Para arrematar a minissérie “Leonore/Fidelio” dentro dessa travessia a que nos propusemos da integral beethoveniana, abordaremos brevemente as aberturas que Ludwig compôs para o que deveria ter sido sua única ópera, mas que lhe deu o trabalho de várias e, nas suas próprias palavras, “uma coroa de mártir”.
A abertura das óperas, no ínicio do século XIX, buscava estabelecer, enquanto a plateia se aquietava, a devida atmosfera sonora para o que viria após o desfraldar das cortinas. Embora algumas aberturas não citem explicitamente temas da ópera – das quais aquela que Mozart deu para “Le Nozze di Figaro” é um dos mais maravilhosos exemplos, evocativa que é da comédia bufa que a ela se segue -, era bastante comum que os compositores citassem melodias para introduzir personagens ou evocar episódios significativos do enredo. Com tantas edições, podas e reformulações, é natural que Beethoven tenha mudado de ideia quanto à música que abriria “Leonore/Fidelio”. Assim, ele escreveu pelo menos cinco aberturas para sua complicada ópera – quis dar-lhe tantas aberturas quanto ela lhe deu úlceras, decerto -, das quais quatro sobreviveram: aquelas intituladas “Leonore” e numeradas de 1 a 3, e a abertura “Fidelio”.
Por muito tempo, pensou-se que a abertura Op. 138, publicada postumamente, fosse a primeira intenção do compositor para dar a partida em “Leonore”, e por isso ela ganhou o título de “Leonore no. 1”. Descobriu-se, no entanto, que embora tenha sido esboçada em 1804, um ano antes da fracassada estreia da ópera, ela só foi completada em 1808, dentro de planos enfim malogrados de apresentá-la em Praga. Assim como as três aberturas homônimas, ela cita o tema de Florestan na masmorra, antes da conclusão. Notória pelos crescendos quase rossinianos, ela parece entre todas a menos evocativa do restante da ópera – sinalizando, talvez, o desalento de Beethoven para com sua malfadada criatura.
A abertura seguinte, intitulada “Leonore no. 2”, foi aquela usada na fracassada estreia de 1805, ante uma plateia repleta de invasores franceses que entendiam tchongas de alemão. Logo no início, ouve-se um soturno tema em escala descendente, a representar a descida de Florestan à sua horrenda masmorra. Há uma evocação do casal de protagonistas, a citação à ária de Florestan, e um toque de trompete que prenuncia aquele outro, tão crucial para a trama, no último ato dela.
“Leonore no. 3”, a mais desenvolvida delas, foi escrita para o relançamento da muito mutilada “Leonore” em 1806. Elaborada, altamente dramática e muito complexa, é uma obra-prima que se sustenta sozinha, como se abertura de concerto fosse, ao feitio da “Coriolan”, composta no ano seguinte. Seu largo escopo e portentosa realização, no entanto, acabam por eclipsar o singelo início do primeiro ato, que, com os arrulhos e resmungos do triângulo amoroso entre Leonore, Marzelline e Jaquino, acaba soando anticlimático. Com o intuito de dar alguma finalidade dramática a essa grande música, Gustav Mahler iniciou, como já mencionamos anteriormente, a tradição de executar a “Leonore no. 3” como prelúdio para a cena final de “Fidelio”, a fim de permitir ao público algum repouso da trama enquanto a peonada faz as mudanças necessárias no cenário.
Por fim, a abertura da versão definitiva da ópera, chamada tão só “Fidelio” e ouvida junto com a obra toda em 1814, não tem qualquer relação temática com ela. Com os franceses expulsos e os vienenses novamente enchendo as galerias do teatro, celebrava-se a derrocada de Napoleão e, com ela, os novos ventos de libertação. A concisão da forma e a impetuosidade são bem característicos de um Beethoven mais velho, talvez já sem muita paciência para debruçar-se mais sobre sua conturbada criatura operística. Serve bem como introdução para a derradeira versão da obra, que é mais uma celebração do triunfo de Leonore que o melodrama original, e, talvez por isso mesmo, seja a abertura que menos apelo tenha numa audição em separado.
Já lhes apresentei essas quatro obras, que aqui vão em ordem cronológica, na muito recomendável versão dos filarmônicos de Viena sob Claudio Abbado. Ainda assim, achei interessante trazê-las de novo, depois de tantas gravações de “Leonore/Fidelio”, para que vocês as apreciem à luz das reminiscências da ópera e as julguem quanto a seus méritos para com ela. Tenho certeza de que a orquestra da Tonhalle de Zürich e o excelente David Zinman saberão granjear a atenção dos leitores-ouvintes para esse desfile sonoro das quatro irmãs tão próximas quanto diferentes, e assim podermos cerrar as cortinas sobre aquela que, entre todas crias de Beethoven, foi a que mais lhe trouxe amarguras.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
1 – Abertura “Leonore no. 2”, Op. 72a
2 – Abertura “Leonore no. 3”, Op. 72b
3 – Abertura “Leonore no. 1”, Op. 138
4 – Abertura “Fidelio”, Op. 72
Tonhalle Orchester Zürich
David Zinman, regência
Vassily
Penso, às vezes, em como deve ter sido angustiante a vida de Beethoven, pois certamente ele sabia que era o Beethoven.
Muito obrigado, Vassily, por compartilhar.