Schubert
Winterreise
Desafio Revelado
Winterreise é uma viagem fadada à ruina e ao fracasso, um ciclo de 24 canções sobre coisas tristes, desoladoras, mas ainda hoje segue… Tentaremos entender um pouco este mistério.
Apesar da minha alta ascendência alsaciana, cresci cercado de culturas das mais mundanas, de farinhas de pau, feijões diversos e palmitos extraídos das matas vizinhas. Isto coloca uma questão das mais intrigantes: em que ponto desta vivência dolente e preguiçosa dei-me interessado e em pouquíssimo tempo obcecado e apaixonado pelas canções-arte, os chamados Lieder? Certamente o achado de um álbum duplo, velhíssimos LPs, selo Angel – de mavioso e seráfico logotipo – com Dietrich Fischer-Dieskau cantando o ciclo Die Schöne Müllerin, acompanhado ao piano pelo fiel Gerald Moore. E a atração para o vórtice foi completada com a descoberta do Winterreise, agora cantado pelo Hans Hotter, tendo mais uma vez ao teclado Gerald Moore.
Certamente o caso seria registrado nos anais da Sociedade Tapejarense de Antropologia, caso tal sociedade existisse: como pode um ser vivente que cresceu em um ambiente bucólico e semitropical, ter algum interesse, e quem poderia crer, paixão, por canções levadas em uma língua estranha, gutural, acompanhadas ao piano? Ainda que fosse uma violinha, haveria uma brecha ao entendimento… E se soubessem que a fiada de canções mais martelada na vitrolinha do ser em estudo tratava de uma série de desoladoras canções, que desfilam um completo desmantelamento psicológico do perturbado viajante, que atravessa as paragens nevadas iluminadas por muitos sóis? O tal personagem se debate entre a desilusão amorosa e encara uma solidão medonha e que encontra alívio apenas na companhia de cães e corvos e num final encontro com uma fantasmagórica figura?
Bem, eu diria que a atração pelo contrastante sempre foi forte na minha pessoa e o que parece reverso sempre tocou em mim uma tecla especial. Mas você precisará verificar por si mesmo: Há alguma razão para prosseguir canção após canção, ouvindo um rosário de tristezas e lamentações – quase todas em tom menor?
Caso você se dê uma chance, poderá descobrir a essência da arte de Franz Schubert – que se preparou por uma vida temperada de alegrias e sofrimentos vários – para compor o Winterreise.
Nestes dias eu me aproximo desta música intensa com alguma relutância e a ouço com parcimônia, pois que esta obra é uma daquelas que me é muito cara e, quando me pega, custa deixar-me para as outras coisas.
Desta vez ele pegou-me pela recomposição – ideia ou conceito – ainda não sei, feita pelo maestro e compositor, Hans Zender. Mas sobre isto, vocês precisarão esperar a próxima postagem.
Schubert iniciou a composição do Winterreise musicando em fevereiro de 1827 doze poemas de Wilhelm Müller, de quem ele já havia musicado o ciclo Die Schöne Müllerin. A vida já lhe havia imposto uma dose pesada de sofrimentos. Além da penúria econômica, ele sofria de sífilis, que de maneira ou outra o levaria a morte, no fim do ano seguinte. Naqueles dias a doença era incurável e causava sequelas vexatórias, além de dolorosas. O tom e tema dos poemas certamente despertaram a chama criativa mais intensa, mas a composição não foi fácil, como ele mesmo disse claramente. Nesta primeira fase da composição, Schubert lidou com as 12 primeiras canções do ciclo, sobre os poemas que encontrou publicados em um almanaque chamado ‘Urania für 1823’. A apresentação destes poemas no Urania é Wanderlieder von Wilhelm Müller – Die Winterreise. In 12 Liedern. Schubert achava que o ciclo estava completo. Esta etapa do ciclo começa com a maravilhosa Gute Nacht, que estabelece o teor e clima do ciclo todo, passa pela mais famosa do ciclo – Der Lindenbaum – e termina com a expressiva Einsamkeit – Solidão!
Mas Müller, que morreria em setembro de 1827, estendeu o ciclo acrescentando mais 12 poemas. Quando Schubert encontrou a versão do ciclo completo, publicada agora em um livro, se deu conta do problema: os novos poemas estavam entrelaçados com aqueles que ele já havia musicado. (Para detalhes sobre essas diferenças, veja aqui, nas excelentes notas escritas sobre o Winterreise pelo pianista Graham Johnson, responsável por um dos projetos mais completos sobre Lieder e Schubert, apresentado pela Hyperion). Schubert decidiu seguir musicando os novos poemas e os colocou como continuação dos que já havia composto, criando assim o seu ‘segundo volume’. Schubert adotou a mesma ordem que Müller, mas com uma significativa exceção. Na sua sequência, Schubert antecipou o penúltimo poema – Mut (Coragem) – para a antepenúltima posição, fazendo a troca com Die Nebensonnen – que vou chamar de ‘Três Sóis’. A inversão é providencial, uma vez que Mut é assim uma última tentativa de vencer a ruína e o fim. As frases ‘Klagen ist für Toren’ – Chorar é para Tolos – e ‘Will kein Gott auf Erden sein, sind wir selber Götter!’ – Se não podemos ter deuses na terra, seremos deuses nós mesmos, mostram um certo arroubo de coragem. Aí segue a canção dos três sóis, que faz menção a um fenômeno relativamente raro em que, devido a reflexão e refração de luz solar por pequenos cristais de gelo, tem-se a impressão que há três sóis suspensos no céu.
Neste ponto do ciclo, como diz um aristocrata amigo meu, na sua mais fleugmática e fluente maneira de colocar as coisas difíceis de se dizer, a saúde mental do nosso viajante de inverno já havia ido para as picas! (Pardon my French…) E a canção segue desolada, após os sóis se porem, o viajante desaparecerá na escuridão. Em alemão, ‘Im Dunkeln wird mir wohler sein’, é ainda mais escuro.
Fica assim a questão: como pode haver prazer em ouvir o ciclo todo após todas estas explicações? Você precisa tentar por si próprio e tirar suas próprias conclusões.
Antes que você prossiga para os downloads, deixarei algumas indicações a título de ‘aquilo que você não pode perder’:
– A primeira canção – Gute Nacht – dá o tom da obra toda e estabelece o sentido de despedida, num ciclo que oscila entre a desilusão amorosa, a solidão e a morte. Entendemos que há um amor que não frutificou, que desencadeou essa viagem mesmo no rigor do inverno. Boa Noite do título é menção ao que ele escreveu no portão da casa da amada ao partir.
– Der Lindenbaum é possivelmente a mais famosa canção do ciclo e é comum ouvi-la em recitais separada do ciclo. Mas não é uma canção que trata de alegria. Ela mistura as lembranças de momentos felizes passados junto à árvore do título, que chamamos tília, com a cruel situação vivida pelo viajante. Alguns comentários sobre esta canção falam até em suicídio.
– Frühlingstraum (Sonho de Primavera) e Die Post, que faz menção as trompas das Carruagens dos Correios, são duas canções em tom maior, mais animadas. Mas a animação apenas se refere às lembranças e só fazem tornar a realidade atual mais excruciante.
– Die Krähe (O Corvo) – Esta canção é terrível. O corvo o acompanha na viajem – uma imagem assustadora. Ele menciona que pelo menos há constância até a sepultura. O cara já está no bico do corvo…
– Mas, como naqueles bons romances ou filmes-cabeça, somos deixados a dar tratos a bola, com a última canção – Der Leiermann. Há imagens medievais que representam a morte como o homem do realejo, mas a canção final não deixa as coisas fáceis para conclusões. As muitas interpretações do desfecho do caminhante estão disponíveis por aí, mas a cada vez que ouço o ciclo, fico às voltas com novas possibilidades. Afinal, fica a pergunta que o viajante faz ao homem do realejo: Quando cantar minhas canções, você me acompanhará tocando seu realejo?
– As Gravações –
Há tantas gravações desta obra, como você pode observar nesta página aqui, que se faz necessária uma palavra sobre as escolhas feitas para esta postagem. Schubert escreveu a música para tenor, mas gravações com barítono ou baixo são até mais comuns. É claro, o mais famoso cantor de Lieder do qual temos notícias, Dietrich Fischer-Dieskau, gravou o ciclo inúmeras vezes e estabeleceu padrões altíssimos. Mas como já há uma postagem desse cantor no site, decidi escalar para esta postagem a gravação de Hans Hotter acompanhado pelo decano dos pianistas acompanhadores, Gerald Moore. Gosto muito desta gravação e creio que ela ainda pode oferecer muitas alegrias. Mas, como é uma gravação jurássica, escolhi outra gravação com voz de barítono, a gravação feita no âmbito do projeto de Graham Johnson – Integral dos Lieder de Schubert, no selo Hyperion. Acho que esta escolha presta uma devida homenagem a este excelente músico.
Para a voz de tenor, decidi trazer a gravação de Jonas Kaufmann, que talvez seja mais conhecido por suas atuações em óperas, mas também é um ótimo cantor de Lieder. Quase postei a gravação de Peter Schreier acompanhado por Sviatoslav Richter, mas basta um jurássico de cada vez.
Finalmente, como gosto de intrigar os leitores seguidores mais curiosos e detalhistas, tem aí uma gravação misteriosa para sua análise inquisidora. Posteriormente a identidade desta dupla de artistas será devidamente revelada.
Franz Schubert (1797 – 1828)
Winterreise, D 911
Com letras escritas por Wilhelm Müller (1794 – 1827)
- Gute Nacht (Boa Noite)
- Die Wetterfahne (O Catavento)
- Gefrorne Tränen (Lágrimas Congeladas)
- Erstarrung (Solidificação)
- Der Lindenbaum (A Tília)
- Wasserflut (Torrente de Água)
- Auf dem Flusse (Sob o Rio)
- Rückblick (Retrospectiva)
- Irrlicht (Fogo-fátuo)
- Rast (Descanso)
- Frülingstraum (Sonho de Primavera)
- Einsamkeit (Solidão)
- Die Post (O Correio)
- Der greise Kopf (A Cabeça Grisalha)
- Die Krähe (O Corvo)
- Letzte Hoffnung (Última Esperança)
- Im Dorfe (Na Aldeia)
- Der stürmische Morgen (A Manhã Tempestuosa)
- Täuschung (Engano)
- Der Wegweiser (O Sinal Indicador)
- Das Wirtshaus (A Estalagem)
- Mut (Coragem)
- Die Nebensonnen (Os Sóis Vizinhos)
- Der Leiermann (O Homem do Realejo)
Arquivo A
Hans Hotter, baixo-barítono
Gerald Moore, piano
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
FLAC | 157 MB
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MP3 | 320 KBPS | 157 MB
Arquivo B
Matthias Goerne, barítono
Graham Johnson, piano
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FLAC | 247 MB
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
MP3 | 320 KBPS | 182 MB
Arquivo C
Jonas Kaufmann, tenor
Helmut Deutsch, piano
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FLAC | 218 MB
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MP3 | 320 KBPS | 169 MB
Birgit Breidenbach
Gerda Ziethen-Hantich, piano
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FLAC | 204 MB
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MP3 | 320 KBPS | 152 MB
O futuro chegou…
Apareça lá na casa do Schober hoje e cantarei para você um ciclo de canções de arrepiar. Estou ansioso para saber o que você dirá delas. Elas me deram mais trabalho do que qualquer uma das minhas outras canções.
Vai deixar passar o convite do Franz?
Aproveite!
René Denon
Você não deve deixar de visitar:
Franz Schubert (1797-1828): Winterreise (com Dietrich Fischer-Dieskau)
Boa noite…. muito boa esta postagem. Sempre gostei do Winterreise, mas nunca havia recebido uma verdadeira aula sobre o tema. Tenho um conjunto de gravações com todos os registros vocais… contratenor, inclusive. Mas o que mais me agrada, realmente, é com barítono. Fiquei com uma curiosidade: o Compositor destinou a obra pra ser executada por alguém especificamente?
Estou em trânsito, vou conhecer o “arquivo misterioso” só na próxima semana.
Recomendo dois vídeos do Ian Bostridge – há duas gravações com diferença temporal de mais de 10 anos….
Mais uma vez e sempre, obrigado
Olá, João!
Eu também tenho uma certa preferência pela voz de barítono. Entendi que a composição original foi para tenor e que o próprio Schubert teria cantado (pelo menos a primeira metade) para seus amigos, imagino ele mesmo tocando o piano. Creio que ele era tenor. Mas o grande amigo dele, Johann Vogl, era barítono e certamente iniciou uma tradição de cantar o ciclo completo. Bom, não tenho tantos conhecimentos técnicos assim, mas não creio que tenha sido difícil adaptar de uma voz para a outra.
Fico feliz em saber que você gostou da postagem.
Abraços do
René
Curioso que sou, fui logo no arquivo misterioso. Reconheci de imediato. Ouvi meses atrás e fiquei absolutamente mesmerizado. Mas acho que seria inadequado fazer a revelação, deixar isso pra quem fez o post. Pra mim, Fischer-Dieskau é imbatível nesse repertório, mas há excelentes gravações com outros cantores. Gosto muito de Ian Bostridge (tenor) e Nathalie Stutzmann (contralto)
Olá, Lucca!
Obrigado por conter a revelação do arquivo misterioso. Esta brincadeira tem mais a intensão de despertar a curiosidade, fazer as pessoas refletirem sobre a música, do que realmente propor um desafio. De qualquer forma, eu também fiquei assim bastante impressionado com a gravação e achei que seria uma boa proposta para o mistério.
Você mencionou a Nathalie Stutzmann. Ótima escolha. Eu gosto da gravação da Brigitte Fassbaender acompanhada pelo Aribert Reinmann. Veja, não acho a voz dela bonita, comparada com a voz da Stutzmann, por exemplo, mas acho que ela é perspicaz, inteligente, dando ao ciclo uma visão muito especial.
Assim, a viagem invernal continua.
Abração do
René
Magnífica postagem, René. Maravilhoso e instrutivo texto. Este ciclo é um amor antigo, sempre o preferi com Kurt Moll e Cord Garben ao piano. Parabéns e muito obrigado!
Olá, Wellington!
Obrigado pela mensagem! Ela significa bastante para mim.
Forte abraço do
René
Quiénes son los intérpretes de la obra de Schubert, archivo misterioso planteado como un deafío? No pude resolverlo yo. Muchas gracias! Excelente blog! Felicitaciones!
Olá, Juan José!
Obrigado por sua mensagem!
Não esperava manter este ‘segredo’ por tanto tempo, mas outras coisas surgiram…
Assim que editar a postagem com a revelação, avisarei!
Forte abraços do
René
Olá, Juan!
O segredo foi revelado… Basta revisitar a postagem!
Forte abraço do
René
Bom Dia. Eu também ficaria muito interessado se você revelar os artistas da versão desafio para nós. Já estamos no dia 16/06/2021 e ainda não consegui descobri-los … Tire esse fardo de mim para que eu possa voltar a dormir uma noite … Muito obrigado desde já.
Olá, Javier!
Pode deixar de lado o chá de mulungu… seu sono estará de volta!
O segredo foi revelado!
Basta visitar a postagem!
Abraços do
René
Muito obrigado, depois de uma boa noite de sono.
Não conhecia nenhum dos artistas, mas é claro que tenho que continuar suas carreiras.
Chego atrasado, porém muito grato, nessa postagem.
Obrigado pelo texto, pelos arquivos e pelo trabalho de vocês.