
Beethoven foi um gênio da Música e mestre não menos consumado da arte de enrolar. Uma de suas obras-primas nessa menos votada arte foi a maneira com que levou a composição das três últimas sonatas para piano. Como vimos ontem, ele recebeu a encomenda dessas sonatas em 1820, enquanto se dedicava à Missa Solemnis. Pois bem: depois de entregar a primeira sonata, já com atraso, avisou ao encomendante que as outras duas se seguiriam “sem demora”, só para – claro – deixá-las de lado e mergulhar novamente no árduo trabalho de composição da Missa, no qual também se atrasara. Só um ano depois de completar a Op. 109, enfim, ele iniciou a Op. 110, concluindo-a no Natal de 1821.
A Sonata em Lá bemol maior, Op. 110, é notável por ser, assim como a Oitava Sinfonia, uma das poucas obras importantes de Beethoven a ser publicada sem dedicatário. O compositor mandou o manuscrito sem qualquer dedicatória, prometendo que ela seria informada posteriormente. O editor, decerto tiririca com o imenso atraso da entrega, publicou-a assim mesmo, e como tal ficou. Ao que tudo indica, a sonata seria dedicada a Antonie Brentano, a mais provável destinatária da famosa correspondência à “Amada Imortal”, e que receberia, mais tarde, a dedicatória das monumentais Variações Diabelli.
Assim como na Op. 109, a maior parte do “peso” da Op. 110 está no final. Os dois primeiros movimentos são concisos e contrastantes. O movimento de abertura, que tem a indicação “com amabilidade”, é belamente contido, seguindo-se um turbulento movimento em menor, fazendo as vezes de scherzo. O finale é tão complexo, e foi tantas vezes reformulado, que Beethoven, num gesto sem precedentes, passou a limpo o original, em vez de enviar ao editor a habitual floresta de garranchos. Não obstante, por motivos que só ele próprio deveria compreender – e porque Beethoven, como já devem ter percebido, era um tipo raro -, ele acabou por reter a cópia “limpa” e mandou a partitura original, cravejada de rasuras. Pois este movimento de gênese tão trabalhosa inicia com um recitativo, que depois ganha ares de uma lamúria cantável, e desemboca numa extraordinária fuga que, quando parece encaminhar-se para a coda, volta à lamúria, que recebe a incomum indicação “exausto, lamentando”. Depois, a fuga retorna, sob a indicação “aos poucos revivendo novamente”, com a inversão do tema, até chegar a um assertivo clímax e a conclusão verdadeira.
O intérprete que lhes apresento é, também, extraordinário. O londrino Solomon Cutner (1902-1988) iniciou a carreira como criança-prodígio, interrompeu-a por toda adolescência para dedicar-se aos estudos com uma aluna de Clara Schumann, e retomou-a somente como adulto jovem, adotando o monônimo Solomon.

Solomon foi uma estrela fulgurante que embarcou em extensas turnês mundiais – uma proeza considerável, se levarmos em conta o tempo que se levava, por exemplo, para chegar à Austrália e à Indonésia nos anos 30 – e que teve amplo reconhecimento por suas interpretações a um só tempo austeras e altamente expressivas de um vasto repertório, principalmente pelas sonatas de Beethoven.
A carreira de Solomon foi lamentavelmente destruída por um devastador derrame que, aos meros 54 anos, o fez perder o controle da mão direita. Na ocasião, ele se dedicava à gravação da integral das sonatas de Beethoven, das quais já gravara dezoito. Este torso de integral, no entanto, é um dos clássicos imorredouros da discografia beethoveniana. Quem ouve a legendária “Hammerklavier” de Solomon – com um constrito movimento lento que impressiona tanto quanto os malabarismos medonhamente difíceis dos demais movimentos -, ou a consumada maestria com que ele interpreta a Op. 110, só consegue juntar-se ao coro de lamúrias pelo fim precoce de sua carreira e pela interrupção de seus projetos com as obras do renano. Serve-nos de consolo, no entanto, que as gravações de Solomon, todas em mono, foram feitas com a EMI, que dispunha de excelentes produtores e de equipamento no estado da arte. Eu chamaria o som desses registros quase setentões de miraculosamente bom, se chamá-lo de milagre não fosse um desrespeito ao maravilhoso trabalho dos engenheiros de som. Com a possível exceção da Op. 111, que me parece estar num degrau abaixo do elevadíssimo patamar das demais, o que se ouve com Solomon é Beethoven para a eternidade. Recomendo que o escutem com parcimônia, e bem aos poucos, para que descubram com fascínio o controle magistral do artista sobre o teclado, sobre os andamentos e sobre os expressivos silêncios entremeados ao seu distinto som. E não deixem de voltar a ele, pois Solomon – parafraseando aquilo que os portenhos dizem sobre o canto de Gardel – cada dia toca melhor.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sonata para piano em Lá maior, Op. 101
Composta em 1816
Publicada em 1817
Dedicada à baronesa Dorothea Ertmann
1 – Etwas lebhaft, und mit der innigsten Empfindung. Allegretto, ma non troppo
2 – Lebhaft, marschmäßig. Vivace alla marcia
3 – Langsam und sehnsuchtsvoll. Adagio, ma non troppo, con affetto
4 – Geschwind, doch nicht zu sehr, und mit Entschlossenheit. Allegro
Grande Sonata para piano em Si bemol maior, Op. 106, “Hammerklavier”
Composta entre 1817-18
Publicada em 1819
Dedicada ao arquiduque Rudolph da Áustria
7 – Allegro
8 – Scherzo: Assai vivace
9 – Adagio sostenuto
10 – Introduzione: Largo – Allegro – Fuga: Allegro risoluto
Sonata para piano em Mi menor, Op. 90
Composta em 1814
Publicada em 1815
Dedicada ao príncipe Moritz von Lichnowsky
1 – Mit Lebhaftigkeit und durchaus mit Empfindung und Ausdruck
2 – Nicht zu geschwind und sehr singbar vorgetragen
Sonata para piano em Mi maior, Op. 109
Composta em 1820
Publicada em 1821
Dedicada a Maximiliane Brentano
3 – Vivace ma non troppo – Adagio espressivo
4 – Prestissimo
5 – Andante molto cantabile ed espressivo – Variazione I: Molto espressivo – Variazione II: Leggermente – Variazione III: Allegro vivace – Variazione IV: Un poco meno andante – Variazione V: Allegro ma non troppo – Variazione VI: Tempo I del tema
Sonata para piano em Lá bemol maior, Op. 110
Composta em 1821
Publicada em 1822
6 – Moderato cantabile – Molto espressivo
7 – Allegro molto
8 – Adagio, ma non troppo – Arioso – Fuga: Allegro ma non troppo – L’istesso tempo di arioso – L’istesso tempo della Fuga poi a poi di nuovo vivente
Sonata para piano em Dó menor, Op. 111
Composta em 1821-22
Publicada em 1823
Dedicada ao arquiduque Rudolph da Áustria
9 – Maestoso – Allegro con brio ed appassionato
10 – Arietta – Adagio molto semplice e cantabile
Solomon, piano


Vassily
As três últimas sonatas para piano de Beethoven, pináculos da literatura para o instrumento, foram inspiradas pela mesma costumeira musa de outras tantas obras suas: a Pindaíba.



Faixa-bônus: o movimento final da Hammerklavier,
Pedimos vênia hoje ao grande homenageado do ano e à sua mastodôntica Grande Sonata para o Piano de Martelos – que voltará, com muita gala, amanhã – para focarmos numa sua maiúscula intérprete.
As cinco sonatas para violoncelo e piano de Beethoven repartem-se bem ao longo de sua trajetória criativa. As 

Com os primeiros compassos da maravilhosa sonata Op. 101, Beethoven anuncia sua última e visionária fase criativa, marcada por obras expansivas, duma sofisticação sem precedentes, e que transcendiam quaisquer dos já rotos limites que o compositor redefinira para as formas musicais, associadas a um inovador uso do contraponto e, especificamente, das formas fugais.
Sir Thomas Sean Connery deixou-nos no finalzinho do mês passado, e, tão logo soube da má notícia, lembrei de trazer-lhes este pequenino disco.
A coleção de raridades da edição completa (sic) de Beethoven pela Deutsche Grammophon Gesellschaft encerra com uma série de fugas escritas em vários momentos da vida de Ludwig, mormente do período em que se dedicou ao estudo da obra de J. S. Bach e de Händel, cujas fugas copiou em seus cadernos e muitas das quais transcreveu para piano e para quarteto de cordas. Como arremate, algumas obras do apêndice (Anhang, Anh.) do catálogo Kinsky-Halm, que são consideradas de atribuição duvidosa ou decididamente espúrias. E é com elas que anuncio aos completistas que, sim, sua frustração está liberada: nenhuma das ditas “edições completas” de Beethoven lançadas para comemorar o ducentésimo quinquagésimo aniversário do moço cumpriram o que prometeram, e não tenho dúvidas de que os SACs da DG, da Naxos e da Warner devem estar repletos de reclamações espumantes daqueles que não ouviram aquele punhado de notas que ele anotou num papel de pão para o arquiduque Rudolph e acabou esquecendo no banheiro duma das diversas espeluncas em que ele costumava encher as guampas. A vós outros, furiosos, fica a afável sugestão de aplacarem a ira e cuidarem da carcaça, porque, afinal, se continuarem assim enfezados, dificilmente chegarão ao tricentenário de Ludwig, em 2070 (isso, claro, se houver mundo até lá).

Ludwig, versão “DO CABELO ATÉ A SOBRANCELHA


“A Obra Completa para Órfica” é o título mais sensacionalista em todo meu duvidoso histórico aqui no PQP Bach, uma esdrúxula dourada de pílula que entrará para a história do blog, uma vez que tudo o que Ludwig escreveu para órfica se resume a duas diminutas peças (WoO 51), que doidivanas como eu volta e meia chamam “sonatina para piano”, supondo que houvesse um terceiro movimento, hoje perdido. Balela pura: nunca foram assim chamadas por Beethoven, que as pretendeu como peças separadas, e muito menos compostas para o piano. O título foi, sim, uma invenção de seu primeiro editor, a fim de que ela apetecesse mais aos pianistas.
Foto: 
A gravação de hoje baterá alguns recordes.
Beethoven odiava guerras, máquinas de guerra, soldados, generais e, particularmente, canhões – que, temia ele, detonariam o que ainda lhe restava da tão surrada audição. Durante o primeiro bombardeio de Viena por Napoleão, ele escondeu-se num porão, cobrindo os ouvidos com travesseiros, enquanto as vidraças trincavam e o reboco caía das paredes. Depois, escreveria:
Se cada segundo de Beethoven importa, então esta gravação poderia importar-lhes muito, por conter… 56 segundos inéditos da obra do mestre. Infelizmente, creio que este disco do excelente pianista brasileiro Sergio Gallo só deverá interessar aos completistas que, a essa altura, já devem estar com um olho aqui no blog, e o outro na lista de obras de Ludwig, na qual as vão riscando uma a uma e já imaginando se conseguiremos publicá-las todas.
Já lhes contamos anteriormente que, em 1793, Haydn escreveu a Maximilian Franz, Eleitor de Colônia e empregador de Beethoven, dando conta dos progressos de seu aluno renano em Viena. Essa era, claro, uma necessária prestação de contas ante o investimento que o Eleitor fizera ao enviar o rapaz para a capital musical da Europa e pagar-lhe estudos com o maior compositor vivo:
Concerto em Fá maior para oboé e orquestra, Hess 12
Concerto para oboé e orquestra no. 1 em Ré menor
Quase todas obras orquestrais publicadas por Beethoven durante a vida também o foram em transcrições para piano, muitas vezes não autorizadas, com uma rapidez proporcional à do sucesso na estreia. Poucas dessas transcrições foram preparadas pelo próprio Beethoven, e é uma delas – a da música para o balé Die Geschöpfe des Prometheus, que a companhia de Salvatore Viganò apresentou em Viena em 1801 – que eu lhes trago hoje.
Canções polifônicas em italiano sobre textos de Pietro Metastasio, WoO 99
Canções polifônicas em italiano sobre textos de Pietro Metastasio, WoO 99
O trabalho cotidiano de erguer o memorial pequepiano ao jubileu de Beethoven quase nos faz esquecer duma importante efeméride: o centenário da morte de Alberto Nepomuceno, notável compositor cearense, amplamente reconhecido como pai do nacionalismo musical brasileiro.

1 – Languisco e moro, Hess 229
1 – Lob auf den dicken Schuppanzigh, WoO 100
Um Erlkönig de Beethoven?
Não é todo dia que uma edição alegadamente integral faz a alegria de um completista. Se você for um deles, e seu objeto de obsessão são os lieder de Beethoven, seu dia chegou (ou quase, como veremos mais adiante).
Seis canções sobre poemas de Christian Fürchtegott Gellert, Op. 48
Mencionamos 
A inauguração do novo teatro alemão na cidade de Pest (ainda não unificada com sua vizinha Buda, que do outro lado do Danúbio era então capital da Hungria) trouxe, em 1811, duas mui bem-vindas encomendas a Beethoven.
Richard Georg STRAUSS (1864-1949)
Tudo em família.
Romance cantabile em Mi menor, para piano, flauta e fagote, com acompanhamento de dois oboés e orquestra de cordas, WoO 209 (Hess 13)
O ótimo pianista e regente