Estreei aqui no PQP Bach com um relato bastante palavroso do meu primeiro contato com estas obras que amei imediatamente – muito embora, como bem apontaram os leitores-ouvintes, a gravação que o acompanhou não fosse lá grande coisa.
Pretendo, aos poucos, redimir-me e postar por aqui todas as gravações que tenho dessas preciosas suítes. Sim: todas, todinhas, com todos os intérpretes e em todos os arranjos que colecionei ao longo dos anos – o que, na justa medida desse amor incomensurável, é um senhor montão de coisas.
Se hoje dispomos de uma carta tão variada de gravações, e se todo violoncelista que se preza inclui as Suítes de Bach em seu repertório, nós o devemos a um cidadão chamado Pau Carles Salvador Casals i Defilló, catalão de nascimento, que ficou conhecido mundo afora como Pablo Casals.
Casals teve uma longa (96 anos!) e prolífica vida. Depois de estudar piano, violino e flauta, seu primeiro contato com o que deveria ser um violoncelo foi ao assistir um músico itinerante tocando um cabo de vassoura com cordas (!!). Depois de muito insistir com o pai, este lhe construiu um instrumento que tinha uma cabaça como caixa de ressonância (!!!). Foi só aos onze anos que viu um violoncelo de verdade, adquiriu um instrumento de criança e começou a estudá-lo a sério.
Aos treze anos, num sebo próximo ao porto de Barcelona, fez a descoberta mais importante de sua vida: uma surrada partitura das Suítes para violoncelo de Johann Sebastian Bach, até então largamente esquecidas e, se tanto, relegadas a meras peças de estudo. Casals passou os treze anos seguintes a estudá-las meticulosamente antes de criar a coragem de tocá-las em público pela primeira vez. Contrariamente ao costume da época, que era o de incluir em recitais apenas movimentos isolados das obras instrumentais de Bach, Casals fez questão de executar as Suítes integralmente, com todas as repetições indicadas pelo compositor. Ciente de que uma execução inteiramente satisfatória de tais obras geniais escapava à capacidade humana, o grande músico catalão relutou em gravá-las, e só o fez, finalmente, em 1936, quando já tinha sessenta anos.
Além da exigente carreira de solista e pedagogo, Casals ainda teve tempo de ser um ativo camerista (especialmente com o Trio Thibaud-Cortot-Casals), um ardente republicano, ferrenho opositor à ditadura de Francisco Franco, e compositor do Hino das Nações Unidas (com letra – vejam só – de W. H. Auden).
Do exílio voluntário, que prometera encerrar somente após a destituição de Franco, organizou um festival anual de música na cidade catalã de Prades/Prada de Conflent, cujos proventos destinou a um hospital para refugiados catalães espanhóis do regime fascista de Franco [moltes gràcies, David!]. Morreu em 1973, dois anos antes de Franco, e foi sepultado em Porto Rico, terra natal de sua mãe, onde vivera seus últimos anos.
Durante sua vida, Casals foi incensado como um músico de estirpe incomparável, acima de qualquer crítica. De fato, parece difícil criticar um cidadão tão talentoso e engajado, de vida tão longa e rica. No entanto, caem de tacape em cima destas gravações, acusando-as de mal articuladas, apressadas e, mesmo, bizarras. Com os ouvidos repletos de versões modernas, ainda mais aquelas em violoncelo barroco que costumam ser as minhas preferidas, meu primeiro veredito também não foi muito favorável. Durante um bom tempo pensei que a gravação de Casals fosse respeitada tão só pela reverência que bem cabia ao grande homem, como nome fundamental não só do instrumento como também da história de performance dessas obras que são o pináculo de seu repertório.
Pretendia, pois, postar esta versão também por reverência, interesse histórico e, dado seu pioneirismo, por achá-la adequada à abertura desta série. Ao escutá-la novamente, enquanto preparo esta postagem, eu me surpreendi ao apreciá-la. Por mais que o som de Casals não seja opulento, e em que pese a tecnologia de quase oitenta anos atrás, achei que a “abordagem rapsódica” alegada pelos críticos carrega também, entre evidentes deslizes, os frutos de muita musicalidade.
Infelizmente, o som deste álbum da EMI não tem a qualidade daquele lançado pela Naxos anos depois e que ouvi na FM Cultura de Dogville (nos tempos, claro, em que a emissora se prestava a radiodifundir algo de Bach). Se algum dia eu conseguir o álbum da Naxos, substituirei os links.
JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750)
SEIS SUÍTES PARA VIOLONCELO SOLO, BWV 1007-1012
CD 01
SUÍTE NO. 1 EM SOL MAIOR, BWV 1007
01 – Prélude
02 – Allemande
03 – Courante
04 – Sarabande
05 – Menuet I & II
06 – Gigue
SUÍTE NO. 2 EM RÉ MENOR, BWV 1008
07 – Prélude
08 – Allemande
09 – Courante
10 – Sarabande
11 – Menuet I & II
12 – Gigue
SUÍTE NO. 3 EM DÓ MAIOR, BWV 1009
13 – Prélude
14 – Allemande
15 – Courante
16 – Sarabande
17 – Bourrée I & II
18 – Gigue
CD 02
SUÍTE NO. 4 EM MI BEMOL MAIOR, BWV 1010
01 – Prélude
02 – Allemande
03 – Courante
04 – Sarabande
05 – Bourrée I & II
06 – Gigue
SUÍTE NO. 5 EM DÓ MENOR, BWV 1011
07 – Prélude
08 – Allemande
09 – Courante
10 – Sarabande
11 – Gavotte I & II
12 – Gigue
SUÍTE NO.6 EM RÉ MAIOR, BWV 1012
13 – Prélude
14 – Allemande
15 – Courante
16 – Sarabande
17 – Gavotte I & II
18 – Gigue
Pau CASALS, violoncelo
Gravado em 1936
Vassily Genrikhovich
Dá pra adiantar, mais ou menos, quantas versoes teremos nessa série? Conheco as versoes de Fournier, Casals, Ma, Rostropovich e Queyras. Queyras é meu favorito até agora. Nenhuma destas versoes foram executadas em instrumento de época, fato que deixa a minha expectativa ainda maior. Já estou esfregando as maos (ou os ouvidos) de antecipacao.
Na última vez que contei, eram sessenta e sete versões, incluindo transcrições para outros instrumentos – entre os quais flauta-doce, cravo, contrabaixo e viola – e algumas versões já publicadas no PQP cujos links desapareceram.
Pelos deuses, você tem sessenta e sete versões só das suítes para violoncelo de Bach? Tento imaginar o tamanho monstruoso que deve ser sua discoteca inteira!
Gràcies per tot el coneixement que ens has ofert sobre Pau Casals en aquest ‘post’, i també per tota la música que habitualment ens ofereixes a pqpbach. Una matització sobre el teu escrit “cujos proventos destinou a um hospital para refugiados catalães”: no, no van ser destinats a “catalans” sinó a tots els espanyols represaliats pels feixistes de Franco. I un apunt, durant molts, molts anys, Casals va interpretar, com a mètode d’aprenentatge/superació, cada dia una d’aquestes suites després d’esmorzar.
Obrigado por todo o conhecimento que você nos forneceu sobre Pau Casals neste post, e também por todas as músicas que você geralmente oferece ao pqpbach. Um esclarecimento sobre sua redação “…cujas fontes chegaram a um hospital para refugiados catalães”: não, eles não foram destinadas aos “catalães”, mas a todas aos espanhóis represáliados pelos fascistas de Franco. E um apunte, por muitos e muitos anos, Casals interpretou, como método de aprendizado/superação, uma dessas suítes diariamente após o café da manhã.
Benvolgut David, moltes gràcies pel teu missatge amable i sobretot pel teu aclariment, que s’ha incorporat al text. Torna-hi sovint!
Caros PQP BACH, Vassily e demais confrades musicais. Em primeiro lugar, meu Muito Obrigado pelo excelente trabalho de divulgação da boa música aqui no blog (um de meus favoritos).
E em segundo lugar – se me permitem – gostaria de pedir um re-up desta gravação do Pablo Casals. Esta semana ouvi, algumas vezes, a versão do Mischa Maisky (com quem tive o privilégio de conversar por poucos porém preciosos minutos na Sala São Paulo em 2016).
E isto me lembrou de que o mestre Casals detém a mais famosa interpretação destas 6 Suítes. Gostaria de poder apreciá-la também em alta qualidade (não a do YouTube).
Agradeço desde já pela gentileza se for possível. Abraços daqui de SP à toda a equipe pqpbach.ars.blog
— ZM
Prezado Zé Mário,
Grato pela mensagem tão gentil que acompanhou o seu pedido. Impossível não o atender imediatamente: as gravações, portanto, estão de novo disponíveis. Espero que as aprecie e retribuo o abraço, o que também faço em nome dos demais autores.
Vassily, muito bom dia. São 07:00 da manhã e me deparo com este “presente” maravilhoso! Muito obrigado, mesmo! Abraço,