Uma dúvida: quais terão sido as obras de Beethoven que lhe renderam mais dinheiro em vida? Para responder a essa difícil questão, seria preciso converter entre as moedas de vários países da Europa, pois, assim como Haydn, Beethoven publicava suas partituras em várias cidades ao mesmo tempo, como uma forma de aumentar seus rendimentos.
Das obras gravadas por Brautigam neste CD, as Variações Diabelli op.120 foram publicadas em Viena, não sem tentativas de publicação em Londres (intermediadas por Ferdinand Ries, ex-aluno de Beethoven) e em Leipzig pela editora Peters, que existe até hoje. E as Variações sobre temas nacionais op.105 foram publicadas em Londres, durante uma pausa na composição das Variações Diabelli. Não poderiam ser mais diferentes, apesar de serem do mesmo período: as variações op. 105 são em estilo “agradável e não muito difícil” segundo o pedido do editor escocês, elas se baseiam sobretudo em temas populares escoceses, com algumas melodias de outras origens. Para aumentar as vendas, elas foram compostas para uma formação variável: piano e flauta ou violino ad libitum, o que significa que a flauta ou violino é opcional. E aqui, Brautigam toca sozinho em um pianoforte que é réplica de um instrumento de 1822 do austríaco Conrad Graf. Beethoven foi proprietário de um piano feito por Graf, já muito maior e mais potente do que aqueles em que compôs suas primeiras sonatas e concertos.
Já as variações Diabelli, como vocês já viram aqui e aqui, tiveram origem em uma valsa bastante simplória mas, após anos de labuta do compositor, se tornaram uma das obras mais complexas, sofisticadas, ousadas e longas do repertório para piano. Vou poupá-los de mais elogios a essas variações e voltar brevemente para a questão da grana, afinal, Beethoven não era um herdeiro como Mendelssohn nem um amante de mulher rica como Chopin, ele realmente precisava ganhar dinheiro com suas obras. Isso aparece nas histórias do biógrafo Schindler, que conhecia bem o homem, de quem foi secretário, mas também relatou algumas lendas pouco confiáveis. Schindler conta que Beethoven teria jogado no chão um romance de Walter Scott, gritando: “Este sujeito escreve para ganhar dinheiro”. Adorno e Horkheimer comentam que o Beethoven dos últimos anos fornece o exemplo mais grandioso da contradição entre mercado e autonomia na arte burguesa, ao compor música difícil e de pouco apelo comercial, ao mesmo tempo em que suas cartas revelam um negociante experiente: “Os que sucumbem à ideologia são exatamente os que ocultam a contradição, em vez de acolhê-la na consciência de sua própria produção, como Beethoven.” [1]
Essa contradição entre arte e mercadoria, diz Adorno, foi conscientemente vivida por Beethoven, e não jogada pra debaixo do tapete. Ele precisava de dinheiro para cuidar de seu sobrinho e precisava manter seu gosto por vinhos. Um exemplo desse Beethoven bem pé-no-chão aparece na sua correspondência com os editores de Mainz, cidade do oeste da Alemanha. Ao mesmo tempo em que discutia com os editores da família Schott sobre a publicação de algumas de suas obras mais sublimes – Nona Sinfonia, Missa Solemnis, Quarteto op. 127, todos foram publicados primeiro em Mainz – ele repetia em várias cartas o pedido de que lhe enviassem vinhos brancos, os únicos que seu médico permitia nos anos finais de sua longa doença.
Em 1º de março de 1827, por exemplo, ele escreveu: “Repito meu pedido anterior, relativo ao vinho do Reno ou Mosel. É infinitamente difícil conseguir algum aqui que seja genuíno e não adulterado, mesmo pelos maiores preços.” Poucos dias antes ele já tinha escrito: “Assim que tiver forças para tal, enviarei as marcações metronômicas de andamentos para a Missa [Solemnis], pois passarei por uma quarta operação neste período. Quanto antes, então, eu receber os vinhos do Reno ou Mosel, mais benefícios eles farão para minha presente condição”. Para outro amigo ele escrevia: “Eu posso beber Champagne… Primeiro o Dr. Malfatti permitia apenas Mosel [vinho da fronteira entre Alemanha, Luxemburgo e França] mas percebeu que não havia como obtê-lo aqui em Viena”. [2]
Voltando de vinhos para pianos: alguns preferirão Arrau, Brendel, Pollini ou Levit tocando as Diabelli em pianos modernos. Mas é inegável que a gravação de Brautigam, longe de ser apenas uma curiosidade (como as Diabelli soam em um pianoforte que imita aquele que Beethoven tinha em casa?), tem todas as características que não podem faltar nas Diabelli: o sarcasmo em relação ao tema saltitante, a seriedade do ‘último Beethoven’ e mesmo umas referências discretas às últimas sonatas, que Brautigam também gravou pela BIS.
Ludwig van Beethoven (1770-1827):
1-34. 33 Veränderungen über einen Walzer von Anton Diabelli, Op. 120 (1819–23) (48’26)
35-40. 6 National Airs with Variations, Op. 105 (1818–19) (18’18)
Ronald Brautigam – fortepiano after Conrad Graf, c. 1822
[1] Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, Cap. “A indústria cultural”.
[2] Alexander Wheelock Thayer, The Life of Ludwig van Beethoven.
Pleyel
Belo texto, Pleyel. Ouvirei com atenção o álbum compartilhado, assim que possível. Dialética do Esclarecimento, aparentemente hostil, é de uma beleza que assusta. Ou melhor, de um humanismo fundamental.