Makar (plural: makaris): originalmente o nome dos bardos da corte real escocesa nos séculos XV e XVI, posteriormente atribuído aos gigantes literários do Iluminismo de Edinburgh no século XVIII, e hoje um termo para se referir a um menestrel ou poeta escocês”
A primeira viagem de Haydn a Londres, em 1791, rendeu-lhe um encontro com o editor William Napier, que tinha o plano de publicar coleções de canções escocesas arranjadas por grandes compositores do continente. Napier, claro, sonhava contar com Haydn, mas as dívidas em que chafurdava tornavam altamente improvável remunerar à altura o maior mestre vivo da nobre Arte. Ainda assim, devia ter a cara bastante dura, pois fez a proposta ao Mestre de Rohrau e, para sua surpresa, não só ela foi aceita, como Haydn declinou qualquer pagamento antecipado. Acabou por arranjar-lhe cento e cinquenta canções, que salvaram o editor da prisão por insolvência e abriram um rico filão.
Em Edinburgh, como já lhes contei noutra postagem, George Thomson resolveu explorar a vereda aberta por Napier, editando arranjos para voz e conjunto de câmara para numerosas canções de diversas nacionalidades. Para refinar as letras, em sua maioria em dialetos considerados chucros, Thomson contou com a valiosa assistência de seu amigo Robert Burns, o poeta nacional da Escócia. Para os arranjos, recrutou a crème de la crème da Música continental, incluindo o próprio Haydn e, como vimos há alguns meses, aquela fonte de enxaqueca de nome Beethoven. Entre bloqueios continentais napoleônicos e a genuína teimosia beethoveniana, o tráfico de música através da Mancha floresceu e rendeu algumas boas centenas de publicações, a maioria das quais hoje jaz em esquecimento.
Quando publiquei os arranjos de Beethoven, há alguns meses, vários leitores-ouvintes, ao manifestarem sua grata surpresa com o evidente zelo que o renano dedicou à tarefa, estranharam nas interpretações a falta de um sotaque mais apropriado às canções e suas origens que, se não de todo folclóricas, são por demais plebeias para que, na voz impostada de cantores líricos, não soem constritas.
Creio, pois, que esses leitores-ouvintes gostarão dessa gravação que ora lhes trago. Com exceção da primeira e da penúltima faixas, todas as outras foram adaptadas por notáveis compositores alemães e austríacos, e aqui aparecem em seus arranjos autênticos. O conjunto Makaris interpreta-as com um gracioso equilíbrio de precisão clássica e espontaneidade popular. A soprano Fiona Gillespie, que vem duma família com longa tradição em música celta, tem a voz sob medida para o repertório, e seu bonito timbre, aplicado a inflexões escocesas e livre de vibrato, garante o encanto do começo ao fim. Os demais músicos também são extraordinários, e o clima geral é de frescor e espontaneidade, como se estivéssemos a acompanhar o animado sarau de talentosos amigos. De lambujem, para alegria dos completistas compulsivos, duas premières mundiais (faixas 12 e 18), de versões preliminares de arranjos de Beethoven que nosso herói acabou por reescrever porque Thomson as achou difíceis demais para o seu público-alvo (o que o fez levar, como já lhes contei, um senhor sabão do mestre). Aos brasileiros, há a curiosidade do arranjo de Sigismund von Neukomm (faixa 11), que morou no Rio de Janeiro entre 1816 e 1821: por muitos anos atribuído a seu professor Haydn, sabe-se hoje que foi feito pelo então aluno.
Wisps in the Dell será um deleite aos ouvidos menos ortodoxos, e o belíssimo som dos Makaris fica fortemente recomendado para quem quiser começar o dia a sorrir – do que, sinceramente, estamos todos precisando demais.
MAKARIS: WISPS IN THE DELL
ANÔNIMO
1 – The Burning of Auchindoun (arranjo para vozes)
Carl Maria Friedrich Ernst Freiherr von WEBER (1786-1826)
2 – Canções populares escocesas – No. 4, True-hearted Was He, J. 298
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
3 – Canções irlandesas, WoO 152 – No. 14, Dermot & Shelah
Franz Joseph HAYDN (1732-1809)
4 – I Do Confess Thou Art Sae Fair, Hob.XXXIa:110
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
5 – Canções irlandesas, WoO 152 – No. 8, Come Draw We Round a Cheerful Ring
Franz Peter SCHUBERT (1797-1828)
6 – An Old Scottish Ballad, D. 923
Joseph HAYDN
7 – My Love She’s but a Lassie Yet, Hob.XXXIa:194
Ludwig van BEETHOVEN
8 – Vinte e cinco canções escocesas, Op. 108 – No. 2, Sunset
Ignaz Josef PLEYEL (1757-1831)
9 – Trinta e duas canções escocesas – No. 13, The Ewe Bughts, B. 719
Johann Nepomuk HUMMEL (1778-1837)
10 – Arranjos de canções escocesas para Thomson, S. 169: Jock o’ Hazeldean
Sigismund Ritter von NEUKOMM (1778-1858)
11 – Jenny Dang the Weaver, Hob.XXXIa:240 (atribuído anteriormente a Joseph Haydn)
Ludwig van BEETHOVEN
12 – On the Massacre of Glencoe, Hess 192 – PRIMEIRA GRAVAÇÃO
Carl Maria von WEBER
13 – Dez canções escocesas: No. 6, Pho Pox o’ This Nonsense, J. 300
Friedrich Daniel Rudolf KUHLAU (1786-1832)
Sete variações sobre uma canção escocesa, Op. 105
14 – Tema – Variação 1 – Variação 5 – Variação 6 – Variação 7
Joseph HAYDN
15 – My Boy Tammy, Hob.XXXIa:18
Ignaz PLEYEL
16 – Trinta e duas canções escocesas – No. 17, Sweet Annie, B. 723
Carl Maria von WEBER
17 – Dez canções escocesas: No. 1, The Soothing Shade of Gloaming, J. 295
Ludwig van BEETHOVEN
18 – Bonny Laddie, Highland Laddie, Hess 201 – PRIMEIRA GRAVAÇÃO
Ignaz PLEYEL
19 – Trinta e duas canções escocesas – No. 10, From Thee Eliza I Must Go, B. 716
Leopold KOŽELUH (1747-1818)
20 – Vinte canções escocesas, irlandesas e galesas, P. XXII:1 – Should Auld Acquaintance Be Forgot
Muzio Filippo Vincenzo Francesco Saverio CLEMENTI (1752-1832)
21 -“Lochaber”, ária escocesa
ANÔNIMO
22 – The Bonnie House o’ Airlie (arranjo de Doug Balliett)
Ludwig van BEETHOVEN
23 – Vinte e cinco canções escocesas, Op. 108 – No. 13, Come Fill, Fill, My Good Fellow
Vassily