J. S. Bach (1685-1750) – Oratório de Natal, BWV 248

Aproveitando que hoje é dia de Natal, publicamos a versão de Herreweghe do Oratório escrito por meu pai. Ah, vocês sabem tanto quanto eu: são seis cantatas bem legais, as primeiras mais legais que as últimas, apesar de que todas são muito boas. Aqui não há o elemento kitsch e mentiroso da festa comercial-religiosa, aqui é Natal mesmo, com a grandiosidade da história inventada e retocada pelos homens.

Elas impressionam pela coerência, riqueza musical e unidade. As seis Cantatas foram apresentadas pela primeira vez em 1734, em Leipzig, uma a uma em cada feriado que antecedia o Natal. A seguir, apresento um artigo de Ricardo de Mattos, retirado daqui, sobre o Oratório. Feliz Páscoa!

Johann Sebastian Bach – 1.685/1.750 – encerrou a composição do seu Oratório de Natal no mês de outubro de 1.734, ocorrendo sua primeira execução nas comemorações natalinas do mesmo ano. A evidente finalidade d’esta obra era celebrar o nascimento de Jesus Cristo, e esta homenagem ao facto máximo do cristianismo verifica-se no decorrer e alternância de 31 recitativos, catorze corais, dez árias, oito coros, dois ariosos, um quarteto, um terceto, um dueto e uma sinfonia.

Bach foi um homem de entranhada e madura religiosidade. Uma crença fervorosa e sincera transparece em suas obras sacras, e diante d’isso podemos calcular seu senso de responsabilidade ao compor um oratório pelo advento d’Aquele que tanto amou. O compositor era luterano, mas esta peça é tão bonita e possui nobreza tal que já comovia, e ainda comove, pessoas de credo diverso. Ao romper esta barreira, já mostra uma primeira face de sua excelência.

O texto-base do Oratório de Natal é formado por trechos dos Evangelhos segundo São Lucas e São Mateus, complementado com versos de Christian Friedrich Henrici, dito “Picander”. Este poeta é autor do texto de várias cantatas e da Paixão Segundo São Mateus. Muitas foram, contudo, as intervenções de Bach. Não há como acompanhar o Oratório sem ler o texto, e quem, como eu, não fala alemão, deve procurar uma versão acompanhada da tradução. Não é difícil ouvir a música em alemão, ler o trecho e sua tradução ao mesmo tempo.

Oratório e cantata, nos séculos XVII e XVIII, são géneros musicais a apresentar certa confusão, e a peça de Natal ora comentada pode trazer ainda mais dúvidas. O oratório irmana-se à ópera por descender dos mistérios medievais, dela diferindo apenas pela temática, pois inicialmente era acompanhado até de acção, cenário e costume. A cantata nada mais é além de uma peça profana para ser cantada e tem sua origem nos madrigais, ainda da Idade Média. Tínhamos então peças para serem cantadas – cantatas – e peças para serem tocadas – toccatas. Até aqui tudo simples e claro. Introduzindo na cantata o coro, levando-a para a igreja e no oratório substituindo-se a encenação pela narração – ficando esta a cargo do narrador ou historicus – confundiram-se os géneros. Talvez a única diferenciação restante seja a extensão, sendo maior a do oratório. Além disso, uma cantata pode ser religiosa ou profana – a Cantata do Café, do próprio Bach – mas um oratório será sempre religioso ou, no mínimo, de orientação religiosa, como As Estações, de Haydn. Este Oratório de Natal mostra bem a referida mistura, porém é um caso proposital. Na igreja de São Tomás, em Leipzig, para a qual foi composto, as celebrações natalinas estendiam-se por seis dias: 25, 26 e 27 de dezembro, primeiro e seis de janeiro e o primeiro domingo do ano. Assim, ou para não fraccionar uma peça única, ou para não repetir a mesma durante esses seis dias, Bach dividiu-o em seis partes, ou seis cantatas, reunidas de forma mais ou menos uniforme. Recebeu algumas críticas não só pela indefinição do género – nada tão indefinido assim, convenha-se – como pelo aproveitamento da música e texto de outras cantatas. O novo aproveitamento não era hábito exclusivo de Bach, mas a ocupação de alguns compositores levava a tal proceder. Vivaldi utilizou na ária Dell’aura al sussurrar o conhecido tema do allegro da Primavera.

O carácter geral do Oratório é glorificar, exaltar o espírito pelo nascimento do Messias, sendo assim oposto ao das Paixões, nas quais predominam a consternação e o drama. Com este objectivo de alegrar as almas, a primeira peça é um retumbante coro, ao qual os trompetes e tímpanos conferem um carácter de intrata:

Regozija-vos, cantai de alegria! Louvai estes dias!
Abandonai vossos temores, cessai vossos prantos,
Entoai hinos de regozijo e alegria!
Uni vossas vozes para cantar a glória do Altíssimo,
Adoremos o nome do Todo Poderoso!

Após o coro, inicia-se a narrativa, com a viagem de José e Maria de Nazareth à Belém. O parto ocorre e a contralto, primeiro em recitativo, depois em ária, admoesta Sião a bem receber o Salvador dos judeus, já padecentes do jugo romano. Cristo nasceu sob Augusto e foi crucificado na era de Tibério. Dando-se o parto no presépio, um coro de sopranos acompanhado do baixo – não ainda no papel de Herodes – acentua a humildade do facto (“Pobre veio à terra/Quem saberá honrar como merece/ O Amor que nos oferece nosso Salvador?”). O mesmo baixo, na ária seguinte, lembra a pouca importância do meio escolhido para nascer por aquele que reina sobre o mundo. Além d’isso, percebemos em vários momentos um capricho de ternura bem próprio de Bach, que curiosamente lembra-nos os escritos de Santa Terezinha do Menino Jesus e São Pedro Julião Eymard. Repare-se no coral Ach mein herzliebes Jesulein – Ah, meu bem amado Jesusinho! Aqui Bach demonstra o amor mencionado, referindo-se ao Menino como se pudesse estar pessoalmente com ele.

A segunda parte inicia-se com uma sinfonia pastoral substituindo um previsível coro, e melhor escolha Bach não poderia ter feito. Pastoral é uma obra vocal ou instrumental que pela melodia e emprego de certos instrumentos (flauta, oboé) pretende reproduzir um ideal de vida simples e pacífica, tal como imaginou-se sempre, nas Artes, ser a dos pastores. Pesquisando este ideal, chegamos em Virgílio. Ulisses desejou, em certa altura da Odisseia, ter nascido um mero pastor. Portanto, a escolha da sinfonia pastoral para iniciar a segunda parte, ou segunda cantata, é perfeita para retractar o ambiente rústico do nascimento de Jesus. Pode-se afirmar que toda esta cantata é pastoral, pois o tema da sinfonia repete-se no último coral, só retornando no coro de abertura da quarta parte.

Segundo a mensagem da segunda parte, os simples serão os primeiros a encontrar Jesus Cristo, e nos Evangelhos encontramos o desenvolvimento doutrinário desta assertiva. Basta ler o Sermão da Montanha. A última ária de contralto é uma canção para embalar o Recém Nascido. Esta parte foi apresentada pela primeira vez há exactos 268 anos.

Se na segunda cantata os pastores são avisados por um anjo – soprano – do nascimento de Jesus, na terceira eles efectivamente visitam-no. O mesmo coro do início é o do final (da capo), responsável pela volta do clima de júbilo. Deve-se reparar no duo de soprano e baixo Herr dein Mitled, dein Erbarmen – Senhor, Tua piedade, Tua Misericórdia.

A quarta parte, segundo o plano de comemorações da igreja de São Tomás, foi executada em primeiro de janeiro de 1.735. Por isso a primeira menção que o Evangelista faz em seu recitativo é à circuncisão e baptismo de Jesus, factos celebrados no dia. Após um arioso emoldurado por dois recitativos, segue-se a curiosa ária Flösst, mein Heiland, flösst dein Namen – Poderia, meu Salvador, poderia seu Nome. Nela temos duas sopranos, a segunda servindo de eco para a primeira. Eco mesmo: a primeira termina um verso e a segunda repete a última palavra apenas, de preferencia com o inte’rprete fora de cena. E um oboé ecoa esta segunda soprano. Este efeito do eco pode ser percebido também no concerto Audi , coelum do orato’rio Vésperas da Virgem Maria de Cláudio Monteverdi (1.567/1.643) e mais recentemente, na ária de Violetta Follie! Delírio vano é questo! na famosa ópera La Traviata de Giuseppe Verdi (1.831/1.901) Bach dedicou toda esta parte à relação entre o homem e Jesus, bem como a Sua palavra.

Um mui alegre coro complementado por vozes infantis inaugura a quinta cantata, dedicada à chegada dos Magos e à reacção de Herodes ao receber a notícia. Muita atenção para a ária Erleucht’ auch meine finstre Sinnen – Ilumina também meus escuros sentidos, na qual o baixo é acompanhado pelo órgão e pelo oboé.

Um coro épico abre a sexta e última cantata, apresentada na Epifania de 1.735. Por este motivo Bach destacou a visita dos Reis Magos ao Menino, embora também se discorra sobre a ordem de Herodes e à fuga de José e Maria. Esta a cantata mais dramática de todo o conjunto, transpirando tensão e aflição. O alívio pela salvação do Menino recompõe, no quarteto e coral finais, a sobreexcitação e alegria dominantes em todo o Oratório. Nada adianta eu tagarelar sobre esta excelente obra. Ela deve ser apreciada e sua contribuição para um Natal melhor será inafastável

Christmas Oratorio, BWV 248

1. Part I: Jauchzet, Frohlocket!, Chorus
2. Part I: Es Begab Sich Aber Zu Der Zeit, Recitative
3. Part I: Nun Wird Mein Liebster BrÄUtigam, Recitative
4. Part I: Bereite Sich, Zion, Alto Aria
5. Part I: Wie Soll Ich Dich Empfangen, Chorale
6. Part I: Und Sie Gebar Ihren Ersten Sohn, Recitative
7. Part I: Er Ist Auf Erden Kommen Arm, Chorale For Soprano And Bass
8. Part I: Wer Kann Die Liebe Recht ErhÖH’n, Bass Recitative
9. Part I: Grosser Herr Und Starker KÖNig, Bass Aria
10. Part I: Ach, Mein Herzliebes Jesulein!, Chorale
11. Part Ii: Sinfonia
12. Part Ii: Und Es Waren Hirten, Tenor Recitative
13. Part Ii: Brich An, O SchÖNes Morgenlicht, Chorale
14. Part Ii: Und Der Engel Sprach Zu Ihnen, Recitative For Tenor & Soprano
15. Part Ii: Was Gott Dem Abraham Verheissen, Bass Recitative
16. Part Ii: Frohe Hirten, Eilt, Tenor Aria
17. Part Ii: Und Das Habt Zum Zeichen, Tenor Recitative
18. Part Ii: Schaut Hin!, Chorale
19. Part Ii: So Geht Denn Hin!, Bass Recitative
20. Part Ii: Schlafe, Mein Liebster, Alto Aria
21. Part Ii: Und Alsobald War Da Bei Dem Engel, Tenor Recitative
22. Part Ii: Ehre Sei Gott In Der HÖHe, Chorale
23. Part Ii: So Recht, Ihr Engel, Bass Recitative
24. Part Ii: Wir Singen Dir In Deinem Heer, Chorale
25. Part Iii: Herscher Des Himmels, Chorus
26. Part Iii: Und Da Die Engel Von Ihnen Gen Himmel FÜHren, Tenor Recitative
27. Part Iii: Lasset Uns Nun Gehen Gen Bethlehem, Chorus
28. Part Iii: Er Hat Sein Volk GetrÖSt, Bass Recitative
29. Part Iii: Dies Hat Er Alles Uns Getan, Chorale
30. Part Iii: Herr, Dein Mitleid, Dein Erbarmen, Duet For Soprano & Bass
31. Part Iii: Und Sie Kamen Eilend, Tenor Recitative
32. Part Iii: Schliesse, Mein Herze, Dies Selige Wunder, Alto Aria
33. Part Iii: Ja, Ja! Mein Herz Soll Es Bewahren, Alto Recitative
34. Part Iii: Ich Will Dich Mit Fleiss Bewahren, Chorale
35. Part Iii: Und Die Hirten Kehrten Wieder Um, Tenor Recitative
36. Part Iii: Seid Froh, Dieweil, Dass Euer Heil, Chorale
37. Part Iv: Fallt Mit Danken, Fallt Mit Loben, Chorus
38. Part Iv: Und Da Acht Tage Um Waren, Tenor Recitative
39. Part Iv: Immanuel, O SÜSses Wort, Recitative For Soprano & Bass
40. Part Iv: Jesu Du, Mein Liebstes Leben/Komm!, Ich Will Dich Mit Lust Umfassen, Ar
41. Part Iv: FlÖSst, Mein Heiland, Aria For 2 Sopranos
42. Part Iv: Wohlan! Dein Name Soll Allein, Recitative & Arioso For Soprano & Bass
43. Part Iv: Ich Will Nur Dir Zu Ehren Leben, Tenor Aria
44. Part Iv: Jesus Richte Mein Beginnen, Chorale
45. Part V: Ehre Sei Dir, Gott, Gesungen, Chorus
46. Part V: Da Jesus Geboren War Zu Bethlehem, Recitative
47. Part V: Wo Ist Der Neugeborne KÖNig Der Juden?, Chorus & Recitative
48. Part V: Dein Glanz All’finsternis Verzehrt, Chorale
49. Part V: Erleucht’ Auch Meine Finstre Sinnen, Bass Aria
50. Part V: Da Das Der KÖNig Herodes HÖRte, Tenor Recitative
51. Part V: Warum Wollt Ihr Erschrecken, Alto Recitative
52. Part V: Und Liess Versammeln Alle Hohenpriester, Tenor Recitative
53. Part V: Ach, Wenn Wird Die Zeit Erscheinen?, Trio For Soprano, Alto, & Tenor
54. Part V: Mein Liebster Herrschet Schon, Alto Recitative
55. Part V: Zwar Ist Solche Herzensstube, Chorale
56. Part Vi: Herr, Wenn Die Stolzen Feinde Schnauben, Chorus
57. Part Vi: Da Berief Herodes Die Weisen Heimlich, Tenor Recitative
58. Part Vi: Du Falscher, Suche Nur Den Herrn Zu FÄLlen, Soprano Recitative
59. Part Vi: Nur Ein Wink, Soprano Aria
60. Part Vi: Als Sie Nun Den KÖNig, Tenor Recitative
61. Part Vi: Ich Steh’ An Deiner Krippen Hier, Chorale
62. Part Vi: Und Gott Befahl Ihnen Im Traum, Tenor Recitative
63. Part Vi: So Geht! Genug, Mein Schatz, Tenor Recitative
64. Part Vi: Nun MÖGt Ihr Stolzen Feinde Schrecken, Tenor Aria
65. Part Vi: Was Will Der HÖLle Schrecken Nun, Choral Recitative
66. Part Vi: Nun Seid Ihr Wohl Gerochen, Chorale

Barbara Schlick (Soprano)
Michael Chance (Countertenor)
Howard Crook (Tenor)
Peter Kooy (Bass)

Collegium Vocale Ghent
Collegium Vocale Ghent Orchestra
dir. Philippe Herreweghe

BAIXE AQUI A PARTE 1 – DOWNLOAD PART 1 HERE

BAIXE AQUI A PARTE 2 – DOWNLOAD PART 2 HERE

6 comments / Add your comment below

  1. PQP, feliz ano novo pra vc! Sempre que posso venho aqui e posso desta forma desfrutar do seu grande conhecimento e material. Gostaria de entrar em contato com vc, pra fazer uma colaboração, se for do seu interesse. Obrigado.

  2. Olá, a parte 2 não está mais disponível, podem disponibilizar o arquivo mais uma vez? por favor. Estou impressionado e jubiloso com o acervo que vocês compartilharam!!! Música Clássica e Jazz meus grandes prazeres.

    Saudações de Maceió

  3. Oi,
    O arcevo de vocês é fantástico, muito tenho aprendido com as suas postagens e comentários. Obrigada, muito obrigada, mesmo. Mas completando e referendando a missiva do Geraldo Henrique, não estão mais disponíveis a parte um e a parte dois. Será que dá para postar novamente? Abraço e saudações cariocas,
    Elisa

  4. Boa noite P.Q.P. Bach, reforçando a solicitação da Maria Elisa Nunes, as partes citadas não estão mais disponíveis, você poderia restaurar essas pérolas?
    Grato.

  5. Meu caso ta bem critico.
    Faz tres dias que eu so escuto essa gravacao.
    Essa obra é demais. Um conjunto de cantatas onde do comeco ao fim tudo é muito bem acabado. Tem uma gama enorme de timbres, e olha, as arias e os duetos. Dificil escolher um.
    É Bach ao maximo nIvel!

Deixe um comentário para Pedro Bala Cancelar resposta