O compositor negro que influenciou Mozart: 2 concertos de Joseph Bologne, Chevalier de Saint-George (1745?-1799)

Publicado originalmente em 18.06.2010. Re-publicado em 25.01.2016 em um “pacote” de postagens que talvez se possa relacionar aos 161 anos da Revolta do Malês (negros letrados, portadores da alta cultura mandê) na Bahia.

A participação de afrodescendentes na construção do “clássico” brotado da Europa é um assunto riquíssimo ainda bem pouco explorado, no qual me fascinam especialmente dois violinistas.

Um, George Bridgetower, filho de um negríssimo escravo forro e de uma polonesa, entusiasmado pelo qual Beethoven compôs em uma semana a maior de suas sonatas para violino e piano. Um dia conto aqui sobre a estreia, talvez a primeira jam-session – e sobre a briga de bebedeira que levou o genioso gênio a re-dedicar a obra a Rudolph Kreutzer, que fez pouco caso e nunca a tocou.

O outro, o autor destes concertos, nascido em Guadeloupe, Caribe, de um nobre francês com sua escrava Nanon. Pouco depois, encrencas “correm” o pai de volta para a Europa, e este – milagre dos milagres na história da colonização! – em vez de abandonar mãe e filho leva-os consigo. Nanon parece ter sido uma espécie de segunda esposa mantida discretamente no ambiente doméstico, mas mesmo assim chegará a ser mencionada como “o mais belo presente que a África deu à França”, e o pequeno Joseph terá uma educação em letras e armas para nobre nenhum botar defeito. Aos 15 anos ingressa na guarda do rei, e aos 26 é mencionado como mestre “inimitável” na esgrima, mencionado nos tratados dessa arte dos séculos 19 e 20 como referência e com reverência (as idades são presumidas a partir de seu nascimento no Natal de 1745, data mais aceita, embora ainda disputada).

Porém aos 23 já havia sido chamado “inimitável” em outra arte: a do violino. Assume o posto de spalla numa das orquestras mais prestigiosas da Paris de então, a Concert des Amateurs, em cuja direção sucede Gossec quatro anos depois. É apenas a primeira das muitas sociedades musicais que dirigirá, posição que lhe permitirá, entre outras coisas, encomendar a Haydn a série de sinfonias que ficarão conhecidas como “parisienses”. Haydn tinha 53 anos por ocasião da encomenda, Saint-George 39 ou 40.

Oito anos antes, em 1777, Mozart chegara a Paris pela terceira vez. Havia poucos anos a cidade o havia aclamado ainda como garoto prodígio, mas agora já tem 21, deixou de ser novidade em mais de um sentido. Coincidentemente, nesse mesmo momento a estrela de Saint-George está brilhando a toda, inclusive com a estréia de sua “comédia com árias” Ernestine, com libreto do autor de As Ligações Perigosas, Choderlos de Laclos.Mozart escreve ao pai que a coisa está difícil; o pai o aconselha a procurar justamente o Concert des Amateurs, mas ao que parece o filho reluta, não sabemos a razão. O que sabemos é que indiferente à música de Saint-George, Mozart não ficou: têm sido apontadas semelhanças estilísticas e até mesmo temáticas entre obras suas desse momento, ou pouco posteriores, e obras de Saint-George publicadas pouco antes.

Desonra nenhuma para Mozart: é mesmo pelo acolhimento de influências e sua posterior transformação que qualquer artista se faz. Mas é sem dúvida honra para Saint-George, que ninguém menos que Mozart tenha considerado sua música digna de semelhante atenção!

Aos 45, apesar das origens aristocráticas, Joseph se junta à Revolução com o posto de coronel, logo assumindo o comando de um batalhão de negros e mestiços, entre eles o futuro pai do escritor Alexandre Dumas. Mas apesar de seus serviços terem sido decisivos para a vitória da Revolução (como foi demonstrando recentemente), nos anos do terror foi denunciado e mantido preso por um ano e meio, à espera da guilhotina. Embora indultado de última hora, sua saúde jamais voltou a ser a mesma, levando-a à morte com apenas 53 anos.

Se é verdade que seus últimos anos foram vividos com simplicidade, não o é o mito romântico de que Joseph Bologne de Saint-George tenha morrido esquecido: os jornais de Paris noticiaram sua morte como a de uma personalidade nacional. (Aproveito para mencionar que as grafias Bologne e Saint-George [sem s] foram adotadas aqui no lugar de Boulogne e de Saint-Georges de acordo com os estudos mais recentes).

O esquecimento quase total veio um pouco mais tarde, ao longo dos séculos 19 e 20. Em 1936 o violinista Marius Casadesus fez um primeiro esforço de revivê-lo, porém isso só veio acontecer de fato a partir de 1974, quando Jean-Jacques Kantorow espantou o mundo com gravações de algumas sonatas e concertos, entre os quais os dois postados aqui. [Ranulfus havia postado o LP brasileiro CBS Odissey, 1976, digitalizado por Avicenna. Na repostagem de 2023, trago o CD de 1990 com mais dois concertos, também gravados nos anos 70]  De lá para cá têm surgido cada vez mais estudos, biografias e gravações, incluindo integrais dos concertos e dos quartetos (às quais infelizmente ainda não tive acesso).

Se posso fazer uma sugestão para a sua audição, é a seguinte: não preste atenção só no efeito geral, nem só nos momentos de arrebatamento dos solos: não deixe de reparar na qualidade da textura e/ou trama da parte orquestral, o tempo todo. Se depois disso você ousar dizer que Saint-George é um “compositor menor”, por favor já mande junto seu endereço postal, que minha carta-bomba não tardará…

Joseph Bologne, Chevalier de Saint-George
DOIS CONCERTOS PARA VIOLINO E CORDAS

Concerto em sol maior, op.8 nº 9
01 Allegro
02 Largo
03 Rondeau

Concerto em la maior, op.5 nº 2
04 Allegro moderato
05 Largo
06 Rondeau

Concerto em do maior, op.5 nº 1
07 Allegro
08 Andante moderato
09 Rondeau

Concerto em re maior, op.5 nº 2
10 Allegro maestoso
11 Adagio
12 Rondeau

Orquestra de Câmara Bernard Thomas
Jean-Jacques Kantorow, violino solo e regência
Gravação original Arion France, 1974/1976

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – MP3 320kbps

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Flac

Ranulfus

Mais do compositor negro que influenciou Mozart: 6 concertos e 6 sinfonias concertantes do ‘Cavaleiro de Jorge’ Joseph Boulogne (CDs AVENIRA 3+4+5)

Publicado originalmente em 29.06.2010

 

Landais nos contou de St-George, de Paris, um mulato. St-George é o n.º 1 na Europa em equitação, corrida, tiro, esgrima, dança, música. Atinge [com a espada] o botão – qualquer botão – da capa ou do colete dos maiores mestres. Acerta com a pistola uma moeda de 1 coroa no ar. (Do diário de John Adams, 2.º presidente dos Estados Unidos, em 17/05/1779)

Além de uma característica atenção às capacidades bélicas e não às artísticas, pelo que se lê em outras fontes faltou a esse presidente dos EUA mencionar a natação, a patinação no gelo e – se me permitem chamá-lo de esporte – o arrebatamento de paixões femininas.

Já se falou de Liszt como o primeiro pop star, mas considerando as datas e a variedade das frentes de destaque, duvido que surja um candidato mais forte que Joseph Bologne de Saint-George. Nem estranho certa irritação no que alguns têm escrito sobre ele: faz pensar no ‘moleque indigesto’ de Lamartine Babo, que ‘pisca o olho e cai no samba’, ‘faz o footing lá no Leblon’, ‘toca trombone na banda’, ‘já foi vaqueiro numa fazenda’ mas ‘tem um defeito: come demais; come, come, não deixa resto – ó que moleque indigesto’.

Mas a figura de Saint-George parece ser imensamente mais complexa que isso. Mereciam tradução integral os sensíveis textos de Emil Smidak para os encartes desta série de CDs (de onde vêm a citação de John Adams acima). Além disso, as contradições no conjunto de dados que se encontram na net em inglês e francês mostram o quanto ainda falta descobrir, mas sobretudo deixam evidente que nem tudo nessa vida foram flores.

Houve a carta de duas cantoras e uma bailarina à rainha declarando que sua honra e consciência (!) jamais lhes permitiriam trabalhar sob as ordens de um mulato, o que terminou por impedir que ele assumisse a direção da Academia Real de Música. Houve traições e agressões públicas tanto em sua vida civil como na militar. Havia sobretudo a lei (o ‘Code Noir’) pela qual o filho de uma escrava jamais seria herdeiro natural dos títulos e das posses do pai aristocrata; se era chamado de Chevalier, era pelo papel que ocupava de fato na sociedade: legalmente não lhe cabia nenhum título, apesar de sua meio-irmã branca-inteira ser Marquesa de Clairfontaine.

Não é de estranhar, então, ter-se engajado de corpo e mente na causa da Revolução – para também aí se ver traído depois de algum tempo, aguardando a guilhotina preso por cerca de um ano, sendo liberto por um triz em um mundo onde muitos de seus melhores amigos haviam sido executados.

Há controvérsia sobre ele ainda ter estado no Caribe depois disso, envolvido nos processos que levaram à independência do Haiti; os defensores dessa tese dizem que teria voltado profundamente abalado – com certeza por ter visto que a barbaridade do mundo ia ainda bem mais longe que o pior que tivesse conhecido em Paris.

Como a data de nascimento continua controversa, não sabemos a idade exata com que morreu – na faixa dos 51 aos 59 – porém talvez tenha sido uma felicidade ter escapado, por três anos, de ver Napoleão restaurando a escravidão.

Não sei quando encontrarei mais gravações de Saint-Georges para postar, e então quero encerrar esta série de três com algumas das palavras finais do texto de Smidak – depois das quais virão os links de download dos CDs e ainda os do documentário canadense O Mozart Negro no YouTube (em inglês sem legendas – infelizmente não incorporável a partir do endereço atual):

“Na Europa do século 18 houve musicistas maiores que Saint-Georges pelo ponto de vista musicológico. Mas terá havido algum maior pelo ponto de vista humano? […] Como conclusão poderíamos nos perguntar: a quem Saint-George realmente pertence? À África, à América negra ou à Europa? Não pretendemos perpetuar o conflito que dilacerou Saint-George no final da sua vida, dando uma dessas respostas em prejuízo das outras. Antes, responderemos: pertence a cada uma dessas e a todos os povos, pois a grande epopeia humana da qual sua vida foi parte não conhece fronteiras nacionais nem raciais.”
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Emil F. Smidak

Joseph Bologne, Chevalier de Saint-Georges
Concertos para violino e orquestra e ‘sinfonias’

Orquestra Sinfônica da Rádio de Plzeň
Regência: František Preisler Jr. (1996-97)
Violino solo e cadências: Miroslav Vilímec

CD 3/5
Sinfonia Concertante Op. 9 No.2 em lá maior – G 066
Concerto para violino Op. 5 No.1 em dó maior – G 031
Sinfonia Concertante em ré bemol maior – G 023
Concerto para violino Op. 7 No.2 em si bemolmaior – G 040

CD 4/5
Sinfonia Concertante Op. 10 No.1 em fá maior – G 064
Concerto para violino Op. 5 No.2 em lá maior – G 032
Sinfonia Concertante em sol maior – G 024
Concerto para violino Op. 1 No.10 em ré maior – G 021

CD 5/5
Sinfonia Concertante Op. 9 No.1 em dó maior – G 065
Concerto para violino Op. 3 No.2 em lá menor – G 028
Sinfonia Concertante Op. 10 No.2 em lá maior – G 049
Concerto para violino Op. 1 No.11 em sol maior – G 022

. . . . . BAIXE ESTES 3 CDs AQUI – download here

Brinde: DOCUMENTÁRIO CANADENSE “LE MOZART NOIR”
com The Tafelmusik Baroque Orchestra – em inglês, sem legendas.
(Antes em cinco partes, agora consolidado, ~48 min. Recomendo!)

Ranulfus