.: interlúdio :. Elina Duni

Atenção: este post pode levá-lo pra dentro da toca do coelho.

Fosse pressionada a apontar minha maior descoberta nesses anos afastada do PQP Bach, hesitaria pouco antes de apontar Elina Duni. Não apenas por seu estilo único de jazz contemporâneo, mas por ter me arrastado a uma jornada inesquecível e pela qual sou imensamente grata.

Elina nasceu na Albânia em 1981, e aos cinco de idade já estreava em cima de um palco. Mudou-se aos 11, levada pela mãe para a Suíça, fugindo da instabilidade pós-queda do regime comunista. Provinda de uma família artística, não encontrou obstáculos à decisão de estudar jazz, canto e composição. Depois de emprestar seus vocais para a banda de rock kosovar Retrovizorja em 2004, estreou propriamente em 2008, com o belíssimo Baresha, e estabeleceu seu quarteto a partir de 2010, com Lume Lume. Foi o suficiente para que fosse absorvida no elenco da prestigiosa ECM, para quem gravou quatro álbuns desde então.

Se deixou geograficamente a Albânia, não se livrou da paixão que tornou-se sua maior influência e estilo: as canções folclóricas dos Bálcãs. Em seus discos, Elina registra as músicas, muitas vezes anônimas e arraigadas na cultura local, e as traduz para a linguagem do jazz, incorporando elementos como o andamento “irregular” e as danças percussivas, e dando-lhes uma inefável sofisticação que jamais soa esnobe ou distante. Poderia ser uma ponte entre os mundos, mas seu talento não se basta: é também a correnteza desse rio imaginário que separa as Europas — a ocidental, rica e desenvolvida, e a oriental, combalida e de sofrências, mas cujos enclaves repletos de história recusam calar-se.

Elina canta em albanês, búlgaro, grego, romeno, francês; e essa é uma lista resumida. Em quarteto, com piano, baixo e bateria, em dupla com guitarra, ou solo com seu violão, vai construindo uma carreira brilhante, mas cujas peculiaridades — rítmicas, linguísticas — a mantêm um pouco abaixo dos radares. Prefiro assim. O underground faz bem à criatividade, e torna as descobertas ainda mais saborosas.

“Kaval Sviri”, a canção do vídeo acima, é um excelente exemplo do que Elina é capaz. Forte o suficiente para iniciar a canção com um scat de três minutos e meio, mas generosa com seus instrumentistas — o solo do pianista Colin Vallon é excepcional. Sua versão dessa canção tradicional búlgara paga tributo e revive com energia a inventividade e a tensão emocional dessas músicas, potencializando seus efeitos. Minha paixão me levou a cavar e decorar a letra da faixa; a descobrir que o kaval é uma flauta tradicional da região, junto à gaita de foles kaba gaida, e a gadulka, prima da rabeca. Me arremessou a investigar a música ethno búlgara; encontrar o trabalho dos musifolcloristas no pós-Segunda Guerra, que viajavam pelo interior recolhendo as canções e dando-lhes arranjos e memória; compreender o papel fundamental da Balkanton, gravadora estatal que registrava tais trabalhos; embasbacar com a vocalização conversada e rebelde dos corais típicos; decifrar blogs-repositórios cujo cirílico me confunde tanto quanto fascina; cair de quatro pelo alcance e pelas modulações de musas secretas como Olga Borisova e Kalinka Valcheva; descobrir novos grupos de jazz urbano que também valorizam a herança musical da região. (E nem vou começar a falar da Albânia, porque senão esse post não termina.) Há artistas envolventes, e há Elina, que não pede licença para provocar esses afetos e transtornar qualquer trajetória linear. Kaval sviri, mamo, gore dole. Gore dole, mamo, pod seloto. Ja shte ida, mamo, da go vidja. Da go vidya, mamo, da go chuja. Eu concordo: ouço o kaval sendo tocado na cidade, mamãe, e estou indo dançar.

Escolher um dos álbuns de Elina para compartilhar foi terrivelmente difícil, mas optei por Lume Lume por ser composto de 90% versões dos Bálcãs, e especialmente cativante. O encarte incluso no pacote informa as origens e reconta as letras — quase sempre pungentes e doloridas. Acredito desnecessário sugerir que, em caso de curiosidade e qualquer pequeno encantamento, se vá atrás de seus outros álbuns. Intimistas, de difícil tradução, mas de imediato carisma, provocam uma audição altamente gratificante — e cheia de pequenas surpresas e apaixonamentos. Ou, ocasionalmente, a tradução é fácil mesmo: antes do link, deixo vocês com essa versão cortante de Amália Rodrigues, registrada no disco solo Partir, de 2018.

Elina Duni Quartet – Lume Lume (2010). Aqui.

E se eu não for expulsa de vez do PQP por furar a fila de postagens e ainda cometer um duplo interlúdio, logo mais eu volto.

—Blue Dog

14 comments / Add your comment below

  1. Bluedog,
    Você voltou!
    Que alegria! Bem-vinda seja você, que retorna com beleza e ensinamento. Desconhecia a força de Elina Duna, então estou mais feliz porque aprendi e gostei. O trabalho dela me fez lembrar dos volteios que Meredith Monk faz…
    Que posso dizer senão “obrigado” e “fique conosco”, sem que você jamais tenha ido?
    Com toda a estima e admiração!
    Rameau

  2. Muito obrigado.
    Gostei mesmo muito dos conteúdos dos ficheiros que anexou à sua postagem. Contudo, o ficheiro para “Lume Lume”, infelizmente não consegui abrir.
    Amei a versão vídeo de “Partir”, originalmente cantado pela grande fadista minha patrícia, Amália Rodrigues. Lindo!!!
    Enfim, não se pode ter tudo, não é verdade? Mesmo o que é muito bom.
    Obrigado!
    HP

      1. To: Bluedog, com Amizade:
        Oh deuses, quanta generosidade! Agora, sim, consegui aceder a “Lume, Lume”.
        Como expressão da minha gratidão por tamanha gentileza e amabilidade suas, envio uma ligação com cinco temas de Amália com a seguinte “estória” ligada a cada uma das faixas:

        Em primeiro lugar, do álbum “Amália/Vinicius”, gravado em 19 de Dezembro de 1968, numa noite/madrugada em casa de Amália, em Lisboa, num serão com amigos intelectuais – célebres escritores e poetas portugueses, como Vinícius (David Mourão-Ferreira, Natália Correia, José Carlos Ary dos Santos…). Vinicius escreveu, para a ocasião, o fado que aqui canta pela primeira vez, intitulado “Saudades do Brasil em Portugal”; Amália interpreta, logo em seguida o mesmo fado: é de ir às lágrimas, com ambas as interpretações, mesmo…

        Do álbum “Com que Voz”, considerado o melhor de todos os muitos discos de Amália Rodrigues, a interpretação do poema “Meu Limão de Amargura” que começa com o verso “Meu Amor, Meu Amor”, de José Carlos Ary dos Santos, (o tal que na versão vídeo, de Elina Duni, que fez o favor de revelar-me, aparece como “Partir”.

        Do disco “Lágrima” (de 1983), um dos trabalhos de Amália Rodrigues já na fase final da sua carreira, dois temas fabulosos, poemas da própria Amália Rodrigues: “Lágrima” e “Grito”. De arrepiar!

        Finalmente e, apenas por curiosidade, Amália, com o tema “Naufrágio”, um poema, apenas sublime da vossa e nossa tão querida Poetisa, escritora e, Mulher maravilhosa, Cecília Meireles.

        (Espero que o também sempre tão generoso PQP me perdoe o desabusado de vir para esta página tão altíssima, falar de Fado (aliás, “Património Imaterial da Humanidade”, como está considerado pela UNESCO).

        Enfim, saudades do Brasil, em Portugal e de vossemecês todos, que não conheço (nem o Brasil, sequer), mas amo como irmãos, de quem aprendemos tanto, sempre!

        Agora, o link: https://mega.nz/folder/DW5BzKLS#_JvVkchggVvb-equJj_Jew

        Adeus!

        1. Horácio, obrigado pelas canções e pelas histórias! Sou apaixonada pelo fado, embora longe de ser uma expert. Me encanta e me emociona demais! Curto muito as contemporâneas, como Ana Moura (como não chorar com sua rendição a capella de “Lavava no rio lavava”?), Carminho (sempre magnífica!), Cuca Roseta, Gisela João, Joana Amendoeira, Deolinda… E carrego comigo o ensinamento de um dos meus fados favoritos de Amália: “os pecados têm vinte anos, os remorsos têm oitenta”. Já passei rapidamente pela lindissima e acolhedora Lisboa, e um dia também hei de ir a Viana!

          E porque sou atrevida, acho que o fado dialoga com nosso site, sim senhor. Qualquer hora dessas arrisco postar algo de Carlos Paredes. Acho que cairia muito bem!

          Grande abraço!

          1. Bluedog
            Muito obrigado.
            “Verdes Anos” e, outras fabulosas músicas de Carlos Paredes, para o belíssimo filme homónimo, do Realizador Paulo Rocha, de 1963, casaria muito bem, sim…
            É um clássico!
            Abraço terno e respeitoso.
            HP

          2. O underground faz bem à criatividade, e torna as descobertas ainda mais saborosas, i.e., ako mi e yabandzhiyche, shte go lyubya dor do zhivot.

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