REPOSTAGEM
Já faz várias semanas que o Avicenna preparou cuidadosamente os arquivos para esta postagem, convidando-me honrosamente a mais uma parceria no texto… e eu venho vergonhosamente adiando mais do que seria aceitável!
A razão é que tanto eu quanto o Avicenna não acharíamos graça em fazer esta postagem em particular sem um texto consideravelmente substancioso acompanhando-a – e já contei pra vocês que a saúde vem me impedindo de me jogar muito a fundo em atividades de tecelagem verbal.
Mas a vontade também é forte, e aí decidi que não deixaria a coisa passar deste penúltimo domingo de inverno. Aí vai, então: não é pra ser um tratado, mas também não deixará de tocar em duas ou três áreas que nos instigam em especial.
A ABORDAGEM DE KARL RICHTER (1926-1981) A J.S.BACH (1685-1750): É lugar-comum dizer que Richter foi um dos últimos a empregar uma abordagem “romântica” em Bach, numa época em Harnoncourt e tantos outros já haviam partido para a abordagem “histórica”, que se caracteriza basicamente por: (a) uso de instrumentos construídos na época, ou construídos hoje segundo modelos da época; (b) sobretudo nas obras sacras, emprego das vozes de contratenores homens no lugar da de contraltos mulheres, e de meninos antes da mudança de voz no lugar de sopranos mulheres; (c) tamanho menor dos grupos instrumentais e corais; (d) tempos mais acelerados (i.é, velocidade), articulação e agógica mais dinâmicas (jogo de ligado x destacado, fraseado, irregularidades expressivas no tempo etc).
Richter de fato não usou nada disso: usou instrumentos modernos, mulheres solistas, grupos consideravelmente volumosos… porém seus tempos não são só lentos: são sobretudo rigorosamente regulares – como de metrônomo ou relógio do princípio ao fim de cada trecho.
Isso me faz perguntar sobre a adequação de chamar “romântica” a sua abordagem… se o que talvez mais caracterize o romantismo seja o rubato, ou seja: um determinado tipo de irregularização expressiva do tempo. Em Richter inexistem tanto a “inegalité” e a agógica barrocas quanto o rubato, e nesse sentido eu chamaria sua abordagem de “classicista”, não de romântica.
Mas além disso Richter era filho de pastor luterano, e sua formação se deu fundamentalmente no espaço eclesiástico – diferente de regentes como um Klemperer, de quem também se diz ter abordado a São Mateus “romanticamente”. Minha impressão é que Richter foi mostrar no teatro o que se fazia nas igrejas… e isso embasaria o clima litúrgico e devocional que parecemos encontrar aqui, em contraste com abordagens mais teatrais, operísticas e/ou “de concerto”.
ALGUNS DESTAQUES DA REALIZAÇÃO E DA OBRA: Antes de mais nada, o coro – ou melhor: os coros (a obra inteira é composta para 2 coros a quatro vozes, 2 orquestras e 2 conjuntos de solistas, que se respondiam da frente e dos fundos da igreja, e ainda uma nona voz coral: um grupo de meninos em uníssono, que intervém somente nas faixas 1 e 35). Impressionam nesta realização a textura veludosa, a precisão e a qualidade expressiva das massas corais, quer nos COROS (peças livres) quer nos CORAIS (nome para “hinos” na tradição luterana).
Segundo, a participação do que foi talvez o melhor barítono do século 20: Dietrich Fischer-Dieskau (28.05.1925-18.05.2012). Destaque para os dois pares recitativo-e-ária que são as faixas 65-66 e 74-75. Para mim só essas quatro faixas já justificariam a preservação desta gravação e nossa atenção a ela!
Falar das diferentes árias maravilhosas da São Mateus é um assunto infinito em que não quero entrar – mas por afinidades pessoais não quero deixar de chamar atenção para o dueto soprano-alto com coro quase no final da primeira parte (faixa 33), e para a ária Aus Liebe (‘É por amor…’ – faixa 58) – esta especificamente porque para mim é um inegável CHORO – quero dizer no sentido musical brasileiro da palavra – com os volteios sentimentais da flauta apoiados (?) em acordes flutuantes de 2 oboés e um corne inglês mais ou menos na mesma tessitura de um cavaquinho, sem baixo nenhum. Como diria o filho do véio: IM-PER-DÍ-VEL!
SOBRE A RELAÇÃO COM O TEXTO: Hoje o interesse pela música de Bach é mais freqüente entre pessoas intelectualizadas… e justo entre essas não é freqüente conseguirem levar a sério o enredo e os sentidos teológicos que essa música se propõe a ilustrar. Surge daí com freqüência uma proposta de audição assim: “a composição musical é maravilhosa, mas os textos são uma baboseira superada que é melhor a gente nem ficar sabendo”.
Por um lado considero perfeitamente válido que para apreciar esta música ninguém precise acreditar que estaria condenado a assar no inferno pela eternidade caso Jesus não tivesse se disposto a sofrer para apaziguar um Deus-Pai capaz de determinar isso… Mas por outro lado acho que há uma inegável perda de experiência estética quando não nos dispomos a experimentar como é sentir isso – no mínimo do mesmo modo como nos dispomos a sentir os terrores e esperanças dos gregos ou dos indianos diante dos seus deuses e heróis, quando vamos conhecer a Ilíada ou o Mahabhárata.
Para mim o bonito dos tempos pós-modernos é justamente isso: o convívio entre múltiplas formas diferentes de experimentar a mesma coisa, formas muitas vezes incompatíves mas que nem por isso precisam incorrer na infantilidade de lutar para suprimir umas às outras. No caso: há gente que irá ouvir só pela música; alguns pela música e pelo mito entendido como fantasia; outros pelo mito entendido como verdade sagrada; outros ainda por nostalgia em relação aos seus queridos passados que cultivavam essa forma de religiosidade – etc. etc. etc.
Minha forma pessoal, se alguém se interessar em saber, eu classificaria como um tanto antropológica: entendo como essência do mythos cristão a admissão, por parte do ser humano, de um descompasso ou insuficiência de sua parte frente a uma ordem maior – e quem diz que isso se refere a um velho barbudo que diz que você não pode pensar no que tem por baixo da saia ou calça da/do coleguinha da escola, ou duvidar de que a mãe de Jesus era virgem ou coisas assim? A realidade da destruição ambiental do planeta, ou das crianças lançadas à fome por conta de disputas de poder-pelo-poder, não são amostras de que o ser humano realmente pisa na bola frente àquilo que ele mesmo é capaz de conceber como o bom e o desejável? E será assim tão ridículo dispor-se a deixar ressoar em cada um de nós o que é o sofrimento de um outro que tem raiz em atos nossos? E ainda: aspirar por que essa compreensão respeitosa do sofrimento do outro, e admissão de culpa, gere um desejo de superação das nossas insuficiências em questão – um desejo tal que se torne força capacitadora de uma tal superação?…
Essa é, no humilde ver de Ranulfus, uma tradução antropológica do mythos cristão – e não tenho dúvidas de que era com esse magma de emoções que Bach trabalhava, independente de se com pura intuição ou com maior ou menor dose de consciência. E quem se dispõe a empreender uma viagem através de imagens simbólicas desse drama fundamental da admissão de culpa e aspiração por redenção, com certeza irá extrair de Bach uma experiência estética ainda muito mais profunda que aquele que diz “a música é divina, os textos são pura baboseira”.
Foi assim que eu entendi o impulso que o colega Avicenna teve de não postar esta obra sem colocar à disposição o texto com tradução em português (mesmo se não há nenhuma poeticamente satisfatória!), bem como os títulos das faixas em português: contribuições para uma experiência mais integral desses “Autos de Mysterio” que são as Paixões de Bach –
… experiência para quê a atitude menos teatral e mais litúrgico-devocional adotada por Karl Richter talvez possa ser uma contribuição, apesar de todas as suas infidelidades musicológicas.
J.S. Bach: PASSIO SECUNDUM MATTHÆUM, BWV 244
1.ª das gravações dirigidas por Karl Richter: 1958, Herkules-Saal, München
Münchener Bach-Chor & Münchener Chorknaben (diretor do coro: Fritz Rothschuh)
Münchener Bach-Orchester
Tenor [Evangelista, árias]: Ernst Haefliger
Baixo [Jesus]: Kieth Engen
Soprano [árias]: Irmgard Seefried
Soprano [1.ª criada; esposa de Pilatos]: Antonia Fahberg
Contralto [árias, 2.ª criada]: Hertha Töpper
Baixo [árias]: Dietrich Fischer-Dieskau
Baixo [Judas, Pedro, Pilatos, Sumo Sacerdote]: Max Proebstl
LISTA DAS FAIXAS
Jesus ungido em Betânia (São Mateus 26: 1-13)
01 Vinde, filhas, auxilia-me no pranto (Kommt, ihr Töchter)
02 Quando Jesus terminou estas palavras (Da Jesus diese Rede vollendet hatte)
03 Amado Jesus (Herzliebster Jesu)
04 Então se reuniram em conselho (Da versammleten sich die Hohenpriester)
05 Que não seja em dia de festa (Ja nicht auf das Fest)
06 Estando Jesus em Betânia (Da nun Jesus war zu Bethanien)
07 Para que este desperdício (Wozu dienet dieser Unrat)
08 Os advertindo, Jesus os falou assim: (Da das Jesus merkete, sprach er zu ihnen)
09 Tu! Salvador bem amado! (Du lieber Heiland du)
10 Contrição e arrependimento (Buss’ und Reu’)
Última Ceia (São Mateus 26: 14-35):
11 Então um dos doze (Da ging hin der Zwölfen einer)
12 Sangra, querido coração! (Blute nur, du liebes Herz)
13 Então no dia dos primeiros ázimos (Aber am ersten Tage der süssen Brot)
14 Onde quer que façamos (Wo willst du, dass wir dir bereiten)
15 Ele os disse ide a cidade (Er sprach-Gehet hin & Rez (Ev)-Und sie wurden)
16 Sou eu. Deveria expiá-lo (Ich bin’s, ich sollte büssen)
17 Ele os respondeu (Er antwortete und sprach)
18 Apesar de que meu coração (Wiewohl mein Herz in Tränen schwimmt)
19 Quero entregar-te meu coração (Ich will dir mein Herze schenken)
20 E tendo proclamado o hino de ação de graças (Und da sie den Lobgesang gesprochen hatten)
21 Reconhece-me, meu Guardião (Erkenne mich, mein Hüter)
22 Porém Pedro, respondendo, lhe disse (Petrus aber antwortete)
23 Quero permanecer aqui junto de Ti (Ich will hier bei dir stehen)
No monte das Oliveiras (São Mateus 26: 36-56):
24 Então marchou Jesus com eles (Da kam Jesus mit ihnen zu einem Hofe)
25 Oh, dor! Como treme seu coração angustiado (O Schmerz & Chor-Was ist die Ursach’)
26 Quero velar ao lado do meu Jesus (Ich will bei meinem Jesu wachen & Chor-So schlafen unsre)
27 Avançou alguns passos (Und ging hin ein wenig)
28 O salvador cai de joelhos (Der Heiland fällt vor seinem Vater nieder)
29 Com prazer queria eu levar sua cruz (Gerne will ich mich bequemen)
30 E ao retornar até onde estavam seus (Und er kam zu seinen Jüngern)
31 Que se cumpra sempre a vontade de meu Senhor (Was mein Gott will, das g’scheh allzeit)
32 E retornando, os encontrou novamente (Und er kam und fand sie aber schlafend)
33 Assim meu Jesus é preso (So ist mein Jesus nun gefangen)
34 E eis que um dos que estavam com Jesus (Und siehe, einer aus denen)
35 Oh homem! Chora teu grande pecado (O Mensch, bewein dein Sünde gross)
Falso Testemunho (São Mateus 26: 57-63):
36 Ah! Meu bom Jesus já não está aqui! (Ach, nun ist mein Jesus hin!)
37 Os que prenderam a Jesus o conduziram (Die aber Jesum gegriffen hatten)
38 O mundo me julgou cruelmente (Mir hat die Welt trüglich gericht’t)
39 Apesar de tê-lo tentado com numerosos testemunhos falsos (Und wiewohl viel falsche Zeugen)
40 Meu Jesus guarda silêncio ante as calúnias (Mein Jesus schweigt zu falschen Lügen stille)
41 Paciência! Se línguas mentirosas me ofenderem (Geduld! Wenn mich falsche Zungen Stechen)
Jesus ante Caifás e Pilatos (São Mateus 26: 63-75; 27: 1-14):
42 O Sumo Pontífice o respondeu dizendo (Und der Hohepriester antwortete)
43 Então começaram a cuspir-lhe no rosto (Da speieten sie aus)
44 Quem te golpeia assim (Wer hat dich so geschlagen)
45 Pedro estava sentado fora (Petrus aber saß draussen)
46 Então se pôs a maldizer e a jurar (Da hub er an, sich zu verfluchen)
47 Tem piedade de mim, Meu Deus (Erbarme dich, mein Gott)
48 Ainda que me separe de Ti (Bin ich gleich von dir gewichen)
49 Pela manhã, todos os príncipes (Des Morgens abre)
50 Então ele lançou as moedas de prata no templo (Und er warf die Silberlinge)
51 Devolva-me o Meu Jesus! (Gebt mir meinen Jesum wieder!)
52 E depois de terem discutido (Sie hielten aber einen Rat)
53 Dirige teu caminho (Befiehl du deine Wege)
Entrega e Flagelação (São Mateus 27: 15-30):
54 Durante a festa era costume que o governador (Auf das Fest aber hatte der Landpfleger Gewohnheit)
55 Que incompreensível é este castigo! (Wie wunderbarlich ist doch diese Strafe!)
56 O governador replicou (Der Landpfleger sagte)
57 Ele fez o bem a todos (Er hat uns allen wohlgetan)
58 Por amor quer morrer meu Salvador (Aus Liebe will mein Heiland)
59 Porém eles, elevando a voz, gritavam (Sie schrieen aber noch mehr)
60 Piedade. Senhor! (Erbarm’ es Gott!)
61 Se as lágrimas do meu rosto (Können Tränen meiner Wangen)
62 Então os soldados do governador tomaram a Jesus (Da nahmen die Kriegsknechte)
63 Oh, cabeça lacerada e ferida (O Haupt voll Blut und Wunden)
A Crucificação (São Mateus 27: 31-54):
64 E depois de tê-lo humilhado (Und da sie ihn verspottet hatten)
65 Sim, ditosa a hora em que a carne e o sangue humanos (Ja! freilich will in uns das Fleisch und Blut)
66 Vem, doce cruz (Komm, süsses Kreuz)
67 E então chegaram ao lugar chamado Gólgota (Und da sie an die Stätte kamen)
68 Até os mesmos bandidos que haviam sido crucificados (Desgleichen schmäheten ihn auch die Mörder)
69 Ah, Gólgota (Ach, Golgatha)
70 Veja, Jesus estende sua mão (Sehet, Jesus hat die Hand)
71 E desde a hora sexta até a hora nona (Und von der sechsten Stunde)
72 Quando eu tiver que partir (Wenn ich einmal soll scheiden)
73 E eis que o véu do templo (Und siehe da)
O enterro (São Mateus 27: 55-66):
73b Estavam também ali, um pouco afastadas (Und es waren viel Weiber da)
74 Ao entardecer, quando refrescou (Am Abend, da es kühle war)
75 Purifica-te, Meu coração (Mache dich, mein Herze, rein)
76 José tomou o corpo e o envolveu em um lençol (Und Joseph nahm den Leib)
77 Agora o Senhor descansa (Nun ist der Herr zur Ruh gebracht)
78 Chorando nos prostramos ante teu sepulcro (Wir setzen uns mit Tränen nieder)
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE (Encarte incluso)
MP3 | 480 Mb | 3 h 20 min
• Tradução um pouco menos ruim que a do encarte:
http://www.bach-cantatas.com/Texts/BWV244-Por2.htm
Monge Ranulfus: texto & inspiração
Avicenna: digitalização, layout & mouse conductor