abordagem quase física do instrumento.
Kaija Saariaho, Paris, 2005 (no encarte do disco)
Kaija Saariaho (1952-2023):
1. Petals – pour Violoncelle et dispositif électronique (1988)
2. Oi Kuu – pour Clarinette Basse et Violoncelle (1990)
3. Spins And Spells – pour Violoncelle seul (1997)
4. Mirrors – pour Flûte et Violoncelle (1997)
5-11. Sept Papillons – pour Violoncelle seul (2000)
12-14. Près – pour Violoncelle et dispositif électronique (1992)
Alexis Descharmes – Violoncelo
Nicolas Baldeyrou – Clarinete Baixo (faixa 2)
Jérémie Fèvre – Flauta (faixa 4)
Recorded at Ircam, Paris, 12-14/09/2004