Giuseppe Verdi (1813-1901): Otello

otello capaA ópera que ora compartilho com vocês é a minha preferida. Giuseppe Verdi (10 de outubro de 1813, Reconle Verdi, Itália – 27 de janeiro de 1901, Milão) estava no auge de seu poder dramático e criativo. Otello, ópera em quatro atos e libreto italiano de Arrigo Boito (1842 – 1918) que estreou na casa de ópera La Scala, em Milão, em 5 de fevereiro de 1887. Baseado na peça de William Shakespeare (1564 – 1616) – Otelo. Esta ópera foi o penúltimo trabalho de Verdi. O compositor tinha uma particular afeição pelas obras de Shakespeare. Ele o descreveu como “o grande pesquisador do coração humano” e escreveu: “Ele é um dos meus poetas muito especiais, e eu o tenho suas obras em minhas mãos desde a mais tenra juventude, e leio e releio continuamente”. Verdi já havia se aposentado após terminar Aida em 1871. Seu amigo e editor, Giulio Ricordi, tinha outras idéias. No verão de 1879, Ricordi (seu sobrenome ainda hoje encima diversas partituras onde muitos jovens artistas aprendem música), sua esposa, o maestro Franco Faccio (considerado o maior regente italiano na época) estavam jantando com Verdi e sua esposa Giuseppina. “Quase que por acaso – Ricordi recordaria mais tarde – conduzi a conversa para Shakespeare e Boito. Ao mencioniar Otelo, vi Verdi olhar para mim desconfiado mas interessado. Ele seguramente entendeu e seguramente reagiu. Eu acreditava que o momento estava maduro.” Foram estes nomes que Ricordi lançou cuidadosamente à mesa de conversa naquela noite – Otelo, uma peça que Verdi nunca havia considerado seriamente musicar, Arrigo Boito, conhecido por sua ópera Mefistofele e por vários libretos escritos para terceiros. Faccio levou Boito para visitar o compositor no dia seguinte; três dias mais tarde quando Boito voltou sozinho com um esboço do libreto de Otelo já pronto, Verdi disse simplesmente: “Agora escreve os versos. Eles serão úteis para mim, para você, ou para qualquer outro”.

Boito trabalhou incessantemente sobre o libreto, até que em novembro enviou parte dele ao compositor. Verdi reconhecia Boito como um homem de genuíno talento, e como a possibilidade de uma grande promessa. Giuseppina confidenciou que Verdi havia gostado do que encontrara no esboço de Boito, que seguiu as linhas-mestras de Verdi: “concisão, clareza, verdade, fidelidade ao original” para adaptar a peça à uma ópera. Mas ela também percebeu que ele colocara o libreto na cabeceira da cama, e por lá ficou adormecido por quatro anos. Antes de dar início ao trabalho propriamente dito, Verdi e Boito colaboraram na revisão de uma ópera antiga de Verdi, “Simon Boccanegra” – um teste para o trabalho conjunto. O resultado foi positivo. Em julho de 1881, oito meses após a estréia do novo Boccanegra, Boito fez sua primeira visita para encontrar-se pessoalmente com Verdi a fim de discutirem seu “Otello” (ou Iago, como era então chamado). Porém em 1882 Verdi voltou-se para uma revisão em grande escala do seu “Don Carlos” uma engenhosa maneira de desenferrujar azeitar as engrenagens antes de escrever a primeira nota de Otello. Corria o mês de março de 1884 quando Verdi finalmente começou. Fazia quinze anos que não escrevia uma ópera nova. Santa Agata, por tantos anos mergulhada na quietação do parque onde trinavam rouxinóis e o vento agitava as folhas do arvoredo, foi subitamente inundada pelas ondas sonoras, irrompendo do gabinete de estudo, arrancadas do antigo piano pelo ilustre ancião que perseguia a visão do seu sonho e revivia nas notas ardentes sensações de amor e tortura. Porém houveram alguns problemas que deixaram a conclusão da obra por um fio: um rumor de que Boito teria dito que ele mesmo gostaria de compor a música interrompeu a composição por oito meses até que a situação fosse contornada e Verdi voltasse a trabalhar em plena força. Em 5 de outubro de 1885 Verdi escreveu: “Acabei o quarto ato e volto a respirar novamente”. Mas ainda foram necessários alguns ajustes no texto e na música. Ai então Verdi gastaria mais um ano para concluir a orquestração. Ao longo de 1886 Verdi teve a idéia da entrada dramática de Otello, a famosa “Esultate” (CD 1 faixa 2) e em novembro concluiu a partitura, sendo a obra enviada para ser impressa no mês seguinte. Em 21 de dezembro de 1886, Boito escreveu: “O sonho tornou-se realidade”. A estréia no La Scala, em 5 de fevereiro de 1887, foi um triunfo. Estiveram presentes críticos de toda a Europa, que enviaram a suas redações matérias onde afirmavam que Verdi havia-se superado. Otello foi a primeira das obras de Verdi a atrair a atenção dos “wagnerianos” convictos (Verdi admirava Wagner, mas com reservas; conta-se que quando Verdi ouviu a apresentação de Tannhäuser em Viena em 1875, comentou: “Eu cochilei, mas os alemães também.”).

Sobre a história, Otello, é uma das mais comoventes tragédias shakespearianas. Por tratar de temas universais – como ciúme, traição, amor, inveja e racismo – na trama, Otelo é um general mouro a serviço do reino de Veneza, casado com Desdêmona, moça de pele clara e filha de um rico senador. Eles se uniram às escondidas e o genro só é aceito pelo sogro porque o casamento já está consumado. A obra de Shakespeare pode render ótimas discussões sobre aparência e realidade. A começar por Iago, um dos maiores vilões da literatura. Na peça, ele é chamado de honesto diversas vezes por diferentes personagens. Mas em sua essência é pérfido, maquiavélico e sem limites. Finge lealdade a Otello, apesar de odiá-lo. Isso porque o general promoveu o soldado Cássio ao cargo de tenente, preterindo-o. O fato despertou em Iago uma inveja devastadora e seu grande objetivo passa a ser a destruição de Otello. Movido por esse sentimento sombrio, ele tece intrigas que fazem o protagonista acreditar que sua esposa o trai com Cássio. Não há provas, apenas insinuações, que vão envolvendo o general, enlouquecendo-o aos poucos. Cego de ciúme, Otello mata Desdêmona e só depois descobre que ela era inocente. Então, cheio de culpa, ele se suicida.

No trabalho de Verdi e Boito a divisão ficou assim:

O primeiro ato de Otello evolui, de maneira ininterrupta, da vasta e aterrorizante tempestade que dá início à primeira página da partitura, à calma da noite, quando as estrelas começam a surgir no céu. A entrada de Otello, uma das mais famosas em todo o gênero lírico lança um breve raio de luz em meio a tempestade; ele canta apenas duas linhas, e recolhe-se em seguida para passar a noite em casa; mas sua presença permanece. Dois grandes conjuntos estão aqui perfeitamente integrados à ação: o coro do fogo da alegria, “Fuoco di gioia” (CD 1 faixa 4), e a canção de beber, quase inebriante em sua própria embriaguez. Cássio, após dois versos, gagueja, perde sua linha, e quase leva a música a uma interrupção. É mais uma vez a entrada de Otello, despertado de seu sono pela balbúrdia, que acalma a cena, deixando que ela progrida suavemente rumo ao dueto de amor que fecha o ato. Esta música primorosamente orquestrada para as cordas baixas, com encantadores toques dos sopros e profundos arpejos da harpa (CD 1 faixa 9). Por fim quando Dosdêmona e Otello se beijam, é a orquestra sozinha quem canta, com efeito indescritível .

Quando abre o segundo ato, surpreendemos Iago e Cássio em meio a uma conversa, e a sensação de estarmos espreitando só faz crescer quando Iago, deixado sozinho, profere seu “Credo”. Sabe-se que o texto de Boito para este número foi enviado a Verdi sem que este o houvesse solicitado, no período do único desentendimento realmente sério entre os dois, persuadiu o compositor a retomar sua pena. Uma música brutal e explosiva Verdi confere uma força aterrorizante do texto conseguindo uma dramaticidade verdadeiramente shakespeariana, uma das árias aonde Verdi mostra que é ainda um grande mestre da ópera aos 73 anos de idade (CD 1 faixa 12) considero uma das árias mais autênticas da ópera feitas para caracterizar o caráter do personagem. Desdêmona, em contraste, é caracterizada por um coro angelical das mulheres e crianças. Segue-se dois conjuntos de formas antigas que recebem um tratamento novo, são integrados à textura contínua das conversas de Otelo / Desdêmona e Iago / Emília, o quarteto integra brilhantemente ação e contemplação. No dueto que encerra o ato, Verdi lança mão de seus recursos mais dramáticos. Um primor. Diria um ato musicalmente e poeticamente perfeito.

O terceiro ato desnuda impiedosamente o relacionamento entre Otello e Desdêmona, tanto na intimidade quanto contra o amplo pano-de-fundo de uma última grande cena de massa. Verdi havia-se transformado em um formidável “pesquisador do coração humano”. O dueto que abre o terceiro ato explora meticulosamente regiões desse território emocional, com a precisão de uma lâmina, raramente atingida pela música. Otello, enunciado na mais aterradora calma, expõe a alma de um homem dilacerado. Depois disso, nada poderia cair de maneira mais cruel nos ouvidos do que o alegre”coup de théatre” de Iago com o lenço. Conduzido por sete vozes independentes sobre coro e orquestra enquanto a ação fica congelada eleva-se a novas alturas quando Otello, permanecendo mudo no epicentro da tempestade, explode subitamente a ira que vinha remoendo dentro dele, e lança a música em rumos audaciosos e inesperados. No final vemos Iago com o pé em cima de Otello (cena essa sugerida por Boito à Verdi para encerrar o ato)..

O último ato começa com a “Canção do Salgueiro” de Desdêmona cantada suavemente (CD 2 faixa 16), em um clima de calma glacial, perturbada uma vez pelo vento e depois por seu súbito desespero – um momento de marcante realismo emocional. A passagem súbita das cordas em surdina para a prece de Desdêmona, parece deixar o ambiente completamente sem ar (CD 2 faixa 18) (considero esta Ave Maria a mais comovente já composta para óperas, Verdi nos brinda com uma música magnífica, muito f…, e a Kiri nesta gravação arrebenta na interpretação). Otello entra sobre uma linha única nos contrabaixos – a própria voz do terror. Tão logo ele se inclina para beijar sua adormecida esposa, e a força plena da melodia de Verdi, desaba sobre ele, a tragédia desenrola-se rapidamente.

Boito_e_VerdiA difícil tarefa de trabalharem juntos em Otello aprofundou e solidificou o relacionamento entre Verdi e Boito. Quando deram início a “Falstaff, dois anos mais tarde, as tensões, os pequenos amuos e as disputas mais ferrenhas já eram coisa superada. No final eles tornaram-se íntimos como pai e filho. Boito permaneceu sentado em um silêncio respeitoso ao lado da cama de Verdi nos últimos dias do compositor. Ele estava lá no derradeiro momento: ”Ele morreu magnificamente, como um lutador, formidável e mudo”. O legado de Otello é um edifício perto do coração de Milão; a “Casa di Riposo per Musicisti” – uma casa de repouso para músicos onde, como Verdi conheceu muito bem, os embates da velhice são melhor enfrentados com música e companheirismo de mãos dadas. A “Casa di Reposo” foi construída em um terreno comprado por Verdi com a renda de Otello, e foi desenhada por Camilo Boito, irmão de Arrigo. Em seus últimos anos, Verdi viria a declarar-se que a “Casa di Riposo” era a sua obra favorita.

Escolhi para postar a gravação do selo LONDON gravado ao vivo em duas apresentações em 1991. Pavarotti é um Otello maravilhoso, apesar que na época muitos críticos terem dito que ele estava velho, aos 53 anos, para interpretar e gravar Otello. Ele é um tenor de primeira linha e sempre foi (são os famosos críticos de “pêlo em ovo”, como dizer que Pav está “velho” depois de ouvir a faixa 23 no fechamento do segundo ato disco 1 e a emoção da última cena faixa 22 do disco 2). Desdêmona foi um dos papéis de assinatura de Te Kanawa (1944), e esta gravação demonstra o porquê. Ela tem uma voz muito pura, inocente, para não mencionar incrivelmente rica … absolutamente perfeita para este papel. Te Kanawa sempre cantou lindamente para Solti e oferece um desempenho terno e comovente, transformando seu famoso tom puro em um efeito comovente e subindo maravilhosamente como por exemplo no poderoso conjunto final do Ato 3 (CD2 faixas 12 até 14) ou perto do sublime no início do quarto ato nas faixas 3 e 4 do CD 2. Leo Nucci (1942) retrata Iago como ele é: um homem corrupto e coração sem sentimentos. A voz de Nucci tem um som muito rico, cremoso e lembrando um chocolate amargo. Anthony Rolfe-Johnson (1940 – 2010), especialista em Bach e Handel, faz um trabalho maravilhoso como Cassio. O coro da faixa 14 no disco 1, quando eles estão passeando com Desdêmona, é para mim uma das mais belas músicas de coro de ópera. Solti e a orquestra de Chicago são ótimas. Sob o ritmo estável de Solti, eles tocam maravilhosamente e os momentos culminantes acabam se tornando realidade, pois Solti, em seus últimos anos, tornou-se melhor em evitar a abordagem da emoção barata e foi mais para a construção lenta. Mas como devoto de Pavarotti e Te Kanawa, estou feliz de ter nas minhas prateleiras essa performance e sobretudo compartilhar aqui no blog. Acho que a qualidade do som é soberba (não consigo imaginar o que os críticos estavam pensando quando meteram o pau na performance).

A história “passo a passo” com fotos do encarte original do CD estão junto no arquivo de download com as faixas, o resumo da ópera foi extraído do livro “As mais Famosas Óperas”, Milton Cross (Mestre de Cerimônias do Metropolitan Opera). Editora Tecnoprint Ltda., 1983.

Pessoal, abrem-se as cortinas e divirtam-se com a soberba música de Verdi !

Giuseppe Verdi (1813 – 1901): Otello

1-01 Otello, Act I_ 1. Una vela! Una vela!
1-02 Otello, Act I_ 2. Esultate!
1-03 Otello, Act I_ 3. Roderigo, ebben che pensi?
1-04 Otello, Act I_ 4. Fuoco di gioia
1-05 Otello, Act I_ 5. Roderigo, beviam!
1-06 Otello, Act I_ 6. Inaffia l’ugola!
1-07 Otello, Act I_ 7. Capitano, v’attende la fazione ai baluardi
1-08 Otello, Act I_ 8. Abbaso le spade!
1-09 Otello, Act I_ 9. Già nelle notte densa!
1-10 Otello, Act II_ 1. Non ti crucciar
1-11 Otello, Act II_ 2. Vanne! La tua meta gia vedo
1-12 Otello, Act II_ 3. Credo in un Dio crudel
1-13 Otello, Act II_ 4. Cio m’accora
1-14 Otello, Act II_ 5. Dove guardi
1-15 Otello, Act II_ 6. D’un uom che geme sotto
1-16 Otello, Act II_ 7. Se inconscia contra te
1-17 Otello, Act II_ 8. Desdemona rea!
1-18 Otello, Act II_ 9. Tu_! Indietro! Fuggi !!
1-19 Otello, Act II_ 10. Ora e per sempre adio
1-20 Otello, Act II_ 11. Pace, signor
1-21 Otello, Act II_ 12. Era la note Casio dormia
1-22 Otello, Act II_ 13. Oh! Mostruosa culpa
1-23 Otello, Act II_ 14. Si, pel ciel mormoreo giuro
2-01 Otello, Act III_ 1. La vedetta
2-02 Otello, Act III_ 2. Continua
2-03 Otello, Act III_ 3. Dio ti giocondi
2-04 Otello, Act III_ 4. Esterrefatta fisso
2-05 Otello, Act III_ 5. Dio! Mi potevi scagliar
2-06 Otello, Act III_ 6. Cassio è là
2-07 Otello, Act III_ 7. Vieni_ l’aula è deserta
2-08 Otello, Act III_ 8. …e intantanto
2-09 Otello, Act III_ 9. Quest’è il segnale
2-10 Otello, Act III_ 10. Il Doge ed il Senato salutano
2-11 Otello, Act III_ 11. Messeri! Il Dodge
2-12 Otello, Act III_ 12. A terra!.. Si.. nel livido fango
2-13 Otello, Act III_ 13. Quell’ innocente
2-14 Otello, Act III_ 14. Fuggite!
2-15 Otello, Act IV_ 1. Era più calmo ?
2-16 Otello, Act IV_ 2. Mia madre aveva una povera ancella
2-17 Otello, Act IV_ 3. _Piangea cantando
2-18 Otello, Act IV_ 4. Ave Maria, piena di grazia
2-19 Otello, Act IV_ 5. (Otello aparece)
2-20 Otello, Act IV_ 6. Diceste questa sera le vostre preci
2-21 Otello, Act IV_ 7. Aprite! Aprite!
2-22 Otello, Act IV_ 8. Niun mi tema

Otello – Luciano Pavarotti
Desdemona – Kiri Te Kanawa
Iago – Leo Nucci
Cassio – Anthony Rolfe Johnson
Emília – Elzbieta Ardam
Lodovico – Dimitri Kavrakos
Montano – Alan Opie
Roderigo – John Keyes

Coro da sinfônica de Chicago
Orquestra Sinfônica de Chicago
Regente: Sir Georg Solti

Gravação: Orchestra Hall de Chicago – 8 e 12 de abril 1991
Carnegie Hall de Nova Iorque – 16 e 19 de abril de 1991

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Kiri, Pav, Solti, Nucci - Muito talento junto !
Kiri, Pav, Solti, Nucci – Muito talento junto !

Ammiratore

10 comments / Add your comment below

    1. Erro algum, meu caro! Nada há por que se desculpar!
      Que desfrute dessa ótima “Otello” e que fique sempre à vontade de nos acionar, se perceber alguma outra postagem do saudoso Ammiratore que precise de novos links! 😉

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