Diferentemente da postagem anterior, com obras e performances eletrizantes, chego a um capítulo da obra do mestre renano que não me desperta muito entusiasmo. Suas peças para duo pianístico, que cabem todas num só disco, já foram postadas anteriormente no PQP Bach e mereceram, na ocasião, um meu comentário modorrento. Admito que talvez não esteja sendo justo com criações despretensiosas que não foram destinadas a causar estupor nos palcos, nas mãos de virtuoses, nem a estimular impulsos mecenáticos entre nobres endinheirados, e sim aos amadores em suas residências. Instrumentos de teclado eram crescentemente mais comuns nos lares, e a música para piano a quatro mãos – fosse ela original, ou arranjada para duo a partir de obras para conjuntos maiores – era um veículo importante de divulgação de composições naquela época em que o acesso a concertos ainda era mormente um privilégio e as gravações não estavam sequer na ficção científica, porque, talvez, nem ficção científica existisse.
A singela sonata Op. 6, uma das mais curtas entre as sonatas de Beethoven, com suas figurações simples que se dividem e repetem entre as quatro mãos, foi certamente dedicada ao estudo e à prática de conjunto. As simpáticas, despreocupadas Marchas, Op. 45, são de interesse um pouco maior, e ficam mesmo intrigantes quando se sabe que foram compostas em torno do período de desespero em Heiligenstadt, que culminou com o famoso testamento que algum dia abordaremos nesta série. Completam a gravação obras de fases contrastantes da carreira do compositor: aquela sobre um tema do Conde Waldstein (WoO 67), seu patrono em Bonn, datam, naturalmente, de seus últimos anos na cidade natal, e são interessantes pelas sugestões de colorido orquestral; as variações sobre sua canção “Ich denke dein” (WoO 74) foram dedicadas em Viena às condessas Therese e Josephine von Brunsvik, quase que certamente para o uso das moças (e, provavelmente, para impressioná-las); e a transcrição da Grande Fuga (Op. 134; originalmente o finale do quarteto de cordas, Op. 130, e editada em separado como Op. 133), que foi a última obra pianística que publicou. Muito me intrigam os motivos que levaram a este arranjo da mais radical e visionária das obras de Beethoven, recebida com reações que variavam entre a estranheza e as conjecturas de que o compositor enlouquecera, para um meio tão burguesmente doméstico como o do piano a quatro mãos. Enquanto o escutava, a preparar este texto, percebi pela primeira vez que a falta dos ataques furiosos às cordas, tão essenciais ao impacto da versão original, permitia uma percepção mais clara das vozes e da magistral transfiguração delas dentro do modo beethoveniano de tratar as leis da fuga. A obra futurística e iracunda para quarteto de cordas fica mais transparente e, voilà – 1 x 0 para você, velho Ludwig!
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sonata em Ré maior para piano a quatro mãos, Op. 6
1 – Allegro molto
2 – Rondo. Moderato
Três Marchas para piano a quatro mãos, Op. 45
3 – No. 1 em Dó maior
4 – No. 2 em Mi bemol maior
5 – No. 3 em Dó maior
Oito Variações em Dó maior para piano a quatro mãos sobre um tema do Conde Waldstein, WoO 67
6 – Thema. Andante con moto – Variationen I-VIII
Seis Variações em Ré maior sobre a canção “Ich denke Dein”, de Beethoven, WoO 74
7 – Thema. Variationen I-VI
Grande Fuga em Si bemol maior para piano a quatro mãos, Op. 134
8 – Overtura. Allegro – Fuga. Allegro – Meno mosso e moderato – Allegro – Allegro molto e con brio – Allegro molto e con brio
Jörg Demus e Norman Shetler, piano
Vassily
Para completar as obras de Beethoven, estas composições são indispensáveis e valiosas para estudar, muito obrigado!
Ludwig van Beethoven
Exaltou com a Música a Dignidade do Homem!
Já nos últimos anos da sua vida e tomado de profunda depressão, foi o compositor Robert Schumann aconselhado pelo seu médico a dar passeios a pé. Destarte, repetia o compositor, diariamente, o seu passeio preferido: ir até junto da estátua de Ludwig van Beethoven. De certo modo, todos os compositores que vieram após Beethoven realizaram peregrinação idêntica e, indubitavelmente, todos os que ousaram compor uma sinfonia devem ter reconhecido a sua dívida para com aquele sublime arquiteto da música em Viena que meditando, trabalhando, lutando, modelando, polindo, revendo uma vez e mais outra, conseguiu construir um edificio tão vasto que, pode bem dizer-se, tem abrigado toda a música desde a sua época até os nossos dias.
Quando, em 1800, a primeira sinfonia de Beethoven foi executada em público, não tinha ele ainda trinta anos. Transbordando de ambições, alegre e um tanto vaidoso tentava conquistar a cidade de Viena com o seu virtuosismo ao piano. E embora sentisse, dentro de si uma chama imensa de inspiração e de força continuava, para não ferir os convencionalismos sociais da época, a compor alegre música de câmara e a apresentar-se respeitavelmente vestido e com uma impecável camisa de renda. À sua volta reuniam-se alunos e admiradores dos melhores círculos de então.
Dentro de pouco tempo, porém, começaram a revelar-se, ao jovem autor, sinais alarmantes de surdez. Tentou, Beethoven, inicialmente ocultar o que considerava uma fraqueza, evitando, por isso, as reuniões sociais. Porém aos trinta e dois anos tornou-se-lhe de todo impossível continuar a dissimular e retirou-se para Heiligenstadt, um pequeno subúrbio de Viena. Sempre imoderado, tanto na alegria como na tristeza, Beethoven vazou, então a sua desgraça num longo documento chamado Testamento.
Contudo, foi precisamente nesta época que ele compôs a sua sublime Segunda Sinfonia. É talvez, cruel dizê-lo mas a surdêz de Beethoven terá sido uma verdadeira bênção para a música. Muitos compositores têm escrito belas sinfonias, mas as de Beethoven colocam-se por surpreendente razão própria, num plano especial, formando uma parte tão valiosa da nossa herança cultural como as peças de Shakespeare. A comparação não é forçada. Tal como em Shakespeare, a arte de Beethoven tudo abarcou. Tal como aquele, ora se mostrava afável, ora furioso.
A sua última doença agravou-se em grande parte por falta de cuidado e pela ignorância total dos assuntos de medicina. Num só mês ingeriu 75 frascos de remédio. Tinha a cama infestada de parasitas. Porém, até o último momento de vida quis sempre compor e propôs-se até dar forma definitiva a alguns esboços que já tinha para uma décima sinfonia.
Morreu durante um violento temporal no dia 26 de março de 1827 com a idade de 56 anos.
Assim foi, a traços largos, o famoso gênio da música.
——-manuel——-