O ucraniano Valentin Silvestrov compôs sonatas para piano (aqui) quando mais jovem. A partir mais ou menos de 1990, ele entrou em uma nova fase e escreveu mais de cem peças curtas para piano: entre bagatelas, valsas que não têm nada de dançante, postludiums, noturnos, intermezzos… São obras sérias. Reflexões carregadas. Miniaturas pianísticas, sim, mas não espere nada parecido com as leves bagatelas de Beethoven, as tranquilas canções sem palavras de Mendelssohn ou os risonhos tangos brasileiros de Nazareth.
E sejamos francos: a Deutsche Grammophon não teria lançado um disco inteiro dedicado ao piano de Silvestrov se não fosse a sangrenta guerra na Ucrânia, terra natal do compositor que, desde 2022, vive em Berlim. Eu preferiria viver em um mundo sem guerras. Eu preferiria viver em um mundo onde os esforços se concentrassem para acabar com as guerras ao invés das torcidas dignas de um Coliseu, com gente torcendo, sorridente, pelo time que bombardeia hospitais contra o time que derruba aviões civis.
Em todo caso, o mundo no qual vivemos é este: uma gravadora conservadora como a DG havia no máximo dado um espacinho para Silvestrov entrar comendo pelas beiradas em 2020, em um disco de Grimaud dedicado a Mozart. E antes, em 2018, Silvestrov aparecia com duas Bagatelas em um disco de gatinhos que também incluía uma valsa de Chopin, Gnossiennes de Satie e o Clair de lune de Debussy. Então, se para os executivos da DG, o velho Silvestrov é novidade da qual se pode extrair dinheiro, para Grimaud, Silvestrov é um interesse já há muitos anos. Confesso que agora vejo com mais simpatia a tal Helena que não é de Troia nem de novela da Globo. Achava ela, sei lá, uma dessas que tentam tocar mais rápido como em uma corrida de carros, mas realmente a Grimaud tem bastante originalidade ao escolher seu repertório, não está apenas aderindo a essa moda de tocar o compositor ucraniano. De fato, parece que as bagatelas neste álbum são as do disco de 2018, uma terceira entra aqui, parece inédita, não vi notas explicativas mas tudo bem, nos viramos sem elas. Lançado em 2022 – só em meio digital – a partir de material que a DG já tinha em seus arquivos, o disco de Grimaud tem menos de 32 minutos de música. Então, para não acharem que este blog está de pão-duragem, compartilho mais abaixo um disco mais antigo. E em 2023 Grimaud lançou mais um álbum pela DG, agora dedicado às canções de Silvestrov para piano e voz. Mas este álbum mais recente fica pra outro dia aqui no blog: para os curiosos, PQP já havia postado aqui uma gravação dessas canções pela gravadora ECM.
Hélène Grimaud plays Valentin Silvestrov (2022)
Bagatelles I-XIII
01. Bagatelle I
02. Bagatelle II
03. Bagatelle III
Two Dialogues with Postscript
04. I. Wedding Waltz
05. II. Postlude
06. III. Morning Serenade
07. The Messenger (For Piano Solo)
Hélène Grimaud – piano
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Como contraponto às curtas obras do período tardio de Silvestrov, o disco lançado em 2007 pela gravadora Koch com a primeira gravação de uma peça que já era muito elogiada pelos entendidos sobre a música de vanguarda do leste europeu: Drama (1971), para piano, violino e violoncelo. Como nas suas sonatas para piano da mesma década, também temos uma linguagem mais experimental. Demandando enorme virtuosismo dos músicos, Silvestrov investiu também em aspectos cênicos nessa obra: os músicos entravam e saíam do palco, algo do tipo, que evidentemente se perde na escuta do CD. A pianista usa técnicas expandidas ou estendidas, ou seja, ela encosta com as mãos nas cordas do piano e outras coisas do tipo, para além do uso das teclas. Como me falou uma vez o querido Ranulfus logo após assistirmos um recital com obras de H. Cowell para piano*, é impressionante o quanto essas sonoridades do piano expandido ainda chamam atenção por soarem inovadoras, embora as obras de Cowell datem dos anos 1920 e as de Silvestrov, dos anos 1970.
*Tratava-se da pianista Késia Decotê, utilizando o piano “bem fora da caixinha”
Como seu contemporâneo Schnittke, Silvestrov alternava nos anos 1970 entre radicalidade dissonante e momentos mais consonantes, além de citações e pastiche. Peter Quantrill escreveu mais um pouco sobre esta obra e vou pedir desculpas por não traduzir:
A Ukrainian, he is another eastern European Minimalist, though not especially ‘holy’; if he has gods, they are likely to be Webern and Mozart. The latter is remembered in the deep-frozen conventions of Post-Scriptum (composed in 1990), which here receives its second recording. […]
Silvestrov shares an elegiac tendency with his contemporaries Giya Kancheli and Arvo Pärt that can become maudlin. The ten-minute Epitaph for cello and piano is one of several works Silvestrov composed in memory of his wife Larissa, who died in 1999; perhaps there is a fresh desolation that scores over the more weightily pondered Requiem for Larissa, but I hazard that the phrases, at least as played by Yves Dharamraj, are too short-winded to carry lasting weight or impact.
Nevertheless, Silvestrov distinguishes himself with the sharpness of his ears and the freshness of his thinking. The loving adieus of his later music came about through an immersion in the Western avant garde, with Webern as the fountainhead, which unlike Pärt he has not so much disowned as refined. This makes the 45-minute, tripartite Drama for piano trio (1971) a vitally important work, all the more so in this its first recording. For all the prepared-piano sonorities, plucked glissandos and serial harmonies and procedures, the frequency and expressive richness of the gestures create a strong sense of continuity. Played with commendable dedication and a fine awareness of sense and poetry – as it is here – it compels attention.
1-3. Post Scriptum, for violin and piano (1990)
I. Largo 8:45
II. Andantino 3:46
III. Allegro vivace, con moto 2:44
4. Epitaph, for cello and piano (1999)
5-7. Drama (1971)
I. Sonata for violin and piano 18:35
II. Sonata for cello and piano 15:35
III. Trio for violin, cello and piano 10:12
Piano – Jenny Lin
Violin – Cornelius Dufallo
Cello – Yves Dharamraj
World premiere recording. Recorded June 2007 at Avatar Studios, New York
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Parabenizo o articulista pela iniciativa de dedicar esse artigo à obra de Silvestrov, formidável compositor ucraniano. Sinceramente, eu não sabia que Hélène Grimaud gravou um álbum exclusivamente consagrado a composições de Silvestrov. Que beleza.