Bach, Hindemith, C.Guarnieri, Fauré, Schubert e mais, na flauta & piano: dois recitais memoráveis

Duo Morozowicz 1 http://i30.tinypic.com/2vke3kg.jpgPublicado originalmente em 23.07.2010

Como vocês devem imaginar, escolhi vinis pelos quais tenho muito carinho para começar minha carreira de digitalizador amador – mas por estes dois o carinho é todo especial.

Tadeusz Morozowicz (pronunciado Morozóvitch) nasceu na Polônia em 1900, e em 1925 se instalou em Curitiba, onde dois anos depois fundaria o que se diz ter sido a segunda escola de balé do país.

Duo Morozowicz 2 http://i28.tinypic.com/6e3hv5.jpgNão sei se a escola foi mesmo a segunda, mas acho que Tadeusz realizou proeza maior: todos os três filhos foram leading figures da vida artística paranaense da segunda metade do século XX: Milena como coreógrafa, professora de dança, diretora de balé; Zbigniew Henrique como pianista, organista, compositor, professor formal e não formal com sua presença sempre questionadora e profunda; Norton, como flautista – aluno de ninguém menos que Aurèle Nicolet – e mais recentemente também como regente e diretor de festivais.

Henrique e Norton http://i27.tinypic.com/2w7274j.jpgAtuando em duo desde 1971, em 1975 Norton e Henrique resolveram transformar em disco um recital que haviam dado na Sala Cecília Meireles, no Rio. Gravadoras, como se sabe, sempre deram menos bola para qualidade que para a vendabilidade dos nomes; pouquíssimos músicos clássicos brasileiros eram gravados na época, sobretudo se não morassem no Rio. Sempre inventivo, Henrique lançou uma lista de venda antecipada – que tive o gosto de assinar -, e com isso levantou a verba para o primeiro destes discos. Com o segundo, três anos depois, não lembro os detalhes, mas também foi produção independente.

Quer dizer: a circulação destas gravações foi muito limitada até hoje – o que me parece um despropósito, dada a qualidade do material. Bom, pelo menos eu sinto assim. E é claro que, como frente a qualquer artista, pode-se discordar desta ou daquela opção – mas depois de ouvirem algumas vezes, duvido que vocês me digam que estou superestimando devido ao afeto por um professor marcante!

Ainda umas poucas observações: tenho certa preferência pela sonoridade do volume 2, onde Norton optou por menos vibrato e Henrique por menos staccato, mas isso não me impede de me deliciar com o volume 1, que começa com a singeleza das Pequenas Peças de Koechlin (que os franceses pronunciam Keklã, embora eu também já tenha ouvido Keshlã. Não conhecem? Bem, aluno de Fauré, professor de Poulenc e do português Lopes-Graça), passa pela consistência de Hindemith e pelo lirismo espantosamente ‘brasileiro’ da Fantasia de Fauré (para mim a faixa mais marcante), chegando a um final que, a despeito de minhas resistências a Bach no piano, me parece não menos que arrebatador.

Mas o ponto alto do conjunto me parecem ser as Variações de Schubert que ocupam todo um lado do volume 2 – e olhem que Schubert nem está entre meus compositores prediletos. Mas essa peça está, sim, entre as minhas prediletas, implantada que foi por ação desta dupla.

É preciso apontar ainda que em cada disco há uma seqüência de três pequenas peças de Henrique de Curitiba – ‘nome de compositor’ do pianista, adotado nos anos 50, ainda antes dos anos em Varsóvia, enquanto estudava com Koellreuter e Henry Jolles na Escola Livre de Música de São Paulo – junto com tantos nomes decisivos da nossa música, no geral bem mais velhos.

Renée Devrainne Frank foi a primeira professora de piano de Henrique. Nascida na França, emigrada para Curitiba com 9 anos, depois formada em Paris na escola de Alfred Cortot, Renée era casada com o flautista Jorge Frank e formava o Trio Paranaense com a cunhada cellista Charlotte Frank e a violinista Bianca Bianchi – tendo composto consideravelmente para as formações que esse grupo proporcionava. Pode-se dizer que sua peça gravada é puro Debussy fora de época, mas… sinceramente, dá para ignorar a beleza e a qualidade da escrita? Fico pensando em quantas donas Renée terão deixado obras de qualidade, Brasil e mundo afora, e permanecem desconhecidas – enquanto se lambem os sapatos de tantas nulidades promovidas pela indústria & mídia!

Enfim, achei que vocês gostariam de ter a seqüência dos dois discos fluindo juntos numa pasta só – espero não ter me enganado!

DUO MOROZOWICZ
Norton Morozowicz, flauta
Henrique Morozowicz, piano

VOLUME 1
Gravado ao vivo na Sala Cecília Meireles
Rio de Janeiro, 30.05.1975

Charles Koechlin (1867-1950): SEIS PEQUENAS PEÇAS
101 Beau soir (Noite bonita) 1:23
102 Danse (Dança) 0:51
103 Vieille chanson (Velha canção) 0:42
104 Danse printanière (Dança primaveril) 0:53
105 Andantino 1:23
106 Marche funèbre (Marcha Fúnebre) 2:30

Paul Hindemith (1895-1963): SONATA PARA FLAUTA E PIANO (1936)
107 Heiter bewegt (com movimento alegre) 4:51
108 Sehr langsam (muito lento) 4:30
109 Sehr lebhaft (muito vivo) 3:36
110 Marsch (marcha) 1:22

Gabriel Fauré (1845-1924):
111 FANTASIA op.79 5:45

Henrique de Curitiba (1934-2008):
112 TRÊS EPISÓDIOS 3:54

J.S. Bach (1685-1750): SONATA EM SOL MENOR, BWV 1020
113 Allegro 3:40
114 Adagio 2:42
115 Allegro 3:42

VOLUME 2
Gravado ao vivo no Teatro Guaíra
Curitiba, 22.08.1978

Pietro Locatelli (1693-1764): SONATA EM FA
201 Largo 2:31
202 Vivace 2:14
203 Cantabile 4:16
204 Allegro 1:57

Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993):
205 IMPROVISO n.º 3 para flauta solo (1949) 3:50

Henrique de Curitiba (1934-2008):
206 TRÊS PEÇAS CONSEQÜENTES para piano solo (1977) 6:19

Renée Devrainne Frank (1902-1979):
207 IMPROVISANDO (1970) 4:15

Franz Schubert (1797-1828):
208 Introdução e variações sobre ‘Ihr Blümlein alle’, op.160 18:34

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Ranulfus

Kodály e Bach por Aldo Parisot, uma lenda do cello

Kodaly e Bach por Aldo Parisot http://i27.tinypic.com/9a2x38.jpgPublicado originalmente em 09.07.2010 como “uma lenda viva do cello”. Parisot faleceu em 31.12.2018, com 100 anos de idade.

Como os filhos de Bach em relação ao pai, Zoltán Kodály corre o risco de ser tomado por um compositor menor devido à sombra do outro húngaro maior do século 20, o gigante Béla Bartók – mas ainda que não tivesse as outras obras de valor que tem, já seria um pecado considerá-lo “menor” devido a esta Sonata para Cello Solo.

Meu conhecimento do repertório do cello é limitado, mas ainda assim arrisco a aposta de que essa é a maior obra do século 20 para o instrumento. No mínimo porque acho difícil conceber outra maior, ou em que a ousadia de experimentação nas técnicas tanto de composição quanto de execução – e isso em 1915! – tenham tido um resultado musical tão convincente. Arrisco mais: arrisco que essa é uma das poucas obras do repertório cellístico que podem de fato figurar lado a lado com as 6 suítes de Bach (a quinta das quais também comparece neste disco).

Vi-ouvi essa peça ao vivo apenas uma vez. Foi nos anos 70. Eu era um adolescente começando a descobrir com avidez o repertório do meu próprio século, e fiquei embasbacado não só com o poder musical da obra como também com o seu grau de exigência física. Nunca esqueci do cellista levantando ao final, vitorioso porém inteiramente enxarcado de suor… e só muitos anos mais tarde fiquei sabendo que aquele cellista, só três anos mais novo que o Parisot aqui, também tinha entrado para o campo das lendas: János Starker.

(… nome que é uma boa deixa para uma pequena digressão sobre a pronúncia do húngaro: ‘á’ tem o som do nosso ‘a’ e é sempre longo. Sem acento o ‘a’ tem o som do nosso ‘ó’, porém breve – de modo que o nome do gigante é pronunciado bÊÊló bÓrtook (com a tônica nas maiúsculas; o dobramento das vogais indica apenas que são longas). E o nome do cellista é iÁÁ-nosh.

Acontece que os húngaros juram que todas as suas palavras, sem exceção, têm a primeira sílaba como tônica. Mas aí falei ‘kôdali’ para um húngaro, e ele me corrigiu: ‘kodÁÁi’. E eu falei “mas a tônica não é sempre na primeira sílaba?”, e ele “É sim, não está ouvindo? ‘kodÁÁi'”. Continuei ouvindo a tônica no A que ele me dizia ser apenas longo, não tônico, mas achei prudente não discutir com um descendente dos hunos… E de resto aprendi que, pelo menos nesse caso, o L na frente do Y desaparece, como se fosse em francês).

Bom, sobre as suítes de Bach não há necessidade de que eu escreva uma linha que seja, não é mesmo? Então vamos falar do cellista.

Vocês pensam que o Antonio Meneses, nascido no Recife em 1957, foi o primeiro membro da elite mundial do violoncelo a sair do Nordeste brasileiro? Pois o Aldo Parisot nasceu em 1918 em Natal, onde deu seu primeiro concerto com 12 anos.

Parisot com Villa-Lobos 1953 http://i30.tinypic.com/zlyg6g.jpgParisot e James Kim 2006 http://i27.tinypic.com/2w3ties.jpgSegundo a en.wikipedia, em 1941-42 era primeiro cellista da Sinfônica Brasileira, no Rio, quando um diplomata estadunidense lhe ofereceu bolsa para estudar nos EUA com seu ídolo Emanuel Feuermann – o qual porém cometeu a indelicadeza de morrer antes do início das aulas.

Ainda assim o pessoal insistiu (era época da famosa política de sedução dos EUA para que o Brasil entrasse na guerra), e em 1946 Parisot desembarcou em Yale para cursos em Música de Câmara e Teoria Musical – havendo imposto a condição de que ninguém pretendesse dar-lhe aulas de cello. Ah, detalhe: o professor do curso teórico se chamava Paul Hindemith.

Parisot nunca voltou a viver no Brasil. Solou com as principais orquestras dos EUA, estreeou peças dedicadas a ele por um belo punhado de compositores, passou a ensinar nas escolas Peabody, Mannes, Julliard, e em Yale desde 1958. Deu master classes regularmente no Canadá, Israel, Coréia, Taiwan. Dean Parisot, um de seus três filhos com a pintora Ellen James, é respeitado como diretor de cinema e tevê – e ele mesmo, Aldo, também pinta e faz exposições cujos proventos são direcionados a um fundo de bolsas para estudantes de cello.

Tudo isso podemos ler sobre esse cidadão brasileiro em inglês. A wikipedia em português lhe dedica 3 (três) linhas. (Fotos acima: Parisot com Villa-Lobos em 1953; Parisot com o jovem cellista premiado James Kim na Coréia, 2006?)

A presente gravação foi feita não antes de 1956, pois utiliza o ‘Stradivarius De Munck’ que Aldo adquiriu nesse ano, mas provavelmente antes de 58, pois o artigo da capa menciona seu posto de professor em Peabody, mas não em Yale (assumido em 58). Seu Bach é portanto anterior à restauração estilística iniciada nos anos 60. É possivelmente a realização mais introvertida e escura que conheço da Suíte em do menor – respeitável mas não propriamente sedutora. Aliás, parece que em geral, também no Kodály, Parisot parece mais interessado em viajar fundo na música que em mostrá-la com brilho sedutor, mas esse Kodály… não, não vou dizer nada, deixo com vocês!

Zoltán Kodály (1882-1967)
Sonata para cello solo, op.8
(1915)
A1 Allegro maestoso
A2 Adagio
A3 Allegro molto vivace

J.S. Bach (1685-1750)
Suíte em do menor para cello solo
(n.º 5)
B1 Prelude
B2 Allemande
B3 Courante
B4 Sarabande
B5 Gavotte I
B6 Gigue

Violoncello: Aldo Parisot (* Natal, RN, Brasil, 1918)
Instrumento: Stradivarius ‘De Munck’, de 1730
Gravação original Everest (EUA), prov. entre 1956 e 1958
LP brasileiro Fermata: 1971
Digitalizado por Ranulfus, jul.2010

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