Publicado originalmente em 18.06.2010. Re-publicado em 25.01.2016 em um “pacote” de postagens que talvez se possa relacionar aos 161 anos da Revolta do Malês (negros letrados, portadores da alta cultura mandê) na Bahia.
A participação de afrodescendentes na construção do “clássico” brotado da Europa é um assunto riquíssimo ainda bem pouco explorado, no qual me fascinam especialmente dois violinistas.
Um, George Bridgetower, filho de um negríssimo escravo forro e de uma polonesa, entusiasmado pelo qual Beethoven compôs em uma semana a maior de suas sonatas para violino e piano. Um dia conto aqui sobre a estreia, talvez a primeira jam-session – e sobre a briga de bebedeira que levou o genioso gênio a re-dedicar a obra a Rudolph Kreutzer, que fez pouco caso e nunca a tocou.
O outro, o autor destes concertos, nascido em Guadeloupe, Caribe, de um nobre francês com sua escrava Nanon. Pouco depois, encrencas “correm” o pai de volta para a Europa, e este – milagre dos milagres na história da colonização! – em vez de abandonar mãe e filho leva-os consigo. Nanon parece ter sido uma espécie de segunda esposa mantida discretamente no ambiente doméstico, mas mesmo assim chegará a ser mencionada como “o mais belo presente que a África deu à França”, e o pequeno Joseph terá uma educação em letras e armas para nobre nenhum botar defeito. Aos 15 anos ingressa na guarda do rei, e aos 26 é mencionado como mestre “inimitável” na esgrima, mencionado nos tratados dessa arte dos séculos 19 e 20 como referência e com reverência (as idades são presumidas a partir de seu nascimento no Natal de 1745, data mais aceita, embora ainda disputada).
Porém aos 23 já havia sido chamado “inimitável” em outra arte: a do violino. Assume o posto de spalla numa das orquestras mais prestigiosas da Paris de então, a Concert des Amateurs, em cuja direção sucede Gossec quatro anos depois. É apenas a primeira das muitas sociedades musicais que dirigirá, posição que lhe permitirá, entre outras coisas, encomendar a Haydn a série de sinfonias que ficarão conhecidas como “parisienses”. Haydn tinha 53 anos por ocasião da encomenda, Saint-George 39 ou 40.
Oito anos antes, em 1777, Mozart chegara a Paris pela terceira vez. Havia poucos anos a cidade o havia aclamado ainda como garoto prodígio, mas agora já tem 21, deixou de ser novidade em mais de um sentido. Coincidentemente, nesse mesmo momento a estrela de Saint-George está brilhando a toda, inclusive com a estréia de sua “comédia com árias” Ernestine, com libreto do autor de As Ligações Perigosas, Choderlos de Laclos.Mozart escreve ao pai que a coisa está difícil; o pai o aconselha a procurar justamente o Concert des Amateurs, mas ao que parece o filho reluta, não sabemos a razão. O que sabemos é que indiferente à música de Saint-George, Mozart não ficou: têm sido apontadas semelhanças estilísticas e até mesmo temáticas entre obras suas desse momento, ou pouco posteriores, e obras de Saint-George publicadas pouco antes.
Desonra nenhuma para Mozart: é mesmo pelo acolhimento de influências e sua posterior transformação que qualquer artista se faz. Mas é sem dúvida honra para Saint-George, que ninguém menos que Mozart tenha considerado sua música digna de semelhante atenção!
Aos 45, apesar das origens aristocráticas, Joseph se junta à Revolução com o posto de coronel, logo assumindo o comando de um batalhão de negros e mestiços, entre eles o futuro pai do escritor Alexandre Dumas. Mas apesar de seus serviços terem sido decisivos para a vitória da Revolução (como foi demonstrando recentemente), nos anos do terror foi denunciado e mantido preso por um ano e meio, à espera da guilhotina. Embora indultado de última hora, sua saúde jamais voltou a ser a mesma, levando-a à morte com apenas 53 anos.
Se é verdade que seus últimos anos foram vividos com simplicidade, não o é o mito romântico de que Joseph Bologne de Saint-George tenha morrido esquecido: os jornais de Paris noticiaram sua morte como a de uma personalidade nacional. (Aproveito para mencionar que as grafias Bologne e Saint-George [sem s] foram adotadas aqui no lugar de Boulogne e de Saint-Georges de acordo com os estudos mais recentes).
O esquecimento quase total veio um pouco mais tarde, ao longo dos séculos 19 e 20. Em 1936 o violinista Marius Casadesus fez um primeiro esforço de revivê-lo, porém isso só veio acontecer de fato a partir de 1974, quando Jean-Jacques Kantorow espantou o mundo com gravações de algumas sonatas e concertos, entre os quais os dois postados aqui. [Ranulfus havia postado o LP brasileiro CBS Odissey, 1976, digitalizado por Avicenna. Na repostagem de 2023, trago o CD de 1990 com mais dois concertos, também gravados nos anos 70] De lá para cá têm surgido cada vez mais estudos, biografias e gravações, incluindo integrais dos concertos e dos quartetos (às quais infelizmente ainda não tive acesso).
Se posso fazer uma sugestão para a sua audição, é a seguinte: não preste atenção só no efeito geral, nem só nos momentos de arrebatamento dos solos: não deixe de reparar na qualidade da textura e/ou trama da parte orquestral, o tempo todo. Se depois disso você ousar dizer que Saint-George é um “compositor menor”, por favor já mande junto seu endereço postal, que minha carta-bomba não tardará…
Joseph Bologne, Chevalier de Saint-George
DOIS CONCERTOS PARA VIOLINO E CORDAS
Concerto em sol maior, op.8 nº 9
01 Allegro
02 Largo
03 Rondeau
Concerto em la maior, op.5 nº 2
04 Allegro moderato
05 Largo
06 Rondeau
Concerto em do maior, op.5 nº 1
07 Allegro
08 Andante moderato
09 Rondeau
Concerto em re maior, op.5 nº 2
10 Allegro maestoso
11 Adagio
12 Rondeau
Orquestra de Câmara Bernard Thomas
Jean-Jacques Kantorow, violino solo e regência
Gravação original Arion France, 1974/1976
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – MP3 320kbps
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Flac
Ranulfus