Nossa homenagem ao saudoso Ranulfus continuará, também, através da republicação de suas preciosas contribuições ao nosso blog – como esta, que veio à luz em 11/5/2010.
Nota: esta postagem, assim como todas as demais com obras de Heitor Villa-Lobos, não contém links para arquivos de áudio com obras do gênio brasileiro, pelos motivos expostos AQUI
À medida em que avança a aventura de redescoberta de Guiomar Novaes, iniciada aqui há duas semanas, começo a ter a impressão de que seu legado de gravações é um tanto desigual: algumas são realizações gigantescas, cuja importância se percebe com absoluta certeza de modo intuitivo, mas alcança tão longe que temos dificuldade de explicar em palavras (do que ouvi até agora, é o caso das suas realizações de Chopin, especialmente os Noturnos); já outras são, digamos, meramente grandes…
Temos aqui as 7 peças curtas retiradas do CD Beethoven-Klemperer postado há alguns dias, mais o disco só de peças brasileiras (com certo desconto para Gottschalk) lançado em 1974 pela Fermata – creio que o seu último.
As primeiras parecem ter se firmado em sua carreira como standards no tempo dos discos de 78 rotações, que só comportavam peças curtas. Hoje qualquer pianista “sério” franziria o nariz pra esse repertório: “transcrições de concerto” de um prelúdio para órgão de Bach e de trechos orquestrais de Gluck e Beethoven. Ao que parece, no começo do século XX o fato de serem coisas agradáveis de ouvir ainda era tido como justificativa bastante para tocá-las.
Mas o que mais me surpreendeu foi à abordagem às 3 peças originais de Brahms: nada da solenidade que se costuma associar a esse nome; sem-cerimônia pura! Como também nos movimentos rápidos do Concerto de Beethoven com Klemperer, tenho a impressão de ver uma “moleca” divertindo-se a valer, e me pergunto se não é verdade o que encontrei em uma ou duas fontes: que a menina Guiomar teria sido vizinha de Monteiro Lobato, e este teria criado a personagem Narizinho inspirado nela!
Também me chamou atenção que Guiomar declarasse que sua mãe, que só tocava em casa, teria sido melhor pianista que ela mesma, e que tenha escolhido por marido um engenheiro que também tocava piano e compunha pequenas peças: Otávio Pinto. Casaram-se em 1922, ano de sua participação na Semana de Arte Moderna, ela com 27, ele com 32. Guiomar nunca deixou de tocar peças do marido em recitais mundo afora – nada de excepcional, mas também não inferiores a tantos standards do repertório europeu – e ainda no disco lançado aos 79 anos encontramos as Cenas Infantis do marido, além de uma peça do cunhado Arnaldo (Pregão).
Dados sem importância? Não me parece. Parecem apontar para que a própria Guiomar visse as raízes últimas da sua arte não no mundo acadêmico, “conservatorial”, e sim numa tradição brasileira hoje extinta: a (como dizem os alemães) Hausmusik praticada nas casas senhoriais e pequeno-senhoriais, paralela à arte mais de rua dos chorões, mas não sem interações com esta. Aliás, podem me chamar de maluco, mas juro que tive a impressão de ouvir evocações de festa do interior brasileiro – até de sanfona! – tanto no Capricho de Saint-Saëns sobre “árias de balé” de Gluck quanto no Capricho de Brahms.
Será, então, que podemos entender Guiomar como uma espécie de apoteose (= elevação ao nível divino) da tradição das “sinhazinhas pianeiras”? Terá ela querido conscientemente levar ao mundo clássico um jeito brasileiro de abordar a música?
E terá sido ao mesmo tempo um “canto de cisne” dessa tradição, ou terá tido algum tipo de herdeiro? Não sei, mas se alguém me vem à cabeça na esteira dessa hipótese, certamente não é o fino Nelson Freire e sim o controverso João Carlos Martins!
Para terminar: a vida inteira Guiomar insistiu em terminar programas com a ‘famigerada’ Fantasia Triunfal de Gottschalk sobre o Hino Brasileiro, que, honestamente, não chega a ser grande música. Acontece que, segundo uma das biografias, logo ao chegar a Paris, com 15 anos, Guiomar teria sido chamada pela exilada Princesa Isabel – ela mesma pianista – e teria recebido dela o pedido de que mantivesse essa peça sempre no seu repertório. E, curioso, ainda ontem o Avicenna postava aqui duas peças de Gottschalk como músico da corte de D. Pedro II (veja AQUI).
Será que isso traz água ao moinho da hipótese de Guiomar como apoteose e canto-de-cisne de um determinado Brasil? Bom, vamos ouvir música, e depois vocês contam as suas impressões!
Pasta 1: faixas adicionais do CD “Guiomar-Beethoven-Klemperer”
04 J. S. Bach (arr. Silotti) – Prelúdio para Órgão em Sol m, BWV 535
05 C. W. Gluck (arr. Sgambati e Friedman) – Danças dos Espíritos Bem-Aventurados, de “Orfeo”
06 C. Saint-Saëns: Caprice sur des airs de ballet de “Alceste”, de Gluck
07 J. Brahms – Intermezzo op.117 nº 2
08 J. Brahms – Capriccio op.76 nº 2
09 J. Brahms – Valsa em La bemol, op.39 nº 15
10 L. van Beethoven (arr. Anton Rubinstein) – Marcha Turca das “Ruínas de Atenas”
. . . . BAIXE AQUI – download here
Pasta 2: disco “Guiomar Novaes”, Fermata, 1974
a1 Francisco Mignone – Velho Tema (dos Estudos Transcedentais)
a2 Otávio Pinto – Cenas Infantis
a3 Marlos Nobre – Samba Matuto (do Ciclo Nordestino)
a4 Arnaldo Ribeiro Pinto – Pregão (de Imagens Perdidas)
a5 J. Souza Lima – Improvisação
a6 M. Camargo Guarnieri – Ponteio
b1 H. Villa-Lobos – Da Prole do Bebê: Branquinha, Moreninha
b2 H. Villa-Lobos – O Ginete do Pierrozinho (do Carnaval das Criancas)
b3 H. Villa-Lobos – Do Guia Prático: Manda Tiro, Tiro, Lá; Pirulito; Rosa Amarela; Garibaldi foi a Missa
b4 L. M. Gottschalk – Grande Fantasie Triomphale sur l’Hymne National Brésilien Op. 69
. . . . BAIXE AQUI – download here
Ranulfus
[restaurado com reverência e saudade por seu amigo Vassily em 4/3/2023]
PQP,
Aproveitando que Ranulfus postou Gluck, será que você poderia revalidar o link de Orfeu e Eurídice que expirou? Agradecido,
Gregor Samsa
A “Fantasia” de Gottschalk é uma tremenda porcaria, mas acho que a Guiomar foi a única pessoa capaz de tornar essa peça um pouco mais musical. Bola preta pro Gottschalk, kudos pra Guiomar.
Guiomar Novaes … o que mais dizer ….
Ano passado estava em Londres e fiu a uma loja de CD´s perto do Picadilly Circus (esqueci o nome … acho que era HM ou algo parecido)a parte de clássicos fica no sub-solo e é tamanho de uma quarda de futebol de salão, ou seja ENORME! tão grande que agente se perde …um oásis para os amantes da música clássica. Solicitei ao vendedor que verificasse se tinha algum CD de Guimar Novaes. Para minha surpresa ele me disse em tom tipicamente formal-inglês “Ninguém toca Chopin como esta senhora!” Expliquei que era brasileiro e então ele me perguntou ” Por que o senhor não compra os CD´s dela no Brasil? Ela não é famosa no Brasil”? Complicado responder viu … temos que sair do Brasil para achar coisas nossas …. ou então achar em Blogs ….
Viva Guiomar Novaes e tantos outros GENIOS “esquecidos”!
Um forte abraço,
Se todos dizem, é porque deve ser bão, mesmo!
Experimente você mesmo, Doni, e depois diga! (Mas sugiro mais uma vez que ela seja superior no Chopin que nas obras deste post)
Hei, se me permite… você não será o Doni que tinha uma escola de inglês em Sampa? 😀
Olá! Seria possível a revalidação desse post?
Muito obrigado pela dedicação de todos vocês. Espero poder contribuir também em algum momento.
Um abraço!
é, seria lindo se repostassem.
Obrigado pelo post! Mas uma curiosidade, não conhecia Arnaldo Ribeiro Pinto – procurando no Google, não achei nada, nem um breve biografia (no YouTube tem algumas peças dele, essa com Guiomar, outra com Eudóxia de Barros e mais algumas) mas em nenhuma dá dados sobre o compositor (que época viveu, pelo menos…). Alguém daqui sabe ???
Olá, Eduardo!
Arnaldo compunha mui esporadicamente, e talvez estivesse totalmente esquecido se não fosse essa gravação de sua cunhada Guiomar (aliás, Guiomar Novaes Pinto), esposa de seu irmão, Octavio. A julgar pela qualidade dessa miniatura, isso é uma pena. Não sei lhe informar mais sobre ele. Talvez o melhor caminho seja, como sempre é quando o tema é “piano brasileiro”, procurar no site do IPB (www.institutopianobrasileiro.com.br) ou contatar seu incansável, sempre solícito e mui gentil diretor, Alexandre Dias.
Obrigado, Vassily!!
Concordo com o Vassily: qualquer dúvida, pergunte nas redes do IPB: insta, face…
Aliás, que texto primoroso do nosso amigo Ranulfus!
Eduardo,
Sobre o Arnaldo, espie só o que encontrei (para variar, graças ao Alexandre e ao IPB): https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid0RERn3pkgbXLz4cxjMTs18Q1hHpHXvwzYEvqVXUQV62ceArYpnEySdoH7cXnPbucQl&id=100001272684975&mibextid=Nif5oz
Pleyel,
Que texto, realmente! Tenho relido todas as publicações de nosso amigo, com a intenção de restaurar seus links, e nunca deixo de me impressionar com elas. Que saudades do Ranulfus!