Desde que comecei a planejar as postagens desta série, uma de minhas maiores preocupações era o que lhes escrever sobre a Quinta. Universalmente conhecida e aclamada, tantas vezes citada, parodiada e vilipendiada, figurinha fácil de qualquer discografia, programa de concerto e repertório, ela jamais deixou de calar fundo cá comigo. Ademais, foi a obra que virtualmente acendeu em mim a paixão pela Música, e lhe sou tão grato por isso que temia que qualquer tributo que lhe prestasse não lhe fosse chegar às solas do quanto lhe devo.
Nunca, nem nas interpretações menos inspiradas, ela deixou de me impressionar. Sempre tento ouvi-la como se fosse a primeira vez. Há, claro, aquelas interpretações que o logram sem que eu despenda qualquer esforço, como a legendária leitura de Carlos Kleiber, que me avassalou como aquela de Klemperer fez com meus ouvidos infantis. Há leituras novas, novíssimas, tão frescas que parecem uma nova estreia, entre as quais incluo aquela magistral de Andris Nelsons, com a qual o patrão PQP Bach inaugurou – e praticamente encerrou – o Ano Beethoven por aqui. Outras interpretações evocam ineditismo pela incrível estranheza – é o caso daquela de Boulez, que algum dia, talvez, trarei aqui.
Sempre tento nela encontrar frescor, e acho que sempre consigo. Quando volto a mim, já se passaram uma vez mais aqueles trinta e tantos minutos, e aquele portentoso Dó maior encerra a Quinta como se nada pudesse se seguir a ele: puro Beethoven.
Nesses devaneios, fico muitas vezes a imaginar como os contemporâneos de Ludwig a receberam – talvez não aqueles que quase congelaram no mastodôntico e mal ensaiado concerto em que ela estreou, mas os que a conheceram logo depois, com interpretações à altura de sua grandeza. Aí, me lembrei do então imensamente influente e multiúso E. T. A. Hoffmann.
Em ultrarromânticos e coloridos ensaios, Hoffmann espalhava ao mundo suas impressões sobre tudo e todos, inclusive as obras alheias. Na incapacidade de mais lhes dizer sobre essa obra-prima que me cala a capacidade de sobre ela discorrer, resolvi traduzir o famoso artigo de Hoffmann sobre a música instrumental de Beethoven, do qual ora lhes apresento a primeira parte. Não esperem dessa minha tradução bastante livre e confessamente incompetente o brilho bombástico do original em alemão – apenas coloquem-se no lugar de Hoffmann e imaginem um mundo em que a Quinta era uma retumbante novidade.
A MÚSICA INSTRUMENTAL DE BEETHOVEN
Ernst Theodor Amadeus Hoffmann
Quando falamos da Música como uma arte independente, não nos deveríamos restringir à música instrumental, que, desprezando todo auxílio, toda mescla com outra arte (a arte da Poesia), dá pura expressão à natureza específica da Música, reconhecível sozinha nesta forma? É a mais romântica de todas as artes – quase se pode dizer, a única genuinamente romântica -, pois seu único tema é o infinito. A lira de Orfeu abriu os portais de Orco – a Música revela ao homem um reino desconhecido, um mundo que não tem nada em comum com o mundo sensual externo que o cerca, um mundo em que ele deixa para trás todos os sentimentos definidos para se render a um anseio inexprimível.
Vocês já se deram conta dessa natureza específica, vocês, miseráveis compositores de música instrumental, vocês que se esforçaram laboriosamente para representar emoções definidas, até eventos definidos? Como já lhes ocorreu tratar, à moda das artes plásticas, a arte diametralmente oposta ao plástico? Seus amanheceres, suas tempestades, suas “Batailles des Trois Empereurs” e os demais, afinal, eram certamente aberrações bastante risíveis, e foram punidos como mereciam, por terem sido totalmente esquecidos.
No canto, em que a Poesia, por meio das palavras, sugere emoções definidas, o poder mágico da Música atua como o maravilhoso elixir dos sábios, algumas gotas do qual tornam qualquer bebida mais saborosa e mais nobre. Toda paixão – amor, ódio, raiva, desespero, e assim por diante, assim como a ópera nos dá – é coberta pela Música com o brilho púrpura do romantismo, e mesmo o que passamos na vida nos guia para fora da vida no reino do infinito.
Tão forte quanto isso é a magia da Música, e, com cada vez mais força, ela teve que quebrar cada cadeia que a vinculava a outra arte.
O fato de que compositores talentosos elevaram a música instrumental ao seu estado atual é devido, e disso podemos ter certeza, menos aos meios de expressão mais fáceis de se lidar (maior perfeição dos instrumentos, maior virtuosismo dos executantes) do que ao mais profundo, mais íntimo reconhecimento da natureza específica da Música.
Mozart e Haydn, os criadores de nossa atual música instrumental, foram os primeiros a nos mostrar a Arte em toda a sua glória; o homem que então olhou para ele com todo o seu amor e penetrou em seu ser mais profundo é – Beethoven! As composições instrumentais desses três mestres respiram um espírito romântico semelhante – isso se deve à sua íntima e similar compreensão da natureza específica da Arte; no caráter de suas composições, no entanto, há uma diferença acentuada.
Na escrita musical de Haydn, prevalece a expressão de uma personalidade serena e infantil. Suas sinfonias nos levam a vastos bosques verdes, a uma jovial, alegremente colorida trupe de felizes mortais. Jovens e donzelas passam flutuando numa dança circular; crianças rindo, espiando por trás das árvores, por trás das roseiras, jogam-se flores a brincar. Uma vida de amor, de felicidade antes do outono, de eterna juventude; sem tristeza, sem sofrimento, apenas uma doce melancolia que anseia pelo objeto amado que flutua ao longe, no brilho do pôr do sol, e que não se aproxima e nem desaparece – nem a noite cai enquanto está lá, pois é ele próprio o ocaso em que a colina e o vale rebrilham.
Mozart nos leva ao coração do reino espiritual. O medo nos leva a seu alcance, mas sem nos torturar, e de tal forma que é mais uma indicação do infinito. Amor e melancolia nos chamam com adoráveis vozes espirituais, a noite chega com um brilho púrpura brilhante, e com um anseio inexprimível seguimos aquelas figuras que, acenando-nos familiarmente de suas carreiras, voam pelas nuvens em eternas danças das esferas.
Assim, a música instrumental de Beethoven nos abre também o reino do monstruoso e do incomensurável. Clarões de luz ardente fulguram através da noite profunda deste reino, e nos damos conta de sombras gigantes que surgem em vaivém, guiando-nos para recônditos cada vez mais estreitos até que eles nos destruam – mas não a dor do anseio sem fim em que cada alegria que decolou com uma canção jubilosa afunda e é engolida, e é somente nessa dor, que consome amor, esperança e felicidade, mas não os destrói, que procura estourar nosso seio com uma consonância de muitas vozes, de todas as paixões que vivemos, encantados espectadores do sobrenatural!
O gosto romântico é raro, o talento romântico, ainda mais raro, e isso é sem dúvida o motivo pelo qual existem tão poucos que logram tanger a lira cujo som revela o maravilhoso reino do romântico.
Haydn compreende romanticamente o que é humano na vida humana; ele é mais comensurável, mais compreensível para a maioria.
Mozart pede antes o sobre-humano, o elemento maravilhoso que reside no ser interior.
A música de Beethoven põe em movimento a alavanca do medo, do temor, do horror, do sofrimento, e desperta exatamente esse anseio infinito que é a essência do romantismo. Ele é, assim, um compositor completamente romântico, e não é essa talvez a razão pela qual ele tem menos sucesso com a música vocal, que exclui o caráter de anseio indefinido, meramente representando emoções definidas pelas palavras como emoções experimentadas no reino do infinito?
A ralé musical é oprimida pelo poderoso gênio de Beethoven; procura em vão se opor a ele. Mas doutos críticos, olhando-os com um ar superior, asseguram-nos que podemos tomar por certa a palavra deles, como homens de grande intelecto e profunda compreensão, de que, embora dificilmente se possa negar que o excelente Beethoven tenha uma imaginação muito fértil e viva, ele não sabe como contê-la! Assim, dizem, ele não se dá mais o trabalho de selecionar ou moldar suas ideias, mas, seguindo o chamado método daimônico, ele exprime tudo exatamente como sua imaginação ardentemente ativa lhe dita. No entanto, como ficaria se é tão só a sua tíbia observação que a profunda continuidade interior de toda composição de Beethoven escapa? Se é sua culpa, somente, que você não entende a linguagem do mestre como a entendem os iniciados e que os portais do santuário mais profundo permanecem fechados para você?
A verdade é que, no que diz respeito ao domínio de si mesmo, Beethoven está em pé de igualdade com Haydn e Mozart e que, separando seu ego do reino interno da harmonia, ele o governa como um monarca absoluto. Em Shakespeare, nossos cavaleiros da régua estética muitas vezes lamentaram a absoluta falta de unidade e continuidade interiores, embora para aqueles que olham mais profundamente surja, saindo de um único broto, uma linda árvore, com folhas, flores e frutos; assim, com Beethoven, é somente após um escrutínio minucioso de sua música instrumental que se revela o elevado autocontrole, inseparável do verdadeiro gênio e nutrido pelo estudo da Arte.
Haveria alguma obra de Beethoven a confirmar tudo isso em mais alto grau do que sua sinfonia magnífica, indescritivelmente profunda, em Dó menor? Como essa maravilhosa composição, em um clímax que se eleva sem parar, arrasta o ouvinte a um avanço imperioso para o mundo espiritual do infinito!… Sem dúvida, o todo transcorre a muitos como uma engenhosa rapsódia, mas a alma de cada ouvinte atento é seguramente mexida, profunda e intimamente, por um sentimento que não é outro senão aquele anseio portentoso e indescritível, e até o acorde final – e, com efeito, mesmo nos momentos que se seguem – ele não terá poder para sair daquele maravilhoso reino espiritual, em que a dor e a alegria o envolvem na forma de som. A estrutura interna dos movimentos, sua execução, sua instrumentação, a maneira como eles se seguem um ao outro – tudo contribui para um único fim; acima de tudo, é a íntima inter-relação entre os temas que engendra aquela unidade que, sozinha, tem o poder de manter firmemente o ouvinte com um único humor. Às vezes, essa relação é clara para o ouvinte quando ele a ouve na conexão de dois movimentos ou a descobre no baixo fundamental que eles têm em comum; uma relação mais profunda, que não se revela dessa maneira, manifesta-se em outros momentos apenas da mente para a mente, e é precisamente essa relação que prevalece entre as seções dos dois Allegros e do Minueto e que proclama imperiosamente o autodomínio do gênio do mestre”
[Mal traduzido por Vassily Genrikhovich em junho de 2020]
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sinfonia no. 5 em Dó menor, Op. 67
Composta entre 1804-8
Publicada em 1809
Dedicada ao príncipe Lobkowitz e ao conde Andreas Razumovsky
1 – Allegro con brio
2 – Andante con moto
3 – Scherzo. Allegro
4 – Allegro
Wiener Philarmoniker
Wilhelm Furtwängler
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NBC Symphony Orchestra
Arturo Toscanini
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Chicago Symphony Orchestra
Fritz Reiner
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Berliner Philharmoniker
Herbert von Karajan
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Chicago Symphony Orchestra
Sir Georg Solti
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Sinfonieorchester des Norddeutschen Rundfunks
Günter Wand
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Koninklijk Concertgebouworkest
Bernard Haitink
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The Hanover Band
Roy Goodman
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Orchestre Révolutionnaire et Romantique
John Eliot Gardiner
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Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks
Mariss Jansons
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Gewandhausorchester Leipzig
Riccardo Chailly
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Berliner Philharmoniker
Sir Simon Rattle
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E já que estou terceirizando tudo nessa postagem, vou deixar com o brilhante Leonard Bernstein a responsabilidade de destrinchar o célebre primeiro movimento da Quinta nesse sensacional vídeo em que ele analisa os rascunhos da obra e, discutindo as escolhas feitas por Beethoven, tenta reconstruir seu processo criativo. O vídeo está em inglês, mas quem lê no idioma tem a opção das legendas automáticas (com algumas licenças poéticas). Mas mesmo quem não entende tchongas de inglês saboreará as vinhetas musicais que ilustram a longa lapidação da obra-prima.
Vassily
Vassily,
Qualquer um que aprecie música e, tendo o Português como língua materna, leia e seja capaz de traduzir do original em Alemão merece minha admiração.
(Só não escrevo “inveja” por temer parecer preguiçoso…😅)
P.S.: isto foi para dizer “obrigado” pela tradução do artigo de E.T.A. Hoffmann!…
Vassily,
Belíssima postagem. Eu tinha a tendência de achar que a genial musica do homem surgia da sua pena simplesmente por causa do seu gênio, de prima, sem escolhas, uma ou outra pequena correção… Deve ser por isso que ele se irritava com o barulho das rodas das carroças na rua abaixo.
Dificil dizer o que gostei mais : da musica, da tradução ou do Bernstein
Grato por mais esse post
Obrigado. Post pra ler todo dia de manhã.
Minha obra preferida do Mestre – como disse, mesmo um sem conta de vezes que a ouço, sempre tenho a impressão de primeira vez… Fiz, tempos atrás, esse vídeo de comparação de algumas interpretações… https://www.youtube.com/watch?v=5GMEKLigL7k
Vassily, o valor dessa postagem, bem como o do projeto em construção, é inestimável. Ao ler sua tradução, assaltaram-me diversas reflexões e lembranças. Embora aquela ideia altiva de que a obra de arte é inatingível, sendo por isso tudo que a rodeia ou a contextualiza mero jogo de palavra (assim um grande autor caracterizou a crítica), tenha certa força, esse tipo de reflexão é capaz de trazer alegria ao dia, de instigar. Obrigado.