Mais duas obras corais de Schumann resgatadas das trevas.
A primeira é a missa, obra curiosa vinda dum compositor nada devoto e ademais sem qualquer interesse pela música sacra. Composta dois anos antes do surto que o levaria à tentativa de suicídio no Reno e a internação no hospício, teve seus dois primeiros movimentos estreados juntamente com a sinfonia no. 4. Schumann jamais a escutaria completa, e a primeira audição integral aconteceria em Aachen, cinco anos depois de sua morte, com algum sucesso e – talvez seu maior triunfo – levando Clara a mudar seus planos de deixá-la inédita para sempre. Imagino o quão despojada ela deve ter soado para ouvidos acostumados a retumbâncias como as da Missa Solemnis de Beethoven ou mesmo da Grande Missa de Mozart, que não devem ter percebido que sua inspiração jazesse num passado mais remoto, nas missas de Palestrina, cujas partituras corais Robert adorava e ensaiava com frequência em Leipzig e Dresden. Alternando partes entusiasmantes, sobretudo o Kyrie e o Agnus Dei, com outras meramente formulaicas, a missa de Schumann chama também a atenção pelas diminutas partes atribuídas aos solistas que pouco abrem suas bocas. A exceção é o Offertorium – uma elaborada ária para soprano com acompanhamento de órgão e violoncelo, que já ouvimos aqui e foi adicionada a posteriori, provavelmente com alguma cantora específica em mente. A gravação dessa raridade, feita ao vivo em 1977 na Philharmonie da então Berlim Ocidental, conta com a soprano nipo-alemã Mitsuko Shirai, que recentemente vencera um concurso em Zwickau, cidade natal do compositor, e a condução magistral de Wolfgang Sawallisch, que ajuda a manter o interesse mesmo nos momentos menos inspirados e faz justiça às belezas da desgraçada obra.
Na mesma caixa da EMI – conhecida pelos combos-bastantões com obras sem-cerimoniosamente atrolhadas em dois CDs – ainda estavam, além da gravação de Der Rose Pilgerfahrt com Rafael Frühbeck, que já lhes alcancei ontem, também a Missa de Réquiem, Op. 148, e o Requiem für Mignon, que já ouvimos com Gardiner. Este último estava incongruentemente colocado no final do disco da gravação com Frühbeck, como um poslúdio soturno à singela historieta da rosa que vira Rosa, de modo que resolvi trazê-lo para junto do outro Réquiem, não tanto pelo título em comum, pois as obras têm pouquíssimas semelhanças, e sim porque ambos estão aqui a cargo do mesmo intérprete.
Bernhard Klee faz uma leitura emocionante da missa dos mortos de Schumann, que estranhamente deixou de lado quaisquer tinturas apocalípticas e fortíssimos a esvurmarem enxofre, para oferecer-nos um curso intensivo de serena aceitação da morte. Nada há aqui da fúria dos réquiens de Verdi e Berlioz, nem dos ostinati e coros ameaçadores daquele de Mozart. Até a doce contraparte de Fauré parece tempestuosa em comparação com esta obra, composta na etérea, rara tonalidade de Ré bemol maior, que faz muito sentido para os pianistas, mas deve fazer todos coros que a encaram amaldiçoarem uma pobre tumba num cemitério de Bonn.
Além dum time de solistas com Nicolai Gedda e Dietrich Fischer-Dieskau, Klee conduz forças que nada seriam estranhas a Schumann. Os conjuntos de Düsseldorf – tanto sua orquestra sinfônica quanto o coro – têm suas raízes na mesma Musikverein cujo comando o compositor assumiu como mestre de capela (Kapellmeister), muito para seu desgosto. Além da instabilidade de seu humor e do que hoje confortavelmente se admite como incompetência com a batuta, havia seu pouco tino para funções oficiais, parca habilidade para lidar com questões burocráticas e nenhum cacoete para dar conta das complicadas interações sociais e políticas inerentes a um cargo dessa importância. Suas desavenças crônicas com os músicos e com seus superiores, que retribuíam o caos trazido pela escolha infeliz de seu Kapellmeister com hostilidade e troça, possivelmente contribuíram com alguns empurrõezinhos para com o desesperado gesto que o levaria à tentativa de morte ao atirar-se nas águas do Reno e à morte em vida no hospício. Num dos últimos cadernos de diários, um de seus poucos apontamentos acerca do Requiem tascava: “compõe-se um réquiem para si mesmo”. Assim, nada mais apropriado que esses conjuntos renanos ofereçam-lhe, com esta bela gravação, reparo e tributo.
Robert Alexander SCHUMANN (1810-1856)
Missa em Dó menor para solistas, coro e orquestra, Op. 148
1 – Kyrie
2 – Gloria
3 – Credo
4 – Offertorium: Tota pulchra es, Maria
5 – Sanctus
6 – Agnus Dei
Mitsuko Shirai, soprano
Peter Seiffert, tenor
Jan-Hendrik Rootering, baixo
Chor des Städtischen Musikvereins zu Düsseldorf
Berliner Philharmoniker
Wolfgang Sawallisch, regência
Requiem em Ré bemol maior para solistas, coro e orquestra, Op. 148
1 – Requiem Aeternam
2 – Te Decet Hymnus
3 – Dies Irae
4 – Liber Scriptus Proferetur
5 – Qui Mariam Absolvisti
6 – Domine Jesu Christe
7 – Hostias
8 – Sanctus
9 – Benedictus
Réquiem para Mignon, do “Wilhelm Meister” de Goethe, para solistas, coro e orquestra, Op. 98b
10 – No. 1: “Wen bringt ihr uns zur stillen Gesellschaft?” – No. 2: “Ach! Wie ungern brachten wir ihn her!” – No. 3: “Seht die mächtigen Flügel doch an!” – No. 4: “In euch Lebe die bildende Kraft” – No. 5: “Kinder! Kehret ins Leben zurück!” – No. 6: “Kinder! Eilet ins Leben hinan!”
Helen Donath, soprano
Doris Soffel, mezzo-soprano
Nicolai Gedda, tenor
Dietrich Fischer-Dieskau, barítono
Chor des Städtischen Musikvereins zu Düsseldorf
Düsseldorfer Symphoniker
Bernhard Klee, regência
Vassily
Maravilhosas postagens!!! Muito, muito obrigado! Aproveito a deixa para pedir que poste uma outra grande gravação de Klee: Cristo no horto das oliveiras de Beethoven, gravação maravilhosa da Deutsche Grammophon, von Franz Crass, Elisabeth Harwood e James King como Jesus!!! Muito obrigado!