Andrea Gabrieli (1533-1585), Giovani Gabrieli (1553-1612), Orlande de Lassus (1532-1594), Claudio Merulo (1533-1604), Cesare Bendinelli (1567-1617) – Domingo de Páscoa em Veneza, circa 1600 (Gabrieli Consort)

Nada no mundo se assemelha à Basílica de San Marco. Na França há umas dez catedrais no mesmo estilo gótico de Notre-Dame de Paris, com torres altas e vitrais exuberantes, algumas delas maiores e mais altas como em Chartres, Amiens, Beauvais, Strasbourg. Mais perto de nós, as igrejas de Ouro Preto, Mariana, Congonhas formam um estilo barroco mineiro, não tão diferente de outras em Salvador, Rio de Janeiro, etc.

Mas a Basílica de San Marco, em Veneza, não tem nada parecido: para começo de conversa, até 1807 San Marco não era a catedral, era a igreja dos Doges de Veneza, mas muito maior, mais rica e influente do que a catedral onde quem mandava era o bispo. Com essa predominância dos Doges sobre a hierarquia eclesiástica, formou-se uma igreja única no mundo, com uma riqueza de mosaicos dourados, abóbodas de estilo bizantino/islâmico e estátuas de cavalos do século IV a.C. roubados de Constantinopla em uma cruzada. Há também o túmulo do evangelista São Marcos, roubado de Alexandria no século 9, com base no “manda quem pode”, e naquela época Veneza podia muito.

Segundo este mosaico de San Marco, o furto do corpo do santo foi vontade divina (risos)

Giovani Gabrieli compôs a maior parte de sua música tendo em mente o ambiente da Basílica, com uma organização espacial bem específica: o público na nave central da igreja e os músicos nas laterais, divididos em dois coros (due cori), sendo que coro aqui não necessariamente é um grupo de cantores, pode ser também de instrumentistas – a ideia de orquestra começa a surgir mais ou menos na geração seguinte, com Monteverdi. Ou seja, se hoje imaginamos sempre uma orquestra com os instrumentistas juntos de frente para o público, não quer dizer que isso sempre tenha sido uma obviedade: por volta de 1600, em Veneza (e nas várias cidades influenciadas por Veneza, que era um polo comercial e de impressão de partituras), a ideia de música a due cori, com dois grupos de músicos/cantores e o público no meio, era muito comum e atingiu seu auge na música de Gabrieli. Na maioria de suas obras, um coro ou grupo instrumental é ouvido de um lado, seguido por uma resposta dos músicos do outro lado. Às vezes havia um terceiro grupo em outro lugar da igreja. Willaert já havia usado esse estilo policoral, e a acústica da Basílica de San Marco produz efeitos impressionantes quando os músicos estao corretamente posicionados. Essa divisão dos grupos de instrumentistas também influenciou o concerto grosso e outras formas concertantes alguns anos depois.

Gabrieli compôs pouca música secular, quase toda quando bem jovem; na sua maturidade, se concentrou em música para ser tocada na igreja, o que não significa apenas música vocal. Dois grandes compilados de sua música, misturando motetos, música instrumental e coisas do tipo, foram publicados com o nome Sacrae symphoniae, nome também usado pelo alemão Heinrich Schütz em 1629. Outra inovação de Gabrieli: ele foi o primeiro – embora talvez tenha havido precursores que se perderam – a anotar a dinâmica em suas partituras, como na famosa Sonata pian’ e forte.

O 89º Doge de Veneza, que governou de 1595 a 1605, recebendo o embaixador da Pérsia. Aqui no PQP também apoiamos a diplomacia entre culturas diferentes.

O tipo de conjunto de metais usado por Gabrieli produz um som grandioso, poderoso, que certamente convinha aos Doges de Veneza. Não custa lembrar que o Doge (mal traduzindo, Duque, mas o cargo não era hereditário), era o manda-chuva na Basílica de San Marco, com os padres leais a ele mais do que ao Papa. Essa música de metais pode ser ouvida também em metade da ópera Orfeu, de Monteverdi (1567-1643), com a outra metade, mais pastoral, dominada pela orquestra de cordas.

A música de Gabrieli, contudo, não reinava sozinha em San Marco. Versões com dois coros da Missa eram raras. Um ano após a entrada de Monteverdi em 1613 como maestro di cappella, foram feitas novas cópias de missas de Lassus, Morales, Palestrina e Soriano. Podemos assumir, então, que a Missa Ordinária era frequentemente cantada no estilo polifônico mais comum do Renascimento, apenas para vozes. Os textos de G. Gabrieli não costumam seguir a liturgia comum (do Kyrie ao Agnus Dei), mas sem dúvida suas obras ornamentavam os serviços nos momentos em que música extra-litúrgica era requerida. A entrada e a saída cerimonial do Doge, o Ofertório, a Elevação, a Comunhão eram momentos nos quais havia música vocal ou instrumental.

A música instrumental, como forma artística elaborada e difundida por meio de partituras, era uma coisa muito recente naquela época. Provavelmente o veneziano G. Gabrieli e o romano Frescobaldi (1583-1643) foram os primeiros nomes a se tornarem famosos internacionalmente com música instrumental, graças também à difusão da imprensa, não se esqueçam que antes era tudo manuscrito. A. Gabrieli (tio do Giovani), por exemplo, era organista também na Basílica de San Marco e compôs algumas obras para órgão, algumas são ouvidas neste disco, mas são peças curtas, com função de tapa-buraco antes ou depois da missa, e provavelmente tudo escrito à mão, nada indica que foram impressas durante a vida de Andrea, e não se espalharam por toda a Europa como se espalhariam, anos depois, as partituras de seu sobrinho.

A música vocal, por outro lado, tinha uma antiquíssima tradição nos mosteiros e catedrais medievais e renascentistas. O flamenco Orlande de Lassus, que aparece neste álbum com sua Missa Congratulamini Mihi, estava seguindo mais ou menos os mesmos caminhos de seu contemporâneo Palestrina (c. 1525-1594) a partir da tradição da polifonia dos franceses e flamencos como Josquin des Prez (c. 1450-1521). Já a música instrumental de G. Gabrieli se aventurava por mares nunca dantes navegados.

Andrea Gabrieli (1533-1585), Giovani Gabrieli (1553-1612), Orlande de Lassus (1532-1594), Claudio Merulo (1533-1604), Cesare Bendinelli (1567-1617) – Domingo de Páscoa em Veneza, circa 1600

01 Merulo: Toccata Prima del Quinto Tono
02 A. Gabrieli: Maria Stabat ad Momentum
03 Quem Quaeritis
04 C. Bendinelli: Tocada … Con Vitoria
05 Surrexit Christus
06 G. Gabrieli: Surrexit Christus a11
07 Introitus – Resurrexi et Adhuc Tecum Sum, Alleluia
08 A. Gabrieli: Intonatione del Quinto Tono
09 O. de Lassus: Missa Congratulamini Mihi – Kyrie a6
10 O. de Lassus: Missa Congratulamini Mihi – Gloria a6
11 Oratio – Dominus Vobiscum…
12 Epistola – Lectio Epistolae Beati Pauli Apostoli ad Cor.Fratres…
13 G. Gabrieli: Canzon VIII a8
14 Sequenta – Victimae Paschali Laudes
15 Evangelium – Dominus Vobiscum…
16 G. Gabrieli: Hic Est Filius Dei a18
17 Prefatio – Per Omnia Saecula Saeculorum…
18 O. de Lassus: Missa Congratulamini Mihi – Sanctus a6
19 G. Gabrieli: Sonata Octavi Toni 12 – Elevatio
20 Pater Noster – Per Omnia Saecula Saeculorum…
21 O. de Lassus: Missa Congratulamini Mihi – Agnus Dei a6
22 G. Gabrieli: Canzon XVII a12
23 Postcommunio – Dominus Vobiscum…
24 Ite Missa Est
25 Benedictio
26 Illustrissimus et Reverendissimus in Christo Pater….
27 G. Gabrieli: Regina Coeli a12
28 Oratio – Gaude et Laetare Virgo Maria, Alleluia…
29 Merulo: Congedo – Toccata Settima del Ottavo Tono
30 G. Gabrieli: Sonata con Voce – Dulcis Jesu a20

Gabrieli Consort & Players, com instrumentos de época
Paul McCreesh, maestro
Gravado na Catedral de Ely, Cambridgeshire, UK, 1996

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE (FLAC)

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE (MP3 320kbps)

Veneza por Andrejs_Bovtovičs (2016)

Desejo uma Feliz Páscoa para nós todos e todas, com um pouquinho de esperança de que os tempos de confinamento tenham ficado para trás e de que eles tenham sido minimamente agradáveis com a ajuda das artes, como expressou um caríssimo leitor-ouvinte no comentário abaixo:

Em confinamento, o que abre janelas e arrebenta portais é a música.
E vós, do PQPBach, sois os porteiros.
Estou convosco a cada dia, obrigado por fazerdes-me mais livre, mesmo sem sair de casa!
Rameau

1 comment / Add your comment below

  1. Comovido pela citação cujos termos reitero com alegria!
    Obrigado, Pleyel!
    Vocês são meus porteiros musicais.
    Nunca fui mais feliz com a música erudita como a partir do PQP Bach!
    🙂

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