Antonio Vivaldi (1678-1741): La Senna festeggiante (La Risonanza, Bonizzoni)

Vivaldi compunha como quem bebe água: são centenas de concertos, muitas óperas, obras sacras, além de muita coisa que se perdeu na noite dos anos. Neste disco, o conjunto La Risonanza – que também gravou todas as muitas cantatas italianas de Händel – apresenta uma serenata do padre veneziano que não rezava missas: mas não pensem que esse nome serenata significasse algo como canções amorosas, nada disso: veremos mais abaixo que se trata de uma obra homenageando grandes figuras poderosas em Veneza e na França.

J.S. Bach também compôs várias obras seculares para ocasiões especiais, hoje comumente chamadas cantatas embora, ao que parece, ele não usasse tanto o termo: entre as que não se perderam, temos a homenagem funeral à esposa de Augusto III, eleitor da Saxônia (BWV 198), várias cantatas para puxar o saco deste mesmo Augusto ou ainda o nascimento do filho deste… Uma cantata para um casamento que não se tem certeza de quem foi (BWV 202), uma outra para celebrar a nomeação do novo professor de Direito Romano da Universidade de Leipzig (BWV 207). Nesta última, ele pegou emprestados trechos do 1º Concerto de Brandenburgo: essa prática do autoplágio também era comum nas obras vocais de Vivaldi e nesta Senna festeggiante ele pegou emprestadas melodias de sua ópera Giustino (1724), além de enxertar uma passagem de Antonio Lotti (1667-1740) – seu contemporâneo, também veneziano – na Ouverture instrumental da segunda parte.

O libreto do disco defende essa prática, lembrando que esse tipo de música muitas vezes era encenada uma única vez e o compositor podia querer tirar uma ária ou passagem instrumental do esquecimento: “Vivaldi, como Handel, era cuidadoso e talentoso na arte dos empréstimos, preocupado não só em poupar seu tempo e esforço mas também em estender a vida de seus melhores trechos musicais.” E no caso dessa “Senna festeggiante”, o nome próprio faz referência a ele mesmo, o rio Sena que corta as cidades de Paris e Rouen. (“La Senna”, ou “La Seine” em francês, enquanto Roma é cortada por “il Tevere”: essa alternância entre masculinos e femininos mostra que esses nomes dos rios estão ancorados em tradições regionais muito mais antigas do que a razão fria e calculista dos dicionaristas.)

La Seine à Rouen – Claude Monet, 1872

A serenata, encenada em Veneza em 1726, foi provavelmente encomendada pelo embaixador francês naquela cidade e servia para puxar o saco de três homens célebres: o próprio embaixador, o Cardinal Ottoboni – membro da aristocracia veneziana e envolvido em assuntos diplomáticos com Paris e Roma – e finalmente, acima desses na hierarquia da época, o rei Louis XV, avô do outro Luís que teria a cabeça cortada bem depois. A história não tem o drama típico das óperas: com personagens mais ideais do que reais (a/o Sena, a Virtude e a Idade de Ouro), parece mais um diálogo de Platão, autor que, como se sabe, havia sido redescobrido entre os italianos desde o Renascimento.

Esse resumo do libreto aparece com mais detalhes nos trechos abaixo. Antes, mais um parêntese: Vivaldi provavelmente usava no dia a dia o dialeto do Vêneto, ainda vivo em muitas famílias locais. E para comunicações com diplomatas, estrangeiros etc. usava o italiano mais padrão, espécie de língua franca, usada também nas óperas e serenatas. Vamos às palavras de Michael Talbot no libreto do disco:

Três obras sobreviventes de Vivaldi pertencem a um interessante gênero vocal secular, muito cultivado no fim do século 17 e maior parte do 18, comumente conhecido como a serenata. A descrição alternativa desse tipo de obra como “cantata dramática” explica sua essência: uma obra vocal (logo, cantata) e dramática, nos termos da época, por se estruturar em um diálogo entre dois ou mais personagens nomeados.

O termo serenata deriva não de sera (noite), esta etimologia é um engano, o termo vem de sereno e reflete o fato de que essas obras era normalmente montadas não em teatros com cenários, mas em locais mais informais onde ou a plateia ou os músicos, ou todos eles, ficavam a céu aberto.

Serenatas costumava ser o ponto alto de elaboradas festas [nota do Pleyel: o termo italiano “festa” aparece no texto em inglês, o que é sintomático sobre a vida inglesa] comemorando algum evento significativo na vida de uma pessoa ou família importante, como um nascimento, aniversátio, casamento, visita ou tratado de paz. Serenatas costumavam ter cantores solistas e uma orquestra com cordas e continuo, às vezes aumentada com sopros; um coro separado era uma raridade. Aqui, Vivaldi emprega os três cantores nos poucos movimentos de “coro”. Seus enredos são conversas calmas entre as dramatis personae ao invés de uma sequência de eventos cheios de ação.

La Senna festeggiante é fruto da relação, de 1724 a 1729, entre Vivaldi e o embaixados francês em Veneza, Jacques-Vincent Languet, comte de Gergy. Os embaixadores costumavam, no dia 25 de agosto, fazer uma festa comemorativa do dia de São Luis [rei francês (1214-1270) canonizado por ter ido fazer guerra com muçulmanos em cruzadas]. Foi provavelmente em 1726 que Vivaldi compôs esta serenata: o ano pode ser estabelecido pelas características do papel usado no manuscrito,que foi copiado pelo pai do compositor, Giovanni Battista Vivaldi (com algumas inserções na letra de Antonio Vivaldi), mas também pelos padrões de empréstimos e relações entre a serenata e outras obras.

Menos de um ano antes, dia 12 de setembro de 1725, Vivaldi escrevera uma serenata menor, a duas vozes (RV 687) para celebrar o casamento de Louis XV com a princesa polonesa Maria Leszczynska. Em 1726 havia motivos para uma obra mais elaborada, homenageando a França além do monarca: a visita do Cardeal Pietro Ottoboni, protetor das artes e membro do patriciato veneziano, que atuava à época como represenante dos interesses franceses em Roma. Seu triunfal retorno em 1726 marcava a normalização das relações diplomáticas entre Veneza e França.

O libretto, por Lalli (parceiro frequente de Vivaldi) adota um esquema comum para serenatas da época: dois personagens alegóricos, L’Età dell’oro e La Virtù, caminham por uma paisagem triste em busca da felicidade perdida. Então, encontram La Senna, que promete a felicidade, e o clima fica mais alegre a partr daí. No segundo ato, se dirigem diretamente ao rei da França com elogios e orações.

Vivaldi insere, em alguns trechos, elementos musicais do estilo francês, que não aparecem em quase nenhuma de suas outras obras. Além de ritmos típicos que à época eram chamados “alla francese” nas partituras, há também inflexões harmônicas e melódicas tipicamente francesas sobratudo na Ouvertur (é como escreveu Giovanni Battista Vivaldi) que abre o segundo ato. Mas, mesmo com esses detalhes, a maior parte da obra é de estilo sobretudo italiano.

Na orquestração, temos o estilo de escrita para cordas típico de Vivaldi. Oboés e flautas doces aparecem como strumenti di rinforzo em apenas alguns movimentos, ficando calados na maior parte deles. Com exceção das suas óperas, La Senna festeggiante é a mais ambiciosa obra secular de Vivaldi a ter sobrevivido, um equivalente do que é, na obra sacra, o oratório Juditha triumphans.

As encomendas para o embaixador Languet não pararam aí: em 1727 ele escreveu uma serenata e um Te Deum para marcar o nascimento de duas princesas reais. Mas logo depois o compositor viajou para a Áustria e Boêmia e as encomendas do embaixador iriam para Albinoni. Quando voltou a Veneza, Languet não estava mais por lá. Então La Senna festeggiante é o principal testemunho da sua alta reputação na França após a publicação, em 1725, das Quattro stagioni.

Antonio Vivaldi (1678-1741):
La Senna festeggiante – Serenata a tre, RV 693, Venezia, 1726

Yetzabel Arias Fernández, soprano (l’Età dell’oro)
Martín Oro, alto (la Virtù)
Sergio Foresti, bass (la Senna)

La Risonanza:
Yanina Yacubsohn, Hélène Mourot, oboes
Isabel Lehmann, Thera de Clerck, recorders
Carlo Lazzaroni, Silvia Colli, Renata Spotti, Elena Telò, violins i
Mauro Lopes, Ulrike Slowik, Giacomo Trevisani, violins ii
Livia Baldi, Elena Confortini, violas
Caterina Dell’Agnello, Claudia Poz, cellos
Davide Nava, double bass
Fabio Bonizzoni, harpsichord & direction

Recorded in Saint Michel en Thiérache, France, 2011

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Teto da igreja San Luigi dei Francesi, em Roma (1756)

Pleyel

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