– Repost de 3 de Novembro de 2015 –
Vamos por partes. Já ouvimos aqui algumas das melhores obras para vozes de Arvo Pärt, e já ouvimos algumas de suas melhores obras orquestrais. Agora venho com mais esse álbum que possui talvez não as melhores, mas duas obras muito conhecidas e importantes para piano: Für Alina (para piano solo) e Spiegel im Spiegel (para cordas e piano).
Para que vocês apreciem melhor essas obras é necessário entender o porquê delas serem como são e o porquê de elas serem importantes.
Já havia dito no meu debut que Pärt possuía três fases na sua carreira de compositor. Essas fases são, primeiro, a de vanguarda (avant-garde); segundo: a fase experimental com collage, e a última, a minimalista. Na primeira fase o compositor era na maior parte um neoclássico, mas chegou a compor obras com estilo dodecafônico e serialista. Uma obra serialista dessa fase é Nekrolog. É uma fase que o compositor tem uma forte obsessão por fazer inovações. Acho que dessa fase pouca coisa é aproveitável, por isso vou focar nas obras das fases seguintes.
Na fase de transição, Pärt realiza uma série de experimentações e colagens em suas obras. Collage ou colagem é uma técnica de composição onde os compositores fazem uma mistura de obras de vários compositores dentro de uma obra sua, misturando desde Bach até Mahler. As vezes sai algo interessante, outras, nem tanto. Essa fase da carreira de Pärt é interessante, pois ele não apenas faz essas colagens em suas obras para seguir uma tendência, ele faz uso dessa técnica numa tentativa desesperada de encontrar a si mesmo enquanto compositor [crise de identidade]. Pärt nessa época de transição, desiste da sua obsessão de inovação e rejeita o serialismo e as regras impostas pelos movimentos avant-garde de sua época, e nisso tenta realizar obras que desafiem isso. O collage, por citar o passado, talvez tenha sido uma forma de fazer essa afronta.
É possível entender a transição de Pärt como um processo de liminaridade, um processo que constitui um rito de passagem que o antropólogo Victor Turner caracterizava por três fases: a separação de uma estrutura anterior, o limbo ou limiar entre duas estruturas, e a agregação a uma nova estrutura. Julgando que a época em que ele vivia essa crise era o auge da guerra fria, pode-se pensar em termos sociológicos como que os movimentos sociais na Estonia sob o regime comunista influenciavam diretamente os pensamentos do “indivíduo Arvo Pärt” na época. É justamente nessa época, final dos anos 60 e começo dos anos 70, que o compositor abandona o luteranismo para se juntar ao cristianismo ortodoxo. Ou seja, Pärt se separa de uma estrutura social anterior para se juntar à outra. Isso se reflete em sua música também, embora em um tempo diferente. A música que mais evidencia seu rito de passagem é Credo, uma obra onde ele cita Bach, usa de atonalidade e de textos sacros.
Talvez tenha sido pura coincidência, ou talvez tenha sido por sentimento mesmo, mas durante uma época em minha vida em que estava passando justamente por um processo de liminaridade no meu pensamento intelectual pessoal, eu senti que deveria ouvir essa música. Já tinha escutado antes, mas foi dessa vez que senti aquilo que Pärt sentia quando a compôs, ou melhor, me identifiquei com seus sentimentos, pois passava justamente pelo mesmo processo. Credo é um ótimo exemplo para entender esse limiar, pois a música começa estável, desmorona em uma atonalidade caótica desesperadora (eu realmente senti desespero ouvindo essa parte), e depois se solidifica novamente em esperança e beleza. O único “porém” dela é voltar ao “mesmo” digamos assim, e isso não configura um rito de passagem completo (nem mesmo uma superação das contradições anteriores), mas podemos entender isso como uma previsão de Pärt do que viria: ele voltaria à beleza, às regras de uma estrutura. [Neste sentido a visão de Turner, de que um processo de liminaridade põe em cheque a ideia de estrutura é equivocada, pois tal processo pode ser entendido como um processo comum da própria estrutura. Ou seja, Pärt abandona um grupinho, fica meio perdido, mas encontra uma outra turminha com quem possa andar no recreio.]
E foi isso que ele fez. Depois de mais ou menos oito anos de silêncio criativo quase absoluto (com exceção apenas da Terceira Sinfonia, que já mostrara alguns sinais do estilo que viria), Pärt finalmente renasce com um estilo de música totalmente novo, mas por mais irônico que talvez seja (talvez não tão irônico, se pensarmos que de alguma forma – nos termos de Victor Turner – para completar o ritual de passagem, era necessário aderir a uma nova estrutura), um estilo que possui regras tão complexas quanto aquelas presentes no serialismo, como explica Tom Service pelo The Guardian:
“Pärt criou regras estritas para controlar como as vozes harmônicas se movem com as linhas melódicas em sua música, regras tão estritas quanto o serialismo; ironicamente, dada a sua rejeição às suas obsessões de inovação anteriores, o sucesso de sua linguagem musical depende exatamente daquela objetividade de pensamento que a composição serial demanda. Essa austeridade do processo faz com que o tintinnabuli de Pärt apresente um novo uso da atonalidade, até mesmo um novo tipo de tonalidade, e explica porquê sua musica soa ao mesmo tempo tão antiga e moderna, e porque ela encorpa uma expressividade genuína ao invés de uma repetição de convenções de segunda mão.”
Eu diria que a música de Arvo Pärt não soa antiga e moderna ao mesmo tempo por acaso. Como eu disse acima, Pärt se converteu ao cristianismo ortodoxo e é no leste europeu onde o antigo estilo de canto conhecido como canto gregoriano (ou cantochão), é ainda bastante preservado, justamente devido a presença do cristianismo ortodoxo. As obras para vozes de Pärt do período minimalista possuem clara influência do cantochão tanto no sentido estético quanto no estrutural da música. Não seria errado dizer que o cantochão é um estilo de canto minimalista se pensarmos apenas nas características e não na época; é com a Ars Nova, o renascimento e finalmente o barroco que as obras para vozes tomam proporções maiores do que vigorou pela maior parte da idade média. Mas claro que Pärt vai muito além, ele cria uma harmonia e um timbre únicos, e além disso, ele está se inspirando numa música antiga em um contexto moderno (ou pós-moderno), por isso a música soaria antiga e moderna ao mesmo tempo. [Seu novo estilo, o tintinnabuli (que é uma forma de minimalismo), é como uma superação da contradição entre suas duas fases anteriores: as regras exigentes da vanguarda, mais as experimentações com o passado.]
Für Alina, embora não seja para vozes, é a primeira obra que surge com essa inovação na sua técnica de composição após o hiato de vários anos do compositor. Quero que vocês tenham isso em mente quando ouvirem pela primeira vez Für Alina, que aquela nota grave que você ouve, seguida de notas mais agudas, foi a primeira nota que nasce depois de um silêncio de muitos anos, e elas nascem como uma ressurreição do compositor, então é necessária delicadeza e lentidão ao lidar com elas, como se o pianista e o ouvinte estivessem brincando com um vidro muito frágil e valioso. Se o pianista for delicado e o ouvinte não for, a magia se quebra e a obra se perde no vazio, se o ouvinte for delicado mas o pianista não for, o ouvinte vai sentir a magia da obra rachando e quebrando diante de seus ouvidos que esperavam delicadamente apreciar uma delicadeza que não ocorre. Do nascimento dessas pequenas e delicadas notas nasceriam outras raízes mais fortes dessa semente: Spiegel im Spiegel, Tabula Rasa, Frates, Cantus In Memory of Benjamin Britten, Summa e outras. Essas obras são as bases desse novo estilo de Pärt: minimalista, profundo e hipnotizante.
E tudo isso são só os primeiros galhos, o estilo minimalista de Pärt mesmo sendo “pouco” rende muito. Já podemos dizer que existe uma árvore razoavelmente grande de obras só da terceira fase. Torço para que esse velhinho de 80 anos viva pelo menos até os 100, e continue nos honrando com sua maravilhosa música profundamente tocante por muito tempo.
Arvo Pärt (1935): Alina
01 Spiegel im Spiegel
02 Für Alina
03 Spiegel im Spiegel
04 Für Alina
05 Spiegel im Spiegel
Vladimir Spivakov, violino
Sergej Bezrodny, piano
Dietmar Schwalke, violoncelo
Alexander Malter, piano
Luke D. Chevalier
Belo texto, LDC, poste mais!
Avicenna
Parabéns Luke, pela riqueza de informação contida na escrita.
Arvo Pärt me transmite paz, reflexão e uma profunda emoção.
É como estar vivendo um sonho. Grato e um forte abraço do Dirceu.
Muito obrigado senhores!
Postagem fenomenal, tanto pela gravação quanto pelo magnífico texto.
Que BAITA contratação do PQP Bach foste tu, Luke!
Fico muito feliz que você tenha gostado Vassily! Obrigado pelo apoio.
Muito legal postar obras deste compositor. Agradeço muito.
O problema é que justamente este disco, que é da fase dele que eu mais aprecio, eu não estou conseguindo baixar. Dá sempre a mensagem de “Falha na rede”.
Não há como subir este arquivo para o PQP Share? Este nunca dá problema.
muito bonito obrigado!