Antonio Carlos Gomes (1836-1896): Óperas – (7) Lo Schiavo (1959-Guerra) [link atualizado 2017]

175 anos do nascimento de Antonio Carlos Gomes

Ah, Lo Schiavo, a segunda ópera mais famosa de Antonio Carlos Gomes e a segunda a ser gravada na história! Que deleite para os ouvidos esta obra simplesmente IM-PER-DÍ-VEL!
Carlos Gomes passou dez anos amargos sem conseguir subir uma ópera no palco. Depois de Maria Tudor, ele tinha movimentada e desagradável vida pessoal: discussões, separação, construção de um palacete que ele não conseguia manter (a famosa Villa Brasília, hoje um conservatório em Milão), hipotecas, dívidas para suster seu luxo… Gomes parecia que queria manter uma ilusão, para si e para os demais, de que estava tudo bem, de ostentar, a duras penas, uma imagem melhor do que a realidade. Talvez tenha imaginado que viver num palacete com belíssimos afrescos com araras em suas paredes conseguisse abater seu sofrimento. Sabemos que Tonico tinha um temperamento indócil, com várias crises de ira. Era, pelo que se pode saber pelos seus biógrafos, uma pessoa difícil de se lidar (ora, Beethoven era terrível. Por que Carlos Gomes não poderia ser intratável também?). Sofria também com um forte complexo de  inferioridade: qualquer mínimo sinal negativo na aprovação de suas obras era motivo para se achar o pior dos compositores, mesmo sendo o segundo em número de récitas na Itália da década de 1870. Devia também ter fortes problemas de depressão, pois iniciava muitos trabalhos e os abandonava em seguida.
E Lo Schiavo nasceu nesse turbilhão de problemas pessoais de Carlos Gomes, de projetos de óperas iniciados e nunca concluídos. A história original tratava de um texto de forte veia abolicionista, de 5, 6 páginas, escrito pelo Visconde de Taunay para Gomes. O texto daria uma ótima ópera, pois tinha bom enredo: revoltas de escravos, refúgios em quilombo e amor entre o senhor branco e a escrava negra. Os editores italianos não gostaram da ideia de um protagonista negro e escravo, simples, pobre, diferente de doutros protagonistas negros daquele tempo, como Aída (princesa etíope) e Otelo (que se tornara nobre). Assim, optou-se por transformar os escravos em índios e transportar a história para o século XVI, durante a Confederação dos Tamoios, o que criou algumas incongruências históricas à trama que obrigaram Tonico a se desdobrar pra resolvê-la com uma música coerente e boa.
Ao mesmo tempo, as preferências, em dez anos, mudavam na Itália: os compositores da geração de Carlos Gomes eram preteridos pelos da Giovane Scuola (os veristas). Autores como Gomes, que estavam na transição entre o Romantismo tradicional e o Verismo encontravam dificuldades para encenar suas óperas. Pese nisso o tempo no qual Gomes não produziu nenhuma peça, o que contribuiu para a perda de visibilidade na cena artística de então.
Não conseguindo estrear Lo Schiavo em Milão, o compositor entrou em contato com autoridades do Brasil e, por intervenção particular (apoio, bênção e imposição, mesmo)  do Imperador D. Pedro II, a ópera acabou estreando, finalmente, em 1889, no Rio de Janeiro, pouco mais de um mês antes da queda da Monarquia no país (e um ano após a abolição: melhor não tratar de escravidão negra naquele ambiente tenso, não?). O sucesso foi estrondoso: o público carioca pôde ver o Carlos Gomes que conheceu moço em sua obra mais melodiosa e com uma de suas orquestrações mais refinadas.

Do ponto de vista estrutural, Lo Schiavo é uma ópera de números relativamente convencional. Mas apresenta Carlos Gomes em um de seus melhores momentos de inspiração melódica – capaz de “encontrar harmonias e timbres raros, de aproveitar ritmos inusitados e de utilizar modulações as mais eficazes e inesperadas” (Marcus Góes). Como no Guarany, a música é, de um modo geral, italianada. Mas, como observa João Itiberê da Cunha, num ensaio publicado na Revista Brasileira de Música, há nela “certas estranhezas rítmicas e temas de sabor agreste e mesmo selvagem, que nada têm a ver com a música da Europa, e muito menos com a italiana. Sempre que Carlos Gomes quer apresentar o elemento autóctone do Brasil, sejam guaranis, tamoios ou aimorés, ele encontra no seu estro acentos característicos e inéditos, que surpreendem pela força de expressão e pela novidade, já não diremos pelo exotismo. (Lauro Machado Coelho)”

Lo Schiavo é uma ópera não tanto dramática em sua música, mas muito mais melodiosa e muito mais coesa e refinada, de uma orquestração mais elegante. Aqui Calos Gomes apresenta um domínio dos conjuntos instrumentais muito mais maduro.

Com Lo Schiavo, o ímpeto dramático de Gomes tende a atenuar-se; ele entra em uma fase reflexiva na qual o dinamismo do discurso musical se transforma em pintura de ambiente. O interesse, agora, redide primordialmente nas partes líricas; as dramáticas, embora não estejam privadas de eficiência, não atingem a intensidade de certas páginas da Fosca nem a imediateza que era uma das características do Guarany. A estrutura dramatúrgica apresenta carências que não são irrelevantes, principalmente na definição dos caracteres; mas algumas situações são bem conduzidas, com sentimento poético e resultados convincentes no plano da expressão teatral. A composição apresenta um equilíbrio geral, que lhe é conferido por uma certa organização estilística, o faz com o Escravo seja considerado, pela maioria dos estudiosos, uma das óperas mais bem-sucedidas de Carlos Gomes. (Marcos Conati)

Essa ópera é uma das melhores melodias de Gomes. A Alvorada, no início do quarto ato, é das peças mais belas por ele escritas em toda a sua carreira. Além da delicada abertura e das árias como “quado nascesti tu” e “O ciel di Parahyba“. Nessa montagem, a segunda gravação mundial de uma ópera de Carlos Gomes (alguns meses mais recente que Il Guarany de Belardi), temos nomes de cantores que fizeram história em nossos teatros, como a elegantíssima Ida Miccolis e o portentoso Lourival Braga, em um raro barítono protagonista.
Resumo da ópera: é muito bom! Não deixe de conhecer!
(Semana que vem, a ópera mais curta e tão melodiosa quanto esta: Odalea)

Lo Schiavo (1889)
Antonio Carlos Gomes (1836-1896)
Libreto: Rodolfo Paravicemi
Baseado em história do Visconde de Taunay

Ato I – 01 Preludio
Ato I – 02 Oggi imene qui prepara
Ato I – 03 Seghi e sorveglia i passi miei
Ato I – 04 In aspra guerra per la mia terra
Ato I – 05 Nobre stirpe del brasilio soul
Ato I – 06 Di ribellione Autore ti festi or ora
Ato I – 07 Ah! Per pietà!
Ato I – 08 Partito è! Gran Dio!
Ato II – 09 Piacer! Eccola Cura
Ato II – 10 Conte voi abigliarmi sembrate
Ato II – 11 Quando nascesti tu
Ato II – 12 Perchè! Gioia che di
Ato II – 13 Danza Indigena – Carigio
Ato II – 14 Danza dei canottieri
Ato II – 15 Danza Indigena – Goitacà
Ato II – 16 Baccanale
Ato II – 17 Un astro splendido nel cielo appar
Ato II – 18 Lo sguardo in me fissati
Ato III – 19 Oh Ciel di Parahyba
Ato III – 20 Fra questi fior que adori
Ato III – 21 Fragile cor di Donna
Ato III – 22 Gerrier Prodi e Fedele
Ato IV – 23 Siam Traditi si Amo perduti
Ato IV – 24 Sogni d’amore, spereanze di pace
Ato IV – 25 Alvorada
Ato IV – 26 Come serenamente
Ato IV – 27 Ecco l’ombra mia funesta
Ato IV – 28 Benchè le insigne
Ato IV – 29 Addio, fedele martire

Ilara – Ida Miccolis, soprano
Ibere – Lourival Braga, barítono
Americo -Alfredo Colosimo, tenor
Conde Rodrigo – Luiz Nascimento, baixo
Condessa de Boissy – Antea Claudia, soprano
Gianfera – Marino Terranova, barítono
Goitaca – Alvarany Solano, baixo
Lion – Carlos Dittert, baixo

Orquestra e Coro do Teatro Municipal de Rio de Janeiro
Santiago Guerra
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, 1959.

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE (110Mb – 2CD, cartaz, info e resumo da ópera)
Ouça! Deleite-se! Mas antes, deixe um comentário pra gente…

Bisnaga

10 comments / Add your comment below

  1. Primeirona a deixar mensagem!! Ainda não ouvi, espero que uma gravação brasileira de 1959 tenha uma razoável qualidade sonora. Mas mesmo que não tenha, é uma preciosidade, obrigada pela postagem.

  2. Prezados, uma coisa que sempre me passa pela cabeça é a hipótese de se montar “Lo Schiavo” com personagens negros, à maneira como o próprio Carlos Gomes pretendia. Mantendo a partitura e mudando alguns nomes de personagens, acho que seria uma adaptação possível e válida, no mínimo um caso a se pensar. Façamos aqui uma comparação: Rimsky-Korsakov e Shostakovich remodelaram parcialmente excelentes óperas de Mussorgsky, neste caso mexendo na partitura, e são essas versões remodeladas as mais conhecidas e representadas. Na ideia que me ocorre sobre “Lo Schiavo” não falo em remodelar nada na partitura, mas no enredo, o que, de certa forma, traria a ópera de volta ao “original”, porque tal era o desejo de Gomes. Segundo li, o próprio Gomes teve que fazer uma tremenda “ginástica” para “indianizar” a ópera. Por outro lado, com a versão indígena imposta pelos editores italianos, perdeu-se uma “dilogia” preciosa, ou seja, as duas óperas de Gomes com temas brasileiros deixaram de compor dois aspectos inerentes à nossa história. Uma, a primeira, abordando indígenas e a segunda abordando o elemento afrodescendente, que caracteriza fortemente a formação de nossa cultura como povo e nação. Duas óperas sobre índios. Por que não uma sobre índios e outra sobre negros? E há outro aspecto incongruente com a história (sem culpa alguma do próprio Gomes) que é apresentar a questão da escravatura em seu efêmero aspecto da escravização de indígenas. Enfim, uma ópera celebrando a Abolição deveria abordar o elemento negro, incluir o negro na ópera brasileira (ou ítalo-brasileira, por assim dizer). Na época houve imposições que Gomes não conseguiu evitar, mas hoje imaginemos quão maravilhoso seria “ressuscitar” a ópera conforme o próprio Gomes a pretendia. Não seria uma “deformação” e sim uma “restauração”; “deformação” foi o que foi imposto pelos editores italianos. Digam-me, por favor: Há projetos – ou, no mínimo, cogitações – de se realizar uma ideia como esta?
    Saudações
    Luiz

    1. Uma montagem como a que você imagina, Luiz, seria fantástica e totalmente factível, como ocorreu a muitas remontagens contemporâneas de óperas.
      Infelizmente não sei de nenhum movimento nesse sentido de dar outra roupagem à Lio Schiavo.

Deixe um comentário para Michelle Flores Cancelar resposta