Alessandro Scarlatti (1660-1725): Toccatas e Folia, na espineta oval de Cristofori

A estrela desse disco é o instrumento musical: a reconstrução da espineta oval criada por Bartolomeo Cristofori dez anos antes de começar a fabricar os ancestrais do piano moderno. A espineta é uma espécie de versão mais compacta do cravo e costuma ter um som mais leve, mas o instrumento de Cristofori tem algo da riqueza de tom do cravo, sendo um pouco como um cruzamento entre os dois.

O encarte do disco traz informações fascinantes sobre a relação dos Scarlatti pai e filho com Florença, cidade importante na carreira dos dois, embora tenham passado a maior parte de suas vidas em Nápoles, Roma (ambos) e Madrid (o filho). A família Medici começou com banqueiros que ficaram podres de ricos por volta de 1400. No período barroco, já eram Grão-Duques da Toscana e patrocinaram artistas como Alessandro Scarlatti e Händel. Porém, pelo jeito eles não mantinham compositores como mestres de capela ou outros cargos semelhantes, ao contrário dos reis em Paris, Madrid, e Berlim, dos duques em Weimar e Dresden… Usando palavras atuais – e, claro, tomando certa liberdade – podemos imaginar que os Medici, seguindo sua tradição de banqueiros, preferiam pagar seus artistas por projeto e depois mandá-los se virar, ao invés de mantê-los como funcionários estáveis por décadas… Sabe aquele patrão que não quer assinar a carteira? Isso para os artistas, porque o tratamento dado ao artesão Bartolomeo Cristofori (1655-1731) foi bem diferente. Em 1688 ele foi convidado pelo Príncipe Ferdinando de Medici para trabalhar para ele, construindo e restaurando cravos e espinetas e supervisionar o vai-e-vem de instrumentos entre os vários palácios dos Medici, posto que ocupou até a morte do príncipe (1713). Nesse período, a segurança financeira que ele tinha certamente contribuiu para que ele pudesse inventar o pianoforte. Como nos conta o encarte do disco, que traduzo aqui em parte, mas vale ser lido na íntegra:

Cristofori, nascido em Pádua (Padova), foi convidado a residir em Florença pelo Príncipe Ferdinando em 1688. Recebia um salário regular e foi admitido como um membro dos “virtuosi di camera” do Príncipe. Ali, Cristofori desenvolveu o pianoforte (descrito a partir de 1700) e inventou novas formas técnicas para outros instrumentos, experimentando com madeiras preciosas.

A espineta oval de 1690 é um instrumento notável por sua forma, pelas madeiras nobres e por sua inovação técnica. É o primeiro testemunho do gênio inventivo do homem. Ele construiu duas dessas espinetas para o Príncipe Ferdinando. Pela fatura mantida no arquivo dos Medici, sabemos que Cristofori calculou, para a espineta, o salário de dez meses de um ajudante, e que após calcular a soma de gastos com materiais, ele dobra o valor no final: “mia fattura“.

Desde 2001 a espineta oval de 1690 está à mostra no departamento de instrumentos musicais da Galleria dell’Academia de Florença. Nesses instrumentos, Cristofori combinou as vantagens do cravo – longas cordas de baixo e dois registros de oitavas – com a leveza da espineta, criando um instrumento esteticamente elegante e atraente.

O Príncipe Ferdinando de Medici tocava violino, cravo, cantava, e era um dos principais mecenas das artes de seu tempo. Ele manteve com Alessandro Scarlatti uma rica correspondência de cerca de 60 cartas conservadas em Florença. O primeiro contato foi em 1683, quando da produção de uma ópera de Scarlatti em Siena, montada depois em Florença em 1686. Até 1709, houve obras de A. Scarlatti (ópera, drama, oratório, comédias) em quase todas as temporadas musicais em Florença.

Foi em julho de 1702 que Alessandro Scarlatti chegou à cidade com seu filho Domenico, de 17 anos. Em agosto ele conduziu um moteto de sua autoria para o aniversário do Príncipe Ferdinando. Em setembro a sua ópera Flavia Cuniberto foi montada no Teatro Pratolino. Em outubro eles voltaram para Roma, sem conseguir obter o posto esperado na corte dos Medici. As cartas do compositor em 1702 fazem menções sutis a esse posto fixo que ele desejava. Em 1705, Alessandro escreveu ao príncipe elogiando as habilidades de seu filho, virtuoso cravista. Meses depois, Domenico Scarlatti visitou Florença, desta vez sem seu pai. Tudo indica ele também queria um posto fixo junto aos Medici e também ficou a ver navios. O máximo que Ferdinando de Medici lhe ofereceu foi uma carta de recomendação a um nobre de Veneza. Não se sabe os detalhes mas talvez tenha sido importante o carimbo de um Medici: Domenico viveu alguns anos em Veneza, voltando a Roma só em 1709.

É muito provável que em sua estadia de quatro meses em Florença os Scarlatti tenham visto e tocado na espineta oval de Cristofori. Nas décadas de 1720 e 30, Domenico Scarlatti chega a Portugal e Espanha e logo depois as cortes desses países encomendam pianofortes, o que atesta o papel de Domenico na difusão desse ainda raro instrumento. As toccatas de Alessandro combinam fragmentos da linguagem modal do renascimento italiano com modulações mais modernas. Elementos similares de improviso são encontrados nas composições de seu filho Domenico. E para quem gosta de obras de variações sobre um tema, é imperdível a “Toccata con Partite” de Scarlatti – em uma tradução literal: Toccata em várias Partes sobre a Folia de Espanha. Nas Partitas Corais de Bach, para órgão, a palavra partita mantém este significado de muitas partes variando um mesmo tema, embora nas Partitas para cravo, já seja outro o significado. Sobre a Folia de Espanha, que provavelmente teve origem no carnaval português, veja esta e esta postagem de PQP.

Alessandro Scarlatti (1660-1725):
1-2. Toccata in re (Toccata / Fuga)
3. Allegro in sol
4-5. Toccata in Do (Toccata / Fuga)
6-8. Toccata in sol (Arpeggio / Fuga / Corrente)
9-12. Toccata in mi (Toccata / Fuga / Allegro / Minuet)
13-14. Toccata in la (Largo – Allegro / Corrente Allegro)
15-17. Toccata in Sol (Toccata / Spirituoso / Presto)
18. Fuga in Sol
19-21. Toccata in re (Toccata / Fuga / Fuga)
22-24. Toccata in Re (Toccata / Un poco largo / Allegro)
25. Fuga in re
26-48. Toccata con Partite sulla Follia di Spagna (in re)

Ella Sevskaya – spinetta ovale / espineta oval / oval spinet (copy of Cristofori, 1690)

Obs: nos títulos das obras, letra minúscula (ex: re) significa tom menor e maiúscula (ex: Re) é tom maior.

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Cópia (2003) da espineta oval feita por Cristofori em 1690

Pleyel

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