Haydn: Sonatas nos. 32, 37, 49 / Schubert: Impromptus D. 935 / Encores by Rameau, Chopin, Griboyedov, Debussy (Sokolov, piano)

Grigory Sokolov tocando Haydn e Schubert no salão do antigo palácio dos Esterházy, onde Haydn viveu e tocou por boa parte de três décadas, numa gravação ao vivo feita em um único dia, sem truques de estúdio posteriores? É claro que é IM-PER-DÍ-VEL!

Um disco novo de Sokolov – que há décadas não entra num estúdio e só consente, vez que outra, lançamentos comerciais das gravações de seus recitais – é sempre um evento tremendo, e nossa postagem de hoje, fazendo eco a essa excepcionalidade, será repartida entre dois autores. Assim, Vassily comentará o corpo principal do recital, e Pleyel, seus generosos bises, que são quase um programa à parte.

Vassily:
O profundo respeito com que Grigory Sokolov empenha sua virtuosidade a serviço dos compositores tem, nesse recital, uma camada adicional de reverência. Afinal, poucos locais são mais haydnianos que a Haydnsaal, esplendorosamente barroca e acusticamente perfeita, no coração do Palácio Esterházy de Eisenstadt, onde o Mestre de Rohrau passou parte significativa de seus trinta anos como Kapellmeister dos príncipes, e na vizinhança da capela da Bergkirche em que repousa para sempre.

Joseph de butuca [foto de Vassily]

Por reverência, também, Sokolov inicia o recital a tocar sem interrupções três das sonatas para piano de Haydn – todas em tonalidades menores -, pedindo à audiência que se abstenha de aplaudir entre uma peça e outra. O que ouvimos, sem qualquer surpresa, é pianismo de primeira: fraseado meticuloso, articulação precisa, rico colorido timbrístico. Há, sobretudo, respeito: atento às indicações Moderato, Sokolov furta-se à prestidigitação que infesta muitas leituras desse repertório e saboreia a realização de cada frase. Ouvintes acostumados a um Haydn mais temperamental e sublinhado por rompantes de humor, como o das notáveis gravações de Brendel (aqui e ali) e Lewis ( e acolá), poderão ter a impressão de frigidez. Quem ama o piano, e principalmente aqueles que já tentaram tirar dele qualquer som que preste, ficará embevecido: as três sonatas passam voando, e a gravação é tão boa que precisamos da torrente de aplausos da plateia e de umas poucas e desimportantes derrapadas do mestre para nos lembrarmos de que ela foi feita ao vivo.

A Haydnsaal sem Sokolov [foto de Vassily]

A escolha de obras de Schubert para prosseguir o recital também foi reverente ao Mestre de Rohrau: em outubro de 1828, Eisenstadt foi o destino de uma curta peregrinação de Franz, acompanhado de seu irmão, ao túmulo de Haydn na Bergkirche, na última das poucas vezes em que deixou Viena, onde morreria no mês seguinte. Essa intersecção melancólica entre os rumos de Schubert e a cidade reflete-se na leitura constrita e pianisticamente maravilhosa dos improvisos, D. 935. Depois de voltar a ouvir a gravação que deles fez Radu Lupu (a minha favorita) para escrever sua eulogia, na semana passada, senti falta de um tanto de calidez ao retornar à interpretação de Sokolov. Não é uma queixa, todavia: a moderação, mais uma vez, permite-lhe burilar cada peça e liberar comedidamente a tensão, em especial nos dois primeiros improvisos, que remetem ao Schubert transcendental das últimas sonatas para piano. O terceiro, na forma de variações, é notável pela naturalidade com que a execução propõe ao tema suas várias roupagens – uma transformação gradual, e não uma comédia de episódios, como só conseguem os grandes pianistas -, enquanto no quarto, com a indicação Allegro scherzando, Sokolov despende energia como que para fazer o ouvintes pularem da cadeira, ao final do recital.

A Bergkirche em Eisenstadt [foto de Vassily]

Pleyel:
Os bises dos recitais de Sokolov foram se tornando lendários entre os fanáticos por piano da Europa – e digo da Europa porque Sokolov não é muito de viajar e, ao que consta, não tem visto americano [nota de Vassily: nem britânico].

Se pensarmos em alguns pianistas mais ou menos da geração de Sokolov e igualmente geniais, lembraremos que Martha Argerich só toca sozinha por obrigação, fazendo como bis peças curtinhas, quase sempre as mesmas: um Scarlatti, um Schumann ou um Chopin, contrastando com seu imenso repertório de música de câmara. E que Maurizio Pollini costuma deixar plateias boquiabertas ao tocar de bis alguns dos estudos mais difíceis e impressionantes de Chopin, além da Balada nº 1. Enquanto nos recitais de Antonio Guedes Barbosa eram as valsas do polonês que apareciam como brinde.

Mais parecidos com os bises de Sokolov eram os de Nelson Freire: algumas peças virtuosísticas e brilhantes (Villa-Lobos: O Ginete do Pierrozinho, Debussy: Poissons d’or) mas sobretudo pequenas imersões saborosas no mundo sonoro de compositores raramente ouvidos nas salas de concerto. No caso de Freire, além de seu bis mais frequente, a Melodia da ópera Orfeu de Gluck em arranjo de Sgambati, ele também cultivava pequenas flores como um Noturno do polonês Paderewski e a inocente Jeunes filles au jardin do catalão Mompou.

No caso de Sokolov, uma figurinha fácil em seus bises, mas rara nos de outros grandes pianistas, é o barroco francês de Rameau: mais do que uma oportunidade de impressionar o público após o programa principal, o pianista parece buscar aqui uma chance de mostrar, em apenas 3 minutos, um mundo sonoro bastante diferente daqueles de Haydn e Schubert. Mas este último reaparece logo depois com uma melodia húngara, seguida de um dos prelúdios mais lentos do grupo de 24 de Chopin. A intenção parece ser a de transportar o público por atmosferas contrastantes, como nos bises de seu famoso recital em Salzburgo também lançado pela DG, em que Sokolov misturou dois poemas de Scriabin e duas mazurkas de Chopin, tocados alternados, para finalizar com uma outra peça curta de Rameau e um coral de Bach.

Na Haydnsaal em 2018, o bis de Sokolov prossegue com um daqueles nomes que dificilmente ouvimos na parte principal do recital: aqui é um contemporâneo quase exato de Schubert, Alexander Griboyedov (1795-1829), compositor russo que estudou com o irlandês John Field, o primeiro a compor noturnos para piano. E após a valsa mais ou menos previsível de Griboyedov, vem um dos prelúdios mais introspectivos de Debussy, um dos mais improváveis para finalizar um recital que teve como prato principal as sonatas de Haydn.

Grigory Sokolov:

Joseph Haydn:
Sonata No.32 in G minor Hob.XVI:44
Sonata No.47 in B minor Hob.XVI:32
Sonata No.49 in C-sharp minor Hob.XVI:36

Franz Schubert:
4 Impromptus op. posth.142 D 935

Encores
F. Schubert: Impromptu A-Flat major op.90 No.4 D 899
J.-F. Rameau: “Le Rappel des oiseaux”
F. Schubert: “Ungarische Melodie” D 817
F. Chopin: Prelude D-Flat major op.28 No.15
A. Griboyedov: Waltz E minor
C. Debussy: “Des pas sur la neige”, Prelude from Book 1 No.6 (L 117 No.6)

Recorded on August 10, 2018
Haydnsaal at Schloss Esterházy in Eisenstadt, Austria

BAIXE AQUI — DOWNLOAD HERE – MP3 320 kbps

O outro Palácio Esterházy, em Fertőd, Hungria: não deve ser barato pra manter né?

Pleyel/Vassily