Conheci Rachel Grimes porque sou fã de sua banda, chamada Rachel’s. (A história do nome tem bem menos ego do que se pode imaginar). Sobre ela, resume bem a wikipedia: The group’s work is strongly influenced by classical music, particularly inspired by the minimalist music of the late 20th century, and its compositions reflects this. The group’s recordings and performances feature a varying ensemble of musicians, who play a range of string instruments (including viola and cello) in combination with piano, guitars, electric bass guitar, and a drum set that includes a large orchestral bass drum. Embora não esteja dito nesse trecho, Rachel’s é classificada como uma banda de post-rock — o que eu considero uma grande incorreção, apesar de não saber em que gênero enquadrá-los. A palavra “neoclássico” vem à mente, mas isso é apenas uma indicação.
Este primeiro trabalho solo da pianista e compositora Rachel vai pelo mesmo caminho. Não é jazz, mas lembra alguns momentos (os mais esparsos) de Herbie Hancock; não é música clássica, mas não soa estranho quando lhe categorizam como “contemporary classical”. Como sabemos, tudo isso faz pouca diferença — principalmente se o resultado é brilhante, e felizmente é este o caso. Rachel criou um álbum belíssimo. Os temas são curtos e entrelaçados, quase sempre bastante lentos, e com o piano a criar paisagens de tranquilidade e introspecção. E é só ele que se ouvirá no disco, além de uns passarinhos, bem no fundo, em determinados momentos. Não parece relaxante? Ao cabo de pouco mais de meia hora, fica-se com a impressão de se ter passado por um spa cerebral. Não que seja música simplista, ou fácil, ou (argh!) new age. Rachel, em solo ou com a banda, tem a virtude de criar canções que são agradáveis e ao mesmo tempo desafiam — e mais do que isso, que trazem identidade bem definida e por isso, causam saudade e fazem voltar à audição.
01 Long Before Us
02 Every Morning
03 The Corner Room
04 She Was Here
05 On The Morrow
06 My Dear Companion
07 Far Light
08 Mossgrove
09 Bloodroot
10 At the Pond
11 Starwhite
12 The Side View
13 Every Morning Birds
14 A Bed of Moss
Nos comentários do post sobre Rachel Grimes, o leitor Felipe faz menção aos discos da “banda-mãe” Rachel’s, em especial “Music for Egon Schiele”. Sendo esta uma obra tão — TÃO — bela, e dada a dificuldade em se encontrar Rachel’s em boa qualidade na internet (sem pagar), me parece que não, não fica nem um pouco deslocada a postagem da discografia do grupo aqui.
“Music for Egon Schiele” é provavelmente o disco mais indicado aos amantes de música clássica que já postei nesse blog. (Ou ainda: é o mais próximo da música clássica que já me senti.) Procuro ficar de fora dessa área porque, como é sabido entre os leitores mais antigos, este cão, além de mau ouvinte, não entende lhufas do assunto. Mas o review da Amazon me diz que não arrisco tanto assim:
Originally performed as a live accompaniment for a 1995 theater-dance production about the life of painter Egon Schiele, this is the both the exception to the Rachel’s rule and their defining moment. Though they are normally a three-headed, multiperson new-music and classical ensemble centered around Jason Noble, Christian Frederickson, and Rachel Grimes, this suite was written entirely by Grimes and performed by Grimes (on piano), Frederickson (viola), and cellist Wendy Doyle. As always, the music is spellbinding; the fact that this is classical music by –and for– people who grew up on indie rock in no way diminishes it, nor does it make the music too low-brow for those with a classical background. For a more complete picture of what the entire Rachel’s ensemble is capable of, both Handwriting and The Sea and the Bells are recommended. —Randy Silver
Se a resenha acima une bem os três primeiros discos, já “Selenography” e “Systems/Layers” tem maior dose de experimentalismo (não confundir com psicodelia ou bagunça. Os Rachels são tão sérios quanto sensíveis). Meus preferidos são Music for Egon Schiele e Selenography. É música que pode ocupar meu background e me deixar mais criativo, ou que pode ocupar toda minha atenção e me deixar de queixo caído. Acho que vocês, que ainda não conhecem, deveriam tentar. Não garanto seu dinheiro de volta, mas prometo ir direto pro inferno com minhas boas intenções.
Music for Egon Schiele /1996 (v0)
Rachel Grimes (piano), Christian Frederickson (viola), Wendy Doyle (cello)
01 Family Portrait
02 Egon & Gertie
03 First Self-Portrait Series
04 Mime Van Osen
05 Second Self-Portrait Series
06 Wally, Egon & Models in the Studio
07 Promenade
08 Third Self-Portrait Series
09 Trio Goes to a Movie
10 Egon & Wally Embrace and Say Farewell
11 Egon & Edith
12 Second Family Portrait
Rachel Grimes (piano); Christian Frederickson (viola); Richard Barber (contra bass); Nat Barrett (cello); Marnie Christensen (violin); Kevin Coultas (drums); Mark Greenberg (vibraphone); Gregory King (hand drums); Michael Kurth (double bass); Eve Miller (violoncello); Jason Noble (electric bass, guitars, tapes); Jeff Mueller (orator)
01 Southbound to Marion
02 M. Daguerre
03 Saccharin
04 Frida Kahlo
05 Seratonin
06 Full on Night
07 Handwriting
Rachel Grimes (piano, vibes, linen sheet); Christian Frederickson (viola, matchbooks); John Baker (bells); Kevin Coultas (drum set, timpani); Edward Grimes (drum kit); Thomas Hatte (contrabass); Sarah Hong (cello); Ann Kim (violin); Greg King (boatswain); Jim Maciukenas (musical saw); Matthew McBride (viola); Eve Miller (violoncello, breton plotter, notepad)
01 Rhine & Courtesan
02 The Voyage of Camille
03 Tea Merchants
04 Lloyd’s Register
05 With More Air Than Words
06 All Is Calm
07 Cypress Branches
08 The Sirens
09 Night at Sea
10 Letters Home
11 To Rest Near to You
12 The Blue-Skinned Waltz
13 His Eyes
Rachel Grimes (vocals, piano, harpsichord, keyboards); Jason Noble (guitar, keyboards, bass, percussion); Eve Miller (cello); Christian Frederickson (viola, accordion, keyboards); Dominic Johnson (viola); Edward Grimes (vibraphone, drum kit); Gregory King (percussion); Kyle Crabtree (drum kit); Steve Buttleman (trumpet); Giovanna Cacciola (vocals)
01 A French Galleasse
02 On Demeter
03 The Last Night
04 Kentucky Nocturne
05 Honeysuckle Suite
06 Artemisia
07 Old Road 60
08 An Evening of Long Goodbyes
09 Cuts the Metal Cold
10 The Mysterious Disappearance of Louis LePrince
11 Forgiveness
12 Hearts and Drums
Rachel Grimes (piano, keyboards); Christian Frederickson (viola, keyboards); Jason Noble (bass, guitar, drums, toolbelt, keyboards); Kyle Crabtree (drum kit); Edward Grimes (drums, keyboards); Eve Miller (cello); Matthew Annin (french horn); Wendy Doyle (cello); Doug Elmore (stand-up bass); Jane Halliday (violin); Sarah Hill (violin); Shannon Wright (vocals); Greg King (films)
01 Moscow Is in the Telephone
02 Water from the Same Source
03 Systems/Layers
04 Expect Delays
05 Arterial
06 Even/Odd
07 Wouldn’t Live Anywhere Else
08 Esperanza
09 Packet Switching
10 Where_Have_All_My_Files_Gone?
11 Reflective Surfaces
12 Unclear Channel
13 Last Things Last
14 Anytime Soon
15 Air Conditioning/A Closed Feeling
16.Singing Bridge
17.And Keep Smiling
18.4 or 5 Trees
19 NY Snow Globe
Como bem coloca o historiador Eric Hobsbawm, o século XIX só acaba em 1914 com o início da 1ª guerra imperialista. Na música, seu último suspiro no ocidente europeu se dá com as obras de Mahler, Richard Strauss e outros românticos tardios. A geração seguinte, como Debussy e Stravinsky, embora formados na antiga “escola” do romantismo, fariam a transição para os novos tempos, tentando criar uma música nova que se libertasse dos padrões românticos, cujos limites de desenvolvimento já haviam sido atingidos.
Seria um desses compositores de transição que iria causar o maior rompimento com a música ocidental até então. Arnold Schoenberg, contraditoriamente, estava preocupado em manter a supremacia que a música alemã detinha até ali. Extremamente conservador, totalmente alinhado com a tradição musical alemã, Schoenberg sairia na frente na fundação de uma nova escola que encerrará não só o domínio da música alemã sobre a tradição da música ocidental, mas do domínio de qualquer escola. Buscando criar um novo paradigma já conservador em sua própria concepção, daria as bases para os compositores mais vanguardistas do século XX: aqueles ligados ao dodecafonismo e ao serialismo.
A segunda escola de Viena, iniciada por Schoenberg, teria dois discípulos, Alban Berg e Anton Webern. Berg, mais moderado, será o “mestre da transição mínima”, tentando juntar elementos do romantismo tardio com o dodecafonismo. Já Webern vai levar os ensinamentos de Schoenberg ao limite, dando as bases para o posterior serialismo integral. No geral, a música da segunda escola de Viena nada mais é do que a música do tempo em que o velho morreu mas o novo ainda não pode nascer. Isto é, uma música de um tempo de transformações sociais inacabadas, ainda em conflito, deixando os indivíduos criadores (artistas), numa confusão completa, sem um paradigma.
Em 1935, Berg recebe a encomenda de um concerto para violino. Apesar de a rejeitar num primeiro momento, devido a sua dedicação exclusiva à finalização da ópera Lulu, posteriormente Berg aceita a encomenda, principalmente pelo alto valor que seria pago pela obra. Sem saber exatamente como serão as formas gerais deste concerto, fica sabendo da morte de Manon Gropius, filha de Alma Mahler e Walter Gropius. Este acontecimento pessoal definirá o conteúdo íntimo de seu concerto. Berg, que conhecia a filha do casal desde tenra idade, profundamente afetado, coloca a dedicatória da obra “à memória de um anjo“.
Na obra, a homenagem fúnebre da obra fica evidente por duas características:
Primeiro, pelo tema de Es ist genug (É o bastante), da cantata O Ewigkeit du Donnerwort (BWV 60) de Bach, que é explorado em alguns momentos da obra, mas, principalmente, no final. Segundo, pela melodia folclórica da Caríntia, talvez em homenagem à mãe de Webern, Amalie Webern, que fora enterrada na região, e onde Berg escreve o concerto. Mas essas citações, embora elucidativas, não esgotam o caráter “fúnebre” da obra. Se pensarmos que todo o concerto evoca, transfigura e reapresenta esses elementos musicais e tantos outros, vemos, além da capacidade criativa de Berg, a própria indefinição social universal daquele tempo que se expressava mesmo na mais particular de suas obras. E aí está o maior mérito da obra: conseguir exprimir no particular, o movimento de uma transformação universal da música e da própria sociedade europeia.
Por tais conteúdos podemos dizer que o concerto para violino de Berg é, praticamente, um “concerto fúnebre”, que faria, voluntária e involuntariamente, homenagem a quatro mortes: primeiro, a de Manon Gropius, segundo, à mãe de Webern, terceiro, ao próprio Berg (que morreria não muito tempo depois de completada a obra), e, finalmente, à morte da civilização burguesa europeia, que entraria em seu maior período de reação e contrarrevolução em toda sua história.
Escrevendo em plena Áustria pré-nazista, surpreende um pouco o aparente alheamento de Berg enquanto compositor dos acontecimentos de sua época. A Áustria só seria anexada à Alemanha em 1938, mas desde a ascensão de Hitler ao poder em 1932, fascistas e nazistas em todo o mundo já haviam se infiltrado em governos favoráveis à extrema-direita ou tomado o poder por eleições ou golpes. Para ter uma ideia do clima que já rondava a Europa, basta saber que desde 1932 muitos artistas já haviam imigrado para os Estados Unidos, inclusive o antigo mestre de Berg, Schoenberg, que tinha ascendência judia. Berg, sendo um compositor da alta classe média austríaca e bem posicionado socialmente, provavelmente não tinha preocupações de ordem política em seu dia a dia.
Talvez esse próprio alheamento tenha lhe possibilitado ser um dos melhores compositores de sua época, tomando o distanciamento necessário para exprimir o que lhe era particular através do universal. Trazendo o universal de uma maneira particular. E de uma maneira particular que exprimisse o próprio sentimento do presente em seu movimento incerto para o futuro. Como diz um de seus alunos, Theodor Adorno, numa passagem:
“In some of its simplest, intellectually most irritating passages, for instance the two-fold quotation of the Carinthian folk song, the Violin Concerto acquires an almost heartbreaking emotive power unlike almost anything else Berg ever wrote. He was granted something accorded only the very greatest artists: access to that sphere, most comparable with Balzac, in which the lower realm, the not quite fully formed, suddenly becomes the highest. . . . The way, however, in which the imagerie of the nineteenth century stirs within Berg is forward-looking. Nowhere in this music is it a matter of restoring a familiar idiom or of alluding to a childhood to which he seeks a return. Berg’s memory embraced death. Only in the sense that the past is retrieved as something irretrievable, through its own death, does it become part of the present.” (fonte, grifo meu)
É interesse notar o que Adorno diz aqui. Os elementos do século XIX que Berg traz em seu concerto não buscam um retorno, mas um avanço. Em nenhuma parte Berg procura um retorno a um passado ideal ou ao retorno do que era familiar ou tradicional. Toda rememoração é uma forma de aceitação do que está morto, algo que não tem volta, mas que ainda é parte do presente. Esta síntese do Adorno coloca Berg como o principal compositor da segunda escola de Viena, na medida em que Berg consegue, como ninguém, sintetizar em sua “transição mínima” este momento onde o velho morreu mas o novo ainda não pode nascer.
Seu concerto para violino é praticamente sua última obra. Poucas semanas depois, acometido por uma infeção sanguínea, Berg faleceria. Sua ópera Lulu, um grande marco do repertório operístico ocidental, ficaria inacabada. Mas seu concerto para violino se tornaria um grande marco do repertório para violino solo. Um dos maiores nomes da música moderna burguesa, Alban Berg, deixaria a vida, mas entraria para a história da música ocidental em lugar de destaque por esta e por outras obras.
Para terminar, fiquem com os versos finais de Es ist genug:
Es ist genug,
Herr, wenn es dir gefällt,
so spanne mich doch aus.
Mein Jesus kömmt!
Nun gute Nacht, o Welt!
Ich fahr ins Himmelshaus,
ich fahre sicher hin mit Frieden;
Mein feuchter Jammer bleibt darnieden.
Es ist genug!
Tradução livre:
É o bastante,
Senhor, se a ti lhe satisfaz,
Então dai me a liberdade final.
Meu Jesus vens!
Dou-lhe boa noite, ó mundo.
Vou-me à casa celestial.
Tenho certeza que vou com paz.
Meus sombrios sofrimentos deixados para trás.
É o bastante!
Berg & Beethoven: Violin concertos
Alban Berg (1885-1935):
Violin concerto “to the memory of an angel”:
01 I. Andante – Allegretto
02 II. Allegro – Adagio
Ludwig van Beethoven (1770-1827):
Violin concerto in D major, Op. 61
03 I. Allegro ma non troppo – Adagio
04 II. Larghetto
05 III. Rondo allegro