Gostaria de saber quem teria sugerido a Francis Ford Coppola o compositor para a sua bela versão da obra de Brahm Stoker, Drácula, de 1992. Quando vi o filme no cinema a trilha me marcou como toda boa trilha o faz conosco: como um personagem que é parte indissociável da película. Procurei saber do autor e encontrei o impronunciável prenome de ‘Wojciech’ Kilar. Curiosíssimo. Na época não havia internet e nunca ouvira qualquer comentário sobre este compositor, cuja figura singularíssima lembra ligeiramente o próprio Nosferatu de Murnau e cuja cabeleira diáfana e original talvez tenha inspirado a coisa mais esquisita do filme de Coppola: o penteado do protagonista em suas primeiras aparições em cena.
É tentador fazer comentários de natureza cinematográfica e mil piadas envolvendo Bela Lugosi, Christopher Lee, Ed Wood e até Chico Anísio com o seu impagável Bento Carneiro – ‘o vampiro brasileiro’, mas estamos aqui para falar da música. O Sr. Kilar foi um formidável compositor e ao que parece, desde a sua trilha para o filme de Coppola, veio sendo cada vez mais requisitado pelo cinema e correspondendo com seu ressaltado talento, como inspiradíssimo melodista e exímio orquestrador. Temos nesta trilha as provas disso. Seu domínio da paleta orquestral é soberano, digno herdeiro de Berlioz, Korsakov, Mussorgsky, Richard Strauss, Ravel… e após ouvi-lo em certas faixas como “Love Remembered” (número7) a sua catadura meio vampiresca se metamorfoseia aparecendo um afável compositor e maestro que gosta de gatos; além disso o Sr. Kilar possui enfim a pedra filosofal necessária a todo artista: uma imaginação maravilhosa.
Wojciech Kilar nasceu em 1932 em Lviv (também difícil de se pronunciar) – desde 1945 parte da Ucrânia. Seu pai era médico e sua mãe atriz. Passou a maior parte da vida em Katowice, Polônia; foi casado com uma pianista, Barbara Pomianowska. Kilar estudou nas melhores academias de música da Polônia, incluindo a escola do estado de Katowice, com a compositora e pianista Wladislawa Markiewiczówna (cruzes e alhos!), dentre outros grandes nomes da música erudita na Polônia em seu tempo; indo enfim aperfeiçoar a sua arte em Paris, sob a orientação da matriarca de inúmeros compositores do século XX, Nádia Boulanger. Kilar pertenceu, junto a nomes como Henryk Gorecki e Penderecki, ao movimento polonês de música avant-garde na década de 60. Exercendo por muitos anos a presidência da Associação de Compositores Poloneses. Sua associação com o cinema vem de muito antes do seu trabalho para Coppola, desde 1959, trabalhando para aclamados nomes como Andrzej Wajda e Krzystof Kieslowsky. Trabalhou para mais de uma centena de filmes em seu país, sendo o Drácula de Coppola seu primeiro trabalho para um filme de idioma inglês. Desde então, trabalhou para Roman Polansky em três filmes: Death and the Maiden (1994), The Night Gate (1999) e The Pianist (2002); mais Portrait of a Lady, de James Campion. A trilha do trailer de ‘Lista de Schindler’, é o seu Exodus. Paralelamente a essa produção, continuou a compor obras em diversos gêneros chamados eruditos, vocais, instrumentais e mistos; tendo por marcantes características em sua música um tocante melodismo, uma típica combinação dos timbres graves nos violoncelos e contrabaixos; mais elementos minimalistas associados às progressões harmônicas.
Fazer música assustadora para as cenas de arrepiar não é tão difícil. Mesmo um amador, com certa atitude e um pouco de imaginação, percutindo um piano, por exemplo, pode conseguir certos resultados mais ou menos utilizáveis numa película de José Mojica Marins – nosso Zé do Caixão, Coffin Joe para os aficionados norte-americanos. O problema é ir além disso, trabalhar com sutilezas, pintar em sons certas atmosferas requeridas por um filme de qualidade. Isso o Sr. Kilar faz com perfeição – conhece os efeitos orquestrais como a palma da mão; nem é preciso entrar em detalhes sobre sua habilidade em desenvolver motivos rítmicos e melódicos – aprendeu bem com Beethoven e com Brahms. Uma das faixas mais belas e impressionantes é a de número 5, “Brides”, para a cena na qual – o avisado porém curioso – Jonathan Harker (Keanu Reeves) é seduzido e ‘mordiscado’ pelas três beldades vampiras noivas de Vlad. O portentoso, belo e inesquecível tema, a certa altura, ressurge em modulações inesperadas; desestabilizando o centro tonal, em verdadeiras ‘aparições’ sonoras. A faixa 4, “Lucy’s Party”, é composta com ‘ares amenos’ para uma cena menos terrificante e com toques cômicos. Contudo, logo o compositor descerra seus frasquinhos de sutis efeitos e os compassos aparentemente inocentes se veem invadidos por sombras que rondam, se insinuam, como um velho e exótico perfume que se imiscui por alguma janela. Instaurando uma atmosfera sombria, insana e ameaçadora. Na imagem acima, um autógrafo do compositor com a célula motívico-melódica principal da trilha sonora. Costumo pensar que a música chamada erudita do século XX encontrou generoso refúgio no cinema, basta pensar em nomes de gênios como Miklos Rozsa, Ennio Morricone, John Williams e tantos outros.
O compositor divide a trilha do Drácula de Coppola com a cancioneira e intérprete escocesa Annie Lennox (“Love Song for a Vampire”, faixa 16). Sendo um filme dos anos 90, mesmo com toda austeridade do personagem e romance ‘gótico’ do enredo, a produção não poderia deixar de exigir uma cantilena para tocar nas rádios e vender melhor o produto. Ora, não é das piores, não faria feio em nenhum comercial do Dia dos Namorados na Transilvânia. Na verdade, a canção ficou restrita aos créditos do filme e quem como eu tinha a mania de sair da sala de cinema por último, após a derradeira linha dos créditos, teve a oportunidade de ouvi-la na época (mania que adquiri após o filme O Enigma da Pirâmide, não vou revelar a razão mas deixo uma pista: Moriarty!). Sobre a dúvida com a qual abri o texto, possivelmente quem teria indicado Kilar para Coppola poderia ter sido seu tio maestro e compositor, Anton Coppola, que rege esta trilha sonora; à frente de uma orquestra que não está creditada neste disco.
Não poderia concluir sem falar do personagem que rouba a cena (ou todo filme) e que tem tudo a ver com música: Tom Waits no papel de Mr. Renfield – o servo do Conde, enclausurado no hospício do Dr. Seward, se deliciando com substancial dieta de insetos. Pena que não encarregaram Mr. Waits da canção romântica no lugar de Miss Lennox – mas assim talvez ficasse por demais ‘cult’ para os propósitos pecuniários da produção.
O Senhor Kilar se foi em 2013, porém faço votos que tenha sido mordido por uma das noivas de Vlad e que continue pelas noites a tecer a sua genial e bonita música, pelos séculos sem fim.
Wojciech Kilar (1932-2013): Bram Stoker’s Dracula: Original Motion Picture Soundtrack
1 Dracula – The Beginning
2 Vampire Hunters
3 Mina’s Photo
4 Lucy’s Party
5 The Brides
6 The Storm
7 Love Remembered
8 The Hunt Builds
9 The Hunters Prelude
10 The Green Mist
11 Mina & Dracula
12 The Ring of Fire
13 Love Eternal
14 Ascension
15 End Credits
16 Love Song for A vampire – Vocals, Written by Annie Lennox.
Wellbach