Claude Debussy (1862-1918): Nocturnes – quatro grandes gravações (e La Mer, Prelúdio, Petite Suite, etc) – Paray / Detroit, Ormandy / Philadelphia, Svetlanov / Philharmonia, Jaarvi / Cincinnati #DEBUSSY160

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160 anos de Debussy

Claude-Achille Debussy (Saint-Germain-en-Laye, 22 de Agosto de 1862 — Paris, 25 de Março de 1918)

Nocturne: Blue and Silver—Bognor, por James Whistler

Debussy escreveu esta nota introdutória para os Noturnos:

“O título Noturnos deve ser entendido aqui em um sentido geral e, sobretudo, decorativo. Não se trata, portanto, da forma usual de um noturno, mas das várias impressões e efeitos especiais da luz que a palavra sugere.

Nuages (Nuvens) evoca o aspecto imutável do céu com o movimento lento e melancólico das nuvens, que se dissolvem em tons de cinza com leves toques de branco.

Fêtes (Festas) trazem o ritmo vibrante, dançante da atmosfera, com lampejos súbitos de luz. Há também o episódio da procissão (uma visão deslumbrante, quimérica), que passa pela cena festiva e se mistura com ela. Mas o pano de fundo permanece sempre o mesmo: o festival com sua mistura de música e poeira luminosa participando do ritmo geral.

Sirènes (Sereias) nos mostra o mar com seus incontáveis ritmos e então, dentre as ondas prateadas pela luz da lua, ouve-se o canto misterioso das Sereias que riem e vão embora.”

Tão geniais quanto o Fauno e La Mer, e situados cronologicamente entre essas duas obras, os Noturnos dão às orquestras e regentes a oportunidade de mostrarem suas capacidades de produzirem sonoridades raras, suaves, momentos de luz e sombra, solos que dependem mais de um cuidadoso cantabile do que de virtuosismo acelerado. Nesse sentido, e só nesse, eles lembram os Noturnos para piano de Chopin, porque em aspectos mais formais essas composições são bem diferentes das do polonês: como o próprio Debussy deixou claro, não se trata de forma dos noturnos que as pianistas adoravam tocar para seus namorados e noivos. Debussy teria sido inspirado por uma série de quadros impressionistas, também intitulados Nocturnes, de James Whistler, pintor que vivia em Paris naquela época. Sem dúvida estão mais próximos da pintura do que dos Noturnos de Chopin.

Em homenagem aos 160 anos de Debussy, vamos fazer um passeio pelas grandes gravações desses Noturnos. De início, nos voltamos para dois regentes dos tempos da brilhantina e das fotos em preto e branco, dois franceses que alcançaram o auge de suas carreiras regendo repertório francês nos EUA: Charles Munch e Paul Paray. A gravação da Symphonie Fantastique de Berlioz por Paray é muito recomendável, assim como o Ravel de Munch, cheio de delicadeza e energia ao mesmo tempo, que você confere nas postagens de FDP Bach aqui (Bolero, La Valse, etc.) e aqui (Daphnis et Chloé). Ambos os maestros também gravaram versões espetaculares da Sinfonia com Órgão de Saint-Saëns, nos primeiros anos do stereo, gravações que muitos audiófilos usaram para testar equipamentos de som, tamanha era a potência dos graves da orquestra e do órgão nos LPs.

Mas o assunto hoje é Debussy, e mais especificamente os seus Noturnos, compostos ao longo de alguns anos, finalizados em 1899 e estreados em 1900 (1º e 2º movimentos) e em 1901 (3º mov.) O motivo para a demora na estreia do 3º movimento, “Sereias”, foi a dificuldade de se ter disponível um coral feminino de altíssimo nível para cantar apenas essa obra de cerca de 10 minutos. Provavelmente por esse motivo, Munch gravou em Boston apenas os dois primeiros noturnos, que não precisam de coral. Toscanini e Bernstein, ambos em Nova York, também gravariam apenas os dois primeiros, talvez pela falta de um coral à disposição.

Arturo Toscanini, aliás, tinha credenciais para se impor como referência em Debussy. Consta que, quando Toscanini regeu a estreia italiana da ópera Pelléas, em 1908, ele convidou Debussy para assistir aos ensaios e à grande estreia. Ele não foi, mas escreveu uma carta que mostra a intimidade entre os dois: “Coloco a sorte de Pelléas em suas mãos, certo como estou de que não poderia desejar outras mais leais ou mais capazes. Pelo mesmo motivo, gostaria de de ter trabalhado ela com você”. Ouçam La Mer com Toscanini, é uma das melhores gravações. Mas aqui, com base nas suas gravações dos Noturnos, ele foi desclassificado porque faltou o 3º movimento.

Paul Paray imitando Albert Einstein

O francês Paul Paray nasceu em 1886, mesmo ano do alemão W. Furtwangler, e as personalidades dos dois podem ser consideradas como polos extremos. Muito se falou, na crítica especializada, sobre Toscanini como o anti-Furtwangler: de fato, assim como o francês Paray, o italiano corre muito no primeiro movimento: as “Nuvens” parecem sopradas por um forte vento. Enfim, voltando a Paray, ele tentou a sorte como compositor e, após alguns sucessos na década de 1910, largou a caneta para se dedicar à batuta a partir de 1920, ou seja, dois anos após a morte de Debussy. Paray estreou obras de Maurice Ravel, Florent Schmitt, Lili Boulanger e muitos outros. Após passar a vida na França à frente das orquestras Lamoureux e Colonne (se demitindo desta em 1940 em protesto contra os nazistas), Paray deve ter ganhado bem mais dinheiro já idoso, quando assumiu a Orquestra Sinfônica de Detroit, que ele elevou ao nível das maiores do mundo no período em que ali viveu, 1953 a 1963, recebendo altos salários na cidade da Ford, que vivia o boom dos automóveis e do american way of life. As gravações de Paray são quase sempre com andamentos rápidos e um clima leve, despreocupado, é nesse sentido que ele polariza com seu contemporâneo Furtwangler, famoso pelos adagios intermináveis e temperamento sério e grave que, aos olhos de Debussy, soaria como pura prepotência vazia. A gravação de Paray dos Noturnos, porém, me parece exagerar no clima leve e apressado: as nuvens, como já disse, são sopradas com força, e a procissão do segundo movimento corre a ponto de suar… E as sereias, com Paray, cantam tudo em 7min46s, sem o ar de mistério e de suavidade que pedem as indicações da partitura (“modérément animé“, “sourdine“, “très expressif et très soutenu“…). Paray poderia ser eliminado nessa competição por queimar a largada, mas mantive sua gravação aqui para termos justamente essa diversidade de pontos de vista sobre Debussy, e repito: ponto de vista de um maestro que, como Toscanini, já era adulto quando Debussy morreu, conheceu vários de seus amigos, então não é nenhum palpiteiro que caiu de para-quedas nesse repertório. Além do mais, o álbum traz a interessante e pouco gravada Petite Suite, de 1889, originalmente para piano e aqui em orquestração de Henri Büsser. Supõe-se que Debussy aprovava essa orquestração, porque ele a regeu em uma das vezes em que pegou a batuta para ganhar uns trocados. Essas gravações da Petite Suite (obra bucólica e simples, que combina mais com o jeitão de Paray) e das Valsas Nobres e Sentimentais de Ravel são absolutamente sensacionais.

Além de Paray, escolhemos outra gravação dos primeiros anos do stereo, período em que a cada ano surgiam inovações nos microfones e outras mudanças tecnológicas muito rápidas. O Debussy da Orquestra da Filadélfia com Ormandy não é tão lembrado, mas chamou nossa atenção desde a primeira audição. Eugene Ormandy (Budapeste 1899 – Filadélfia 1985) estudou violino na Hungria, onde também foi aluno de Bartók e Kodály. Viajou para os EUA para atuar como solista, mas acabou se tornando maestro, primeiro acompanhando filmes mudos e depois passando para o repertório sinfônico.

Eugene Ormandy

De 1936 a 1980 esteve à frente da orquestra da Filadélfia, que ficou famosa pelo belo som de seu naipe de cordas, aliás, segundo alguns críticos, certas obras ficavam com uma beleza exterior e sem profundidade. Os maiores solistas da época gravaram na Filadélfia com Ormandy, incluindo Rubinstein, Oistrakh e muitos outros. Como, nos EUA dos anos 1950 e 60, o repertório francês estava praticamente “reservado” para Charles Munch, Paul Paray e Pierre Monteux, Ormandy se destacou em outros compositores como seu compatriota Bartók , o russo Mussorgsky e o espanhol Rodrigo. Mas essas obras de Debussy gravadas entre 1959 e 1964 mostram que Ormandy se sentia em casa também com este compositor – por quem Bartók nutria verdadeira adoração, aliás.

Além de um Prelúdio ao entardecer de um fauno de grande beleza e de uma Danse: Tarantelle styrienne na versão orquestrada por Ravel, temos aqui Noturnos que servem como pinturas detalhadas de três paisagens: primeiro o céu (Nuvens), depois a terra (Festas) e o mar (Sereias). Ormandy segura um pouco os andamentos para mostrar cada detalhe, como o faria depois Haitink com a orquestra do Concertgebouw. Talvez Debussy preferisse sereias um pouco mais agitadas, cantando um pouco mais depressa, mas perdoamos Ormandy pela enorme beleza do conjunto, que não soa arrastado nem pretensioso, ao contrário das interpretações de Giulini (Philharmonia) e Celibidache (Stuttgart). Estes dois últimos regentes (que, grosso modo, são continuadores da tradição germânica de Richard Strauss e Furtwangler) conduzem os Noturnos de forma pomposa, grandiosa, alemã, nada a ver com a suavidade imaginada por Debussy. E no extremo oposto, Paul Paray, o especialista em música francesa já mencionado lá em cima, que despachou os noturnos com uma pressa doida.

Então após ouvir Ormandy, Paray e os desclassificados Giulini e Celibidache, chegamos à conclusão de que a duração do canto das nereias no último noturno deve ficar com não menos que 8 e não mais que 11 minutos. O coro não deve soar heroico (não é Beethoven) nem devocional (não é música religiosa), nem soar carnal e próximo demais: na Odisseia de Homero, ao contrário da feiticeira Circe e da ninfa Calipso, as sereias não encostam em Ulisses, não consumam o ato, apenas cantam no mar enquanto os gregos navegam. Este movimento das Sereias provavelmente foi a partitura que Debussy mais revisou em sua vida, ao longo de vários anos, movido pela enigmática dificuldade de encaixar o som da orquestra e o do coro de mulheres cantando sempre distantes. Vamos ver como os outros maestros e orquestras encaram esse desafio…

Pularemos as décadas de 1970 e 1980, deixando apenas mencionadas três grandes, imensas gravações dos Noturnos que já apareceram aqui no PQPBach: Martinon/Orquestra da Radio Francesa em Paris, Haitink/Orquestra do Concertgebouw de Amsterdam e Jordan/Orquestra da Suisse Romande em Genebra. Nos anos 1990, mais três grandes gravações na América do Norte: Dutoit em Montreal, Boulez em Cleveland, Salonen em Los Angeles. Claudio Abbado é outro maestro com uma forte ligação com esses Noturnos, que ele gravou duas vezes: em Boston (1970) e em Berlim (2001). Só a comparação entre essas duas gravações de Abbado já daria muito pano pra manga.

Mas vamos nos concentrar aqui em duas gravações menos famosas, a de Svetlanov/Philharmonia e a de Paavo Järvi/Cincinnati. Antes, breves palavras sobre duas gravações recentes: Jun Märkl e a Orchestre National de Lyon (2007) têm problemas muito sérios, como os tímpanos em pianissimo em Nuages que ficaram quase inaudíveis… O jovem francês Stéphane Denève e a Scottish National Orchestra (2012) soam bem mais interessantes e anotei aqui que preciso conhecer melhor esse maestro que também tem gravado Ravel, Franck, Roussel, Poulenc… A conferir.

Paavo Järvi (já notaram que os carecas se dão bem com Debussy?)

Paavo Järvi (não confundir com seu pai Neeme, também regente) foi eleito artista do ano pelas revistas Gramophone e Diapason no mesmo ano (2016), lançou uma integral de Tchaikovsky no ano passado, enfim, está no auge da sua carreira. Na década de 2010 foi regente principal em Frankfurt e também na Orchestre de Paris, onde curiosamente não gravou nenhum Debussy (seus principais discos em Paris: integral das sinfonias de Sibelius; Réquiem de Fauré; Chopin com Khatia Buniatishvili). Até 2022 esteve à frente da NHK, principal orquestra de Tóquio, e hoje chefia a Tonhalle-Orchester de Zürich, Suíça. Mas a gravação que trazemos aqui é anterior, Paavo Järvi aos quarenta e poucos anos regendo Debussy em Cincinnati, nos EUA.

Ele foi titular da Orquestra de Cincinnati entre 2001 e 2011, com várias gravações realizadas para o semi-defunto selo Telarc. Além do repertório mais famoso neste álbum – Prélude à l’après-midi d’un faune, Nocturnes, La Mer – temos uma obra curta e pouco gravada: Berceuse Héroïque, de 1914, um raríssimo momento em que Debussy expressa sentimentos tristes e solenes. Trata-se de uma “homenagem a Sua Majestade o Rei da Bélgica e a seus soldados”, composta logo após a invasão da Bélgica pelas tropas alemãs, sob resistência heroica dos belgas. É realmente estranho ouvir Debussy melancólico e heroico, mas afinal, o que a guerra não faz com as pessoas, não é?

Mas após esse breve passagem pela Berceuse (em francês: canção de ninar), voltemos aos Noturnos, compostos ainda muito antes de qualquer rumor de guerra: aqui temos o Debussy bem distante de sentimentos românticos, o que lhe preocupava era o lento movimento das nuvens, do mar e, quando ele chega ao elemento humano, no movimento central, são festas e procissões, nada de herói romântico solitário. E há algo de hipnótico nas sereias de Cincinnati, na forma como elas repetem seu canto. Nessa gravação elas estão meio distantes, parecem guardar alguns metros de distância da orquestra, mas talvez seja mera ilusão… é o tipo de música que pode iludir.

Além do canto das sereias que temos enfatizado aqui, outra coisa interessante de se comparar entre as gravações é o rufar grave dos tímpanos no início e do fim do primeiro noturno. Os tambores devem sempre soar discretos, um som atmosférico, pois a partitura indica pianissimo, alternando entre dois e quatro pês (pp, ppp, pppp). E ao mesmo tempo devem ser audíveis, missão nada fácil para músicos e engenheiros de som. Os tambores de Cincinnati com Järvi ficaram bem gravados, mas menos expressivos do que os da Philadelphia Orchestra com Ormandy.

Deixamos por último o disco que, na classificação aqui de casa, reina supremo como a maior gravação dos noturnos: não é um francês, e sim o russo Evgeny Svetlanov (1928-2002) regendo a orquestra inglesa Philharmonia em 1992. Muito lembrado por suas interpretações do repertório russo da chamada belle époque anterior à 1ª Guerra Muncial (Tchaikovsky, Rimsky-Korsakov, Glazunov, Scriabin) e também de Mahler, ele mostra aqui sua proximidade com a estética do compositor francês do mesmo período. Ou será que são os músicos da Philharmonia, orquestra fundada em Londres em 1945 e famosa por suas gravações com Klemperer? O timbre suave e elegante das cordas da Philharmonia lembra as orquestras germânicas, mas sem o ar grandiloquente que Debussy detestava em Wagner.

Na ressonante acústica de igreja onde Svetlanov e a Philharmonia gravaram, o fim do movimento Nuages, com as cordas agudas e os tímpanos suaves e misteriosos enquanto as cordas graves atacam em pizzicato, toda essa combinação ecoando poderia ter resultado em um desastre, mas o resultado aqui também é bastante interessante. O coro The Sixteen, mais famoso por suas gravações de música renascentista (aqui), mostra aqui que também se entende muito bem com esse repertório modernista: as sereias estão distantes e misteriosas, mas não tão distantes a ponto de se dissolverem na água salgada e na maresia. Enfim, uma gravação improvável, pouco badalada, em um selo pequeno, mas que eu considero IMPERDÍVEL.

Svetlanov preferia as gravações ao vivo, mas também gravou em estúdio: sinfonias de Scriabin, de Myaskovsky, de Shostakovich e muito mais. Ele era filho de uma cantora lírica do teatro Bolshoi, e costumava dizer: “Meu ideal é que uma orquestra tenha sua própria personalidade, focando em um som específico e não um som padrão. Com a Orquestra Estatal da URSS [e da Rússia desde 1989], consegui manter uma qualidade lírica especial por 30 anos: as boas orquestras são aquelas que cantam.” [P.S. em 2024: confiram aqui mais Svetlanov regendo repertório francês, dessa vez a Valsa e os Concertos de Ravel e em Moscou]

Porém, mais do que em Moscou, ou em Paris onde ele também gravou Debussy com a Orchestre National de France, parece que Svetlanov brilhou mais ainda nesse repertório francês em Londres: lembremos, aliás, que essa cidade sempre acolheu muito bem a música de Debussy desde quando este ainda era vivo. As cordas da Philharmonia, as cantoras do The Sixteen, a acústica da St. Augustine’s Church, tudo funciona à perfeição aqui.

Conclusão: Todas as gravações aqui trazidas são interessantes, ainda que a do velho Paray em Detroit o seja mais por motivos históricos, para ouvirmos os noturnos na marcha apressada que também era a preferência de Toscanini, regente elogiado pelo próprio Debussy. Ormandy, na Filadélfia, atinge o sublime com o legato misterioso das cordas e com o som de seus sopros e do coro feminino gravado em stereo – tecnologia nova na época – com microfones bastante próximos, mostrando por exemplo as diferenças entre as sereias sopranos e as sereias mezzo-sopranos. Já a orquestra de Cincinnati, com Järvi, foi gravada com microfones mais distantes, uma sonoridade mais suave, um Debussy às vezes imerso em nuvens, às vezes com movimentos hipnóticos. E finalmente, meu favorito é um maestro que, a princípio, não teria currículo para disputar com especialistas em Debussy: o russo Svetlanov. A orquestra Philharmonia, gravada em uma igreja de Londres em 1992, consegue soar ao mesmo tempo próxima e distante, os instrumentos muitos claros mas misteriosos, enfim, tudo com uma fluência típica de um mar calmo ou do vento movendo as nuvens no horizonte.

Paul Paray/Detroit Symphony Orchestra (1958-1961)
1-3. Ravel: Daphnis et Chloé, Suite no. 2
4-11. Ravel: Valses nobles et sentimentales
12. Ravel: Bolero
13-15. Debussy: Nocturnes
16-19. Debussy: Petite Suite (orch. Henri Büsser)
Recorded: Detroit, 1958, 1959, 1961

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Eugene Ormandy/Philadelphia Orchestra (1959-1964)
1-3. La Mer
4. Prélude à l’après-midi d’un faune
5. Danse (Tarantelle Styrienne) (orch. Maurice Ravel)
6-8. Nocturnes
Recorded: Broadwood Hotel & Town Hall, Philadelphia, 1959, 1964

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Evgeny Svetlanov/Philharmonia (1992)
1-3. La Mer
4-6. Nocturnes
7. Prélude à l’après-midi d’un faune
Recorded: St Augustine’s Church, London, 1992

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Paavo Järvi/Cincinnati Symphony Orchestra (2004)
1. Prélude à l’après-midi d’un faune
2-4. Nocturnes
5-7. La Mer
8. Berceuse héroïque
Recorded: Music Hall, Cincinnati, 2004

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Svetlanov: nem à esquerda nem à direita

Pleyel

Gyorgy Ligeti (1923-2006): Estudos para Piano (3 gravações: Aimard, Biret, Driver) — 28/05/2023 — 100 anos de Ligeti!

Mais Ligeti aqui.

Luca Chiantore, autor de uma Historia de la técnica pianística que não tem concorrentes no mercado editorial, comenta assim o interesse tardio de Ligeti pelo piano:

Nos anos 60, quando ficou famoso, lhe interessavam as massas sonoras da orquestra e do coral. Entre os intrumentos de teclado, preferiu o órgão, com importantes composições para esse instrumento entre 1962 e 69. Sua investigação pianística parecia ter estancado na juvenil Musica Ricercata dos anos 50, “surpreendente despedida da tradição bartokiana e fulgurante exemplo de sincretismo estilístico”, diz Chiantore.

No final dos anos 70, porém, Ligeti parece ter se cansado do estilo que o fez célebre. A partir de então, com uma peça para dois pianos e um trio para trompa, violino e piano (1982), teve um interesse crescente pelo piano. A elaboração sonora se reduz das grandes massas orquestrais e corais e Ligeti recupera uma dimensão virtuosística da interpretação. Chiantore diz ainda que o título Études, em francês, deixa implícita uma homenagem à tradição do piano romântico e aos estudos de Chopin e Debussy. Ao mesmo tempo, Ligeti fazia esses tipos de diálogos com as tradições anteriores sempre do seu próprio ponto de vista: ele jamais se colocaria como um “neoromântico” ou neo- qualquer coisa. Então, misturada com Chopin e Debussy estava a influência do compositor americano-mexicano Conlon Nancarrow (1912-1997), autor de “49 Studies for Player Piano” compostos para o instrumento – em português se chama pianola – que se toca sozinho, com base em um mecanismo mecânico de cartões perfurados semelhante àqueles primeiros e enormes computadores antigos. Com suas complexidades polirítmicas pensadas para as capacidades das máquinas e, em muitos casos, impossíveis de serem tocadas por duas mãos humanas, os estudos de Nancarrow representaram, para Ligeti, “a maior descoberta desde Webern e Ives… Sua música é original, perfeitamente construída, mas ao mesmo tempo com emoções…”

Então esse Ligeti maduro que compôs estudos nas décadas de 1980 a 2000 parece ter dois lados de sua personalidade, seus Dr. Jekyll and Mr. Hyde, divididos entre o mecânico e o sentimental. E aí entramos na audição comparada dos Estudos por esses três pianistas. O francês Pierre-Laurent Aimard, pupilo de Boulez, enfatiza mais o lado mecânico dessas obras, e quem sou eu para dizer se ele está certo ou errado quando o próprio Ligeti dedicou dois dos estudos para ele? Tendo ensaiado várias dessas obras com o compositor, ele é uma autoridade no assunto. Tanto ele como Idil Biret gravaram os estudos quando o compositor ainda era vivo e o terceiro livro ainda não tinha sido inteiramente publicado.

A pianista turca Idil Biret provavelmente foi a primeira a enfatizar o lado romântico de vários desses estudos, atenuando um pouco o caráter mecânico e mostrando o quanto Ligeti traz, mesmo que disfarçados, elementos do piano romântico de Chopin. Após uma longa carreira na qual foi menina prodígio, depois aluna de Alfred Cortot e Nadia Boulanger em Paris, depois concertista com um imenso repertório que inclui gravações dos Estudos de Chopin e dos Études-Tableaux de Rachmaninoff (na verdade ela gravou as obras completas de ambos pela Naxos), não chega a espantar que a sua interpretação de Ligeti tenha conseguido encontrar no compositor esses discretos elementos de sensibilidade romântica em estudos como o lento nº 11, “En suspens” – Andante con moto, avec l’élegance du swing e no nº 11, con delicatezza.

O inglês Danny Driver parece, em muitos estudos, buscar um caminho do meio entre essas duas interpretações. Tanto em termos de estilo como nos andamentos, ele vai se equilibrando entre a técnica e o sentimento. Entre a velocidade estonteante e a comunicação com o ouvinte, que às vezes exige pequenas pausas para que os detalhes apareçam. Os outros dois também fazem esse difícil equilíbrio, é claro, mas acabam pendendo para um dos dois lados como já disse acima.

Por exemplo no mais longo dos estudos, o diabolicamente difícil nº 13, “L’escalier du diable” (A escada do diabo) – Presto legato ma leggiero, com seu movimento ascendente alucinante, Aimard despacha tudo em 5min16s, Biret faz tudo com mais calma em 6min50, deixando transparentes para o ouvinte alguns truques da partitura, enquanto Driver corre quase tanto quanto o francês (5min23s).

Ao contrário de compositores que mandam o intérprete encostar nas cordas do piano ou usar objetos como moedas e vidros para mudar o som do instrumento (é o caso de Cage, Gubaidulina, Vasks e muitos outros das últimas décadas), Ligeti inova apenas no teclado mesmo: o exemplo mais evidente é o 3º estudo, “Touches bloquées”, ou seja, teclas bloqueadas, no qual algumas teclas ficam travadas pelos dedos sem fazer som, o que muda os harmônicos das outras notas, além de criar irregularidades novamente bartokianas. Como explica Idil Biret: “O pianista segura certas notas com o dedo sem fazer som e, enquanto isso, toca as outras; quando chega às notas bloqueadas, não sai som. Isso nunca tinha sido feito antes.”

As instruções de Ligeti muitas vezes são detalhadas e mesmo contraditórias: há uma grande interesse em sons com a repetição precisa das máquinas ao mesmo tempo que há indicações como rubato, con eleganza, con delicatezza, cantabile, with swing… Todas essas indicações vão mais ou menos no sentido contrário da “máquina de precisão”, expressão que pego emprestado de um movimento do seu segundo quarteto de cordas (1968) com a indicação “Come un meccanismo di precisione”.

Danny Driver, no livreto do seu disco lançado há poucos anos, resume assim os desafios de se tocar esses estudos:

Ligeti himself spoke of imagining in the Études ‘highly emotive music of high contrapuntal and metric complexity, with labyrinthine branches and perceptible melodic forms, but without any “back to” gesture, not tonal but not atonal either.’

On a personal note, the process of preparing and repeatedly performing the Études over several years has been an exhilarating and exhausting venture. For all their technical pyrotechnics, I have always believed that they must not become an aural-visual spectacle, a Herculean tour de force that can leave audiences stunned by achievement yet left in the cold. As E D Hirsch might explain, we must not ignore the ‘ghost in the musical machine’ or imagine that ‘the problems of interpretation will be resolved into operational procedures’. Putting the emotional and evocative power of these pieces centre stage despite their intransigent virtuosity is—for me at least—the ultimate challenge laid down by these extraordinary works.

Coloana Infinitului – dia

O título de cada estudo traz referências ou dicas de ideias a ele relacionadas: em vez de dar nomes como “estudo de terças” ou “arpejos compostos” (Debussy), Ligeti dá nomes provocativos em várias línguas, como Désordre (Desordem), Fanfares e Der Zauberlehrling (O aprendiz de feiticeiro). E o que dizer do estudo 14, Coloana infinită? Representada nas fotos ao lado tanto de dia como de noite, a coluna é uma escultura na Romênia, construída em 1938 em homenagem aos jovens mortos na 1ª Guerra Mundial. Uma bela escultura que, vista de perto, deve causar algumas ilusões de ótica. O andamento descrito por Ligeti é Presto possibile, tempestoso con fuoco.

Coloana Infinitului – noite

Para Aimard, o tempestoso significa uma sonoridade forte e opressora, enquanto o con fuoco indica sons novamente em estilo de máquina, tirados do piano com maestria. Biret, bem pelo contrário, parece observar a tempestade do conforto do seu banco de pianista e dela extrai cores menos preocupadas, mais calmas. Driver mais uma vez ocupa um lugar entre os dois anteriores: sua articulação rítmica lembra mais a das mãos de Aimard, mas seu coração parece estar com o de Biret.

Gyorgy Ligeti: Études nº 1 a 15, Musica Ricercata
Pierre-Laurent Aimard, piano

Recorded: Salle de Musique, La Chaux de Fonds, 1995-1996

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Gyorgy Ligeti: Études nº 1 a 14 e 14a
Idil Biret, piano

Recorded: Clara-Wieck-Auditorium, Sandhausen, 2001

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Gyorgy Ligeti: Études nº 1 a 18 (livros 1 a 3 completos)
Danny Driver, piano

Recorded: St Silas Church, London, 2019

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Étude 8 – Fém (metal, em húngaro) – Manuscrito com anotações de Ligeti em italiano, inglês, francês e alemão: vivace, risoluto, con vigore, with swing, alla danza, elastisch, polyrhythmische…
Fonte: Klavier-Festival Ruhr

Pleyel

Guia de Gravações Comparadas – César Franck (1822–1890): Sonata para Piano e Violino

200 anos de César Franck (Liège, 10 de dezembro de 1822 — Paris, 8 de novembro de 1890)

César Franck é um compositor com algumas características muito curiosas. Quase todas as suas obras que ainda são tocadas são as que ele escreveu quando tinha mais de 50 anos de idade e a Sonata para piano e violino é sem dúvida a que mais ouvimos por aí hoje em dia, tanto em gravações como ao vivo. Embora suas obras para piano sejam poucas, Franck entendia muito de piano – e também de órgão, claro, como veremos na postagem de amanhã. De violino, ele entendia menos: em sua famosa sonata, ele não usa técnicas como o pizicatto ou outras mais raras, de forma que o tom do violino é quase sempre cantante, melódico, e se é fácil para o violinista tocar todas as notas, o difícil é expressar a ampla palheta de sentimentos dos quatro movimentos, ao mesmo tempo que se deve manter a compostura pois é música cheia de diálogos de tipo contrapontístico, de variações sobre alguns poucos temas que vão reaparecendo ao longo dos movimentos. Para o pianista, por outro lado, há algumas passagens mais carregadas de notas, com o tema dando as caras no teclado junto a sofisticadas harmonias em arpejos e graves profundos.

Temos tantas gravações antológicas dessa sonata aqui no PQP Bach que na postagem de hoje, em comemoração ao seu aniversário, vou listar nada menos que sete interpretações notáveis, trazidas aqui ao longo dos anos por meus colegas de blog, sobretudo por FDP Bach que é talvez o mais romântico entre nós. Então vamos, em ordem cronológica, para evitarmos um tipo de competição nem sempre saudável…

Batiashvili e Gigashvili (2022)
Uma extraordinária violinista georgiana. O Franck deles me impressionou demais. Sua admirada Sonata para Violino traz um diálogo íntimo entre violino e piano, que vai do encanto terno à paixão fascinante. O momento introdutório do Allegretto ben moderato já mostra as muitas nuances de Batiashvili: sua qualidade de tom vibrante e fraseado fluido lembram vividamente a voz humana. As primeiras notas são um sussurro e um prenúncio do que está por vir. Bela interpretação! O desempenho de Gigashvili também é sólido: além de se alinhar perfeitamente às linhas do violino, ele adiciona profundidade aos grandes momentos e responde com sensibilidade às mudanças de cores harmônicas de Franck. (PQP Bach)

Franck / Szymanowski / Chausson / Debussy: Secret Love Letters (Batiashvili, Nézet-Séguin, Gigashvili)

Faust e Melnikov (2017)
Única postagem de hoje no meio das outras recicladas. Isabelle Faust usa um violino Stradivarius de 1710 com cordas de tripas de boi ou de carneiro, Alexander Melnikov usa um piano Érard, circa 1885, ou seja, se enquadram na corrente das interpretações historicamente informadas (nome que pressupõe que as outras todas são ingênuas sobre aspectos históricos… mas aqui não é o momento para essa discussão espinhosa). Faust usa menos vibrato do que a média dos violinistas aqui listados, mas não pensem que ela faz um com totalmente seco e sem vibrato: ela solta suas emoções com equilíbrio e ponderação, virtudes importante ao se tocar Franck. O disco tem, no que seria o lado B, o Concerto para piano, violino e quarteto de cordas de Chausson (1855-1899), aluno e amigo de Franck. (Pleyel)

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Melnikov e Faust

Ehnes e Armstrong (2015)
Poucas obras me emocionam tanto quanto esta Sonata de Cesar Franck. E nas mãos deste excepcional músico chamado James Ehnes ela se torna ainda mais emocionante. Li em algum lugar que Ehnes é o Heifetz do século XXI. Ele imprime na sua interpretação aquilo que sempre procuramos, e que encontramos apenas nos grandes mestres: clareza, objetividade, sem subterfúgios, fazendo parecer fácil o que não é. (FDP Bach)

Cesar Franck (1822-1890) – Sonata in A – Richard Strauss (1864-1949) – Violin Sonata in E flat, op. 18 – James Ehnes, Andrew Armstrong

Perlman e Argerich (1998)
A admiração entre ambos, sempre mútua e imensa, teve que esperar até o verão de 1998 para virar parceria nos palcos. O repertório não fugiu do habitual: a sonata de Franck, em que a Rainha já acompanhou tantos violinistas, e a “Kreutzer” de Beethoven, para a qual é difícil imaginar pianista melhor. O recital é uma deleite tão grande quanto devem ter sido seus bastidores. (Vassily)

Viva a Rainha! – As Idades de Marthinha: a Sexta Década (1991-2000) [Martha Argerich, 80 anos]

Dumay e Pires (1993)
Gosto muito da sonata de Franck. Considero-a de extrema sensibilidade e delicadeza. Imagino sempre, ao ouvi-la, que estou deitado na relva, ao lado de um regato tranqüilo, com uma leve brisa soprando. (FDP Bach)
Gostei imensamente deste grande trabalho da portuguesa Pires e de seu estranho violinista francês Dumay. (PQP Bach)

Cesar Franck (1822-1890), Claude Debussy (1862 – 1918), Maurice Ravel (1875-1937) – Sonatas para Violino e Piano

Chung e Lupu (1977)
A cumplicidade entre os dois músicos está presente em todos os momentos, e o destaque novamente fica para a sonata de Franck, uma das melhores gravações que já ouvi desta obra. O Ravel e o Debussy só confirmam a qualidade, mesmo sendo obras pouco gravadas. (FDP Bach)

Cesar Franck – Sonata in A Major for Violin & Piano, Claude Debussy – Sonata for Violin & Piano – Kyung Wha Chung and Radu Lupu

Ferras e Barbizet (1966)
Violino e piano cantam naturalmente, sem nunca tentar qualquer hegemonia. Pouquíssimos conseguiram tirar do violino sonoridades tão melancólicas, atormentadas e ao mesmo tempo elegantes. (Pleyel)

Franck, Lekeu, Brahms, Schumann – Sonatas para violino e piano

São muitas as nuances, muitas as formas de se agarrar as frases fugidias de Franck que escorrem pelas mãos como água… E isso porque não citamos os arranjos: para piano e flauta, para piano solo ou ou mais gravado, para piano e violoncelo. Após esse monte de interpretações possíveis de uma obra com um pé nos perfumes e fraseados românticos e outro pé firmemente plantado em um procedimento muito erudito de variações sobre curtos temas, um pouco de literatura, por que não? Ao descrever a Sonata de Vinteuil (personagem fictício com características de Franck, de Saint-Saëns, talvez de Fauré e Debussy), o escritor francês Marcel Proust (1871-1922) fala sobre um tema bem no estilo dos de Franck, com reaparições misteriosas. Em uma longa descrição de duas audições de música de câmara, ele compara a frase daquela sonata com uma pessoa desconhecida que Swann encontra sem saber seu nome, o que não impede uma profunda afinidade de se estabelecer, afinidade que reaparece apenas um ano depois por obra do destino.

No ano anterior, numa reunião, ouvira uma obra para piano e violino. Primeiro, só lhe agradara a qualidade material dos sons empregados pelos instrumentos. (…) Mas em um dado momento, sem que se pudesse distinguir nitidamente um contorno, dar um nome ao que lhe agradava, subitamente fascinado, procurava recolher a frase ou a harmonia – não sabia ele próprio – que passava e que lhe abria mais amplamente a alma, como certos perfumes de rosas, circulando no ar úmido da noite, tem a propriedade de dilatar as narinas. [… Depois,] distinguira nitidamente uma frase que se elevava durante alguns instantes acima das ondas sonoras. Ela logo lhe insinuara peculiares volúpias, que nunca lhe ocorreram antes de ouvi-la, que só ela lhe poderia ensinar, e sentiu por aquela frase como que um amor desconhecido.

Num lento ritmo ela o encaminhava primeiro por um lado, depois por outro, depois mais além, para uma felicidade nobre, ininteligível e precisa. E de repente, no ponto aonde ela chegara e onde ele se preparava para segui-la, depois da pausa de um instante, ei-la que bruscamente mudava de direção e num movimento novo, mais rápido, miúdo, melancólico, incessante e suave, arrastava-o consigo para perspectivas desconhecidas. Depois desapareceu. Ele desejou apaixonadamente revê-la uma terceira vez. E ela com efeito reapareceu, mas sem falar mais claramente, e causando-lhe uma volúpia menos profunda. Mas, chegando em casa, sentiu necessidade dela, como um homem que, ao ver passar uma mulher entrevista num momento na rua, sente que lhe entra na vida a imagem de uma beleza nova que dá maior valor à sua sensibilidade, sem que ao menos saiba se poderá algum dia rever aquela a quem já ama e da qual até o nome ignora.

(…) Mas, não conseguindo saber de quem era a obra que ouvira, não a pudera procurar e acabou esquecendo-a. Encontrara na mesma semana algumas pessoas que também se achavam naquela reunião e as interrogara; mas várias tinham chegado depois da música ou partido antes; algumas no entanto lá se achavam durante a execução, mas tinham ido conversar noutra sala, e outras que ficaram a escutar não tinham ouvido mais que o começo. Quanto aos donos da casa, sabiam que era uma obra nova que os artistas contratados tinham pedido para tocar: como estes haviam partido em turnê, Swann não pôde saber mais nada. Tinha muitos amigos músicos, mas, embora relembrasse o prazer especial e intraduzível que lhe causara a frase, vendo diante dos olhos as formas que ela desenhava, era, no entanto, incapaz de a cantar para eles. Depois deixou de pensar no assunto.

Ora, apenas alguns minutos depois que o pequeno pianista começara a tocar em casa da sra. Verdurin, eis que de súbito, após uma nota alta longamente sustida durante dois compassos, ele viu aproximar-se, escapando de sob aquela sonoridade prolongada e tensa como uma cortina sonora para ocultar o mistério de sua incubação, ele reconheceu, secreta, sussurrante e fragmentada, a frase aérea e odorante que o enamorara. E ela era tão particular, tinha um encanto tão individual que nenhum outro poderia substituir, que foi para Swann como se tivesse encontrado num salão amigo uma pessoa a quem admirara na rua e que desesperava de jamais tornar a ver. Afinal, ela afastou-se, guiadora, diligente, entre as ramificações de seu perfume, deixando no rosto de Swann o reflexo de seu sorriso. Mas agora podia perguntar o nome de sua desconhecida (disseram-lhe que era o andante da Sonata para piano e violino de Vinteuil), tinha-a segura, podia tê-la consigo quantas vezes quisesse e tentar aprender a sua linguagem e o seu segredo.

(…) O pintor ouvira dizer que Vinteuil estava ameaçado de alienação mental. E acrescentava que a gente o podia perceber em certas passagens da sua sonata. A Swann não pareceu absurda a observação, mas perturbou-o muito; pois, como uma obra de música pura não contém nenhuma dessas relações lógicas cuja alteração na linguagem denuncia a loucura, a loucura reconhecida numa sonata lhe parecia algo de tão misterioso como a loucura de uma cachorra, a loucura de um cavalo, que no entanto se observam realmente.
(No Caminho de Swann, tradução de Mario Quintana)

Guia de Gravações Comparadas PQP – Schubert: Symphony Nº 9 in C major D.944 ‘The Great’

Certa vez ouvi de um grande amigo, músico dos mais competentes e talentosos que conheço, que considerava a última sinfonia de Schubert a mais perfeita obra do gênero já escrita. Claro que, sendo um julgamento subjetivo, podemos sempre confrontá-lo, mas no frigir dos ovos, temos que concordar que estamos diante de um grandioso monumento de forma, verve rítmica, abundância melódica e imaginação temática. Majestosa, é justamente a forma arquitetônica expandida que desafia sua interpretação: uma leitura completa, com todos os ritornellos, ultrapassa a uma hora de execução. Muitos maestros costumam ponderar quais partes repetem e quais seguem em frente – muitas vezes necessitando entrar em acordo com os músicos da orquestra – , para tentar equilibrar sua imponente estrutura. Há resultados positivos em todos os casos, e a Sinfonia, dita ‘A Grande’, se mantém incólume no repertório básico de qualquer corpo orquestral.

O subtítulo não foi, entretanto, dado apenas por suas dimensões incomuns, mas sim para a diferenciar da 6a. Sinfonia, também em Dó maior, esta conhecida como ‘A Pequena’. Controvérsias sobre sua estréia suscitam inclusive dúvidas sobre a qual delas se referem documentos que datam do início de 1829, e só temos certeza de sua verdadeira primeira apresentação pública em 1839, regida por Mendelssohn, dez anos depois da morte de Schubert. Escrita entre 1825 e 26, até a década de 1930 era chamada de Sinfonia no.7, mas teve sua numeração revogada em função de imprecisões de catálogo, principalmente por conta do esboço para uma Sinfonia em Mi Maior (D729) ter sido completado por Felix Weingartner em 1934 e por Brian Newbould em 1980, e musicólogos tiveram que reivindicar o 7 na ordem da composição. Por isso, depois que Weingartner fez a primeira execução completa da Sinfonia em Mi Maior, esta passou a ser a 7a., e a ‘Grande’ foi promovida a 9a., apesar de não ter sido uma decisão unânime. Mais recentemente, no final da década de 90, essa ordem também foi re-revogada, colocando essa Sinfonia em Mi em outra base catalográfica, e na confusão dos críticos e musicólogos algumas gravações da ‘Grande’ aparecem como 8a. (e a ‘Inacabada’ como 7a… olha o imbróglio). No fim das contas, o público não entendeu nada e as gravadoras, por conta própria, resolveram acabar com a confusão, e a ‘Grande’ ficou como 9a. e ponto final.

Eis alguma leituras essenciais dessa obra:

1.Wilhelm Furtwängler, Berliner Philharmoniker, DG 1952

Essa versão já clássica remonta a uma escola de regência há muito esquecida, na qual o maestro é quase uma espécie de co-autor. A interpretação não tem pudores e não faz nenhuma questão de parecer a mais autêntica ou mais próxima das marcas da partitura. Ele muda os andamentos a seu bel-prazer e cria uma dinâmica própria, fazendo dela uma leitura bastante avançada. A questão é: para o regente se dar ao luxo de tais liberdades, precisa ter um senso estético extraordinário, o que, felizmente, é o caso. Apesar do som mono, é uma gravação incrivelmente bem feita, e merece ser apreciada sem restrições. Vem de brinde a 88 de Haydn, um mimo.

FLAC 248Mb
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2. Wolfgang Sawallisch, Staatskapelle Dresden, PHILIPS 1967

Conheci essa gravação através da Enciclopédia Salvat dos Grandes Temas da Música, lá pela década de 90, e confesso que não esperava muito. Ledo engano: fiquei impressionado com o equilíbrio de timbres e de forma na condução de Sawallisch. É uma das leituras mais convincentes e fluídas que já ouvi. Sawallisch corta as repetições nas medidas certas, e dá certa ênfase nas madeiras, que se destacam sobremaneira nos contornos melódicos,  como poucas gravações fazem, dando sobrevida a acordes fundamentais que não aparecem em outras leituras. É também digno de nota que os andamentos são marcados por uma coerência espontânea e segura, fazendo desta uma das minhas interpretações preferidas, e que, curiosamente, teve várias edições esparsas e nunca foi considerada pela indústria fonográfica uma gravação de destaque. Pena. Não foi lançada em CD avulso, apenas em coletâneas, e essa que ora apresento é justamente uma, meio obscura da série PHILIPS DUO. Mas reitero: uma das versões mais determinadas e convincentes que conheço. E ainda vem no pacote a 5a., 6a. e 8a. Sinfonias. Fica a dica.

FLAC 693Mb
MP3 320Kbps 320Mb

3.Herbert von Karajan, Berliner Philharmoniker, EMI 1977

Devo dizer que sempre tenho receios com Karajan, daquelas leituras assépticas e previsíveis, mas, surpreendentemente, Karajan, ao contrário das expectativas, trata essa obra com singularidade incomum. Não que seja isenta de críticas, mas tem uma grande virtude: é uma leitura altamente diferenciada, que privilegia mais a dramaticidade romântica que o bucolismo clássico. Karajan faz dela uma sinfonia quase wagneriana, enfatizando os trombones como nenhuma outra gravação. Ao final da sua escuta, fico pensando: nossa, Schubert gostava de trombones, eu nunca tinha reparado! Com certeza é a interpretação que melhor destaca o espírito épico da sinfonia. Bom ou ruim, não sei, mas que empolga, empolga. Ademais, tenho a teoria que o melhor Karajan foi para a EMI, e que a DG era só a esposa de fachada.

FLAC 347Mb
MP3 320Kbps 166Mb

4. Carlo Maria Giulini, Chicago Symphony Orchestra, DG 1977

Essa versão de Giulini me estranhou à primeira vista, por conta do contorno legato com que ele conduz o tema principal do Allegro no primeiro movimento. E outro aspecto que me chamou a atenção é a passagem do Andante para o Allegro inicial. Uma pulsação muito diferente, surpreendente, diria, quase invertendo o tempo. Nunca tinha ouvido dessa forma, pareceu até outro tema! Foi uma nova experiência e uma escuta que, confesso, precisei me acostumar, mas acabou por tornar-se prazeirosa, muito propícia para renovar os ares desta obra tão querida. Giulini é um maestro de sensibilidade fora do comum, e consegue sustentar essas licenças sem ter que pedir desculpas nem parecer excêntrico. Em termos de balanceamento de timbres, é a versão mais equilibrada que conheço, fica patente o espírito romântico, à espreita na forma clássica. Também surpreende o fato de que essa gravação foi lançada em LP e não tem correspondente original em CD, que só foi relançada muito tempo depois, em coleções modernas. Os selos não sabem os tesouros que escondem.

FLAC 251Mb
MP3 320Kbps 129Mb

5. Georg Solti, Wiener Philharmoniker, DECCA 1981

Solti é um maestro que admiro profundamente, versátil e contundente, mas é notório que quando falamos de românticos, pós-românticos e modernos ele está totalmente à vontade em seu elemento, mas nos clássicos… bem, não sei se ele consegue o mesmo grau de profundidade. A interpretação é boa, Solti enfatiza a verve rítmica, mas parece que estamos ouvindo Richard Strauss. Percebam o uso de metais, que, diferentemente da abordagem romântica de Karajan, não enfatiza um ou outro, mas seu conjunto. Torna certos momentos dignos de sinfonistas pós-românticos. O problema é equilibrar intenções tão distintas. Só Solti mesmo. No frigir dos ovos diria que ficou bom, mas por vezes me pergunto se funciona para todos os gostos. Também vale a escuta.

FLAC 232Mb
MP3 320Kbps 117Mb

6. Neville Marriner, Academy of St.Martin-in-the Fields, PHILIPS 1984

Essa é a gravação mais ‘correta’, no sentido de procurar um denominador comum genérico, de apresentar um clássico ‘puro’. Não que seja uma interpretação histórica, mas é notório que Marriner prima pela obediência férrea à partitura, e, juntamente com a versão de Abbado, são as únicas que fazem TODOS os ritornellos sem exceção. Os tempos e a dinâmica são clássicos, um purismo que Marriner manteve na gravação do ciclo completo (que inclui a 7a. e a 10a. pela versão de Newbould), da qual esta gravação avulsa faz parte. Apesar dos instrumentos utilizados não serem propriamente ‘de época’, a execução é a que atinge a atmosfera mais clássica e autêntica, se é que podemos falar nesses termos. No final, fica um pouco a sensação de fast-food, mas isso é um problema meu com Marriner. Essa é a recomendada para puristas de estilo.

FLAC 285Mb
MP3 320Kbps 145Mb

7. Claudio Abbado, The Chamber Orchestra of Europe, DG 1987

Essa versão de Abbado é sem dúvida uma das mais aclamadas pela crítica, e merecida, uma vez que foi a primeira gravação que usou o manuscrito original, autógrafo de Schubert, como referência, e não a versão revista pelos editores posteriormente (que são todas as outras gravações aqui colocadas). Apesar disso, a leitura de Abbado não me parece – verifiquem por favor – tão purista quanto a de Marriner, apesar de também primar por todos os ritornellos. Acaba ficando mais livre e espontânea, uma obediência flexível, antes romântica que clássica, à partitura. Abbado tem muita afinidade com Schubert, e sua leitura puxa um pouco para a inerente tendência ao romantismo, e fica uma linha tênue, enrustida, sutil, mas patente. Essa sutileza torna essa uma das leituras mais interessantes que conheço. É curiosa a impressão que estamos ouvindo um Schubert visto por Mendelssohn, e por vezes ambos se misturam. E acrescenta-se ainda o divertido exercício de notar as diferenças da partitura original com a versão do editor. Dica: reparem no Segundo Movimento, o Andante con moto.

A escolha do Chucruten para essa sinfonia recai, portanto, entre essa e a de Sawallisch.

Boa audição a todos.

FLAC 295Mb
MP3 320Kbps 158Mb

CHUCRUTEN

Guia de Gravações Comparadas PQP – Beethoven: Symphony no.6 in F major op.68 ‘Pastorale’

Sim, precisamos falar sobre a Pastoral.

É uma questão importante, urgente, até. Considero esta a mais difícil das sinfonias de Beethoven em termos de categorização histórica. É uma sinfonia clássica com antecipações românticas, mas também é uma sinfonia já romântica em espírito, porém clássica em forma. Seria uma obra atemporal que reivindica independência a uma classificação de estilo? Seja como for, permanece num limiar sutil entre a pura expressão sensível (quase um poema sinfônico) e a forma-sonata expandida. Entre tantas possibilidades, de certa forma algo contraditórias, mantém a Pastoral sua imponente beleza além de qualquer conflito de interpretação. Mas qual delas consegue traduzir de maneira mais plena seu espírito universal? Considero impossível haver um consenso, já que falamos de expressão sensível, mas aponto algumas gravações que entendo como referenciais para esta obra:

1.Bruno Walter, Columbia Symphony Orchestra CBS (1962)

Esta gravação já consagrada é sem dúvida uma das preferidas de público e crítica. É uma leitura sincera e espontânea, que prima pelas harmonias sutis das mudanças de tom, e preserva a orquestração clássica original, quase camerística. Um fato inusitado para a época. Walter capta o estilo bucólico sem preconceitos estilísticos, e essa honestidade de propósitos se configura numa Pastoral de universalidade emocional patente. O último movimento é de uma sutileza comovente.

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FLAC 190Mb

2.Herbert von Karajan, BPO DG (1962)

A contrapartida é a leitura de Karajan do mesmo ano 1962. Insípida e afetada, destoa das demais sinfonias gravadas neste ciclo também já clássico, que (re-)lançou a Filarmônica de Berlim como orquestra de excelência pelo mundo afora, depois do trauma da II Guerra. É uma interpretação bastante forçada, e muito pouco inspirada, trazendo o mesmo Beethoven titânico da V Sinfonia para esta, de caráter absolutamente diverso. Serve para estabelecer um termo de comparação bastante útil entre as leituras clássicas e românticas. A última versão da Pastoral gravada por Karajan em 1984 não é nem digna de estar neste post.

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FLAC 339Mb

3.Nikolaus Harnoncourt, The Chamber Orchestra of Europe TELDEC (1991)

No pioneiro auge das gravações que se pretendiam ‘históricas’ ou ‘de época’, Harnoncourt se mostra surpreendente. Na mesma pegada que outros maestros se aventuraram, notadamente John Eliot Gardiner e Christopher Hogwood, Harnoncourt é o que consegue melhor equilíbrio entre o clássico formal e o bucolismo romântico. Seus ritmos são notadamente clássicos, mas tem uma suavidade ambígua que o coloca num limiar bastante diverso de seus colegas. Gardiner e Hogwood são bem mais carregados de modismos estilísticos que se caracterizam pela leitura histórica, e Harnoncourt opta por deixar a música fluir. A Tempestade nos remete às fúrias de Gluck, e soa com ecos da tempestade e ímpeto que tanto mobilizaram os imediatos antecessores de Beethoven. É a gravação que melhor capta o que talvez teríamos escutado em sua época, combinado com as intenções descritivas pré-românticas do mestre.

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4.Karl Böhm, VPO DG (1971)

Böhm também pertence à tradição romântica alemã, da qual Karajan é seu representante mais famoso. Mas Böhm tem um diferencial: não foi diretamente afetado pela fama megalomaníaca, e se reserva por isso o direito de fazer uma leitura sincera. É um Beethoven romântico por excelência, mas nem por isso menos interessante. Pelo contrário, a sinceridade de Böhm nos contagia, deixando-nos acreditar que talvez Beethoven pudesse ser, na verdade, um romântico enrustido.

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FLAC 376Mb

5.Liszt Transcription – Cyprien Katsaris TELDEC (1981) 

Para quebrar a hegemonia, uma versão para piano. Esta gravação, feita em 1981 pelo pianista grego-francês Cyprien Katsaris foi, estranhamente, a primeira vez que se lançou a transcrição de Liszt. Não é uma versão qualquer, tem a marca de pelo menos dois gênios. Eu gosto muito porque realça as mudanças harmônicas que na orquestra ficam diluídas nos timbres. Aqui, a tonalidade fica em evidência, e percebe-se o quanto essa tal harmonia era cara a Beethoven. E nos mostra uma outra faceta curiosa: música boa é sempre boa, quer original ou transcrita.

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6.Kurt Masur, Gewandhausorchester Leipzig PHILIPS (1973)

Essa gravação eu conheci através da Enciclopédia Salvat dos Grandes Compositores, uma publicação espanhola que teve seus dias de glória no Brasil no final da década de 80. No início me parecia muito razoável, mas só depois que ouvi diversas outras versões (Bernstein-NYPhO, Abbado-VPO e as demais aqui descritas) é que me dei conta que é a leitura que melhor capta o clima de espírito pastoral, independente da abordagem de estilo. Andamentos suaves, dinâmica sutil, timbres bem delineados. Uma tempestade épica, um finale glorioso, faz parecer que todo o universo dança.

Ao lado da gravação de Bruno Walter, considero esta a verdadeira Pastoral. A gravação de Masur com a mesma Gewandhaus de Leipzig feita nos anos 90 não chega aos pés dessa. Confiram.

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CHUCRUTEN

Guia de Gravações Comparadas P.Q.P – Beethoven: Violin Concerto in D major Op.61

Sobre o Concerto para Violino de Beethoven, a melhor definição que encontrei foi a de Otto Maria Carpeaux: “É a única obra do gênero que Beethoven escreveu, mas ninguém duvida: é o maior Concerto para violino que existe, um dos pontos mais altos da eloquência beethoviana”. Apesar de não se poder tomar esta medida como absoluta, conheço muito pouca gente que discorda, ou que pelo menos não o coloque entre os 3 melhores do planeta.

Ao contrário de muita obras beethovianas, este concerto foi escrito com certa rapidez, e, prodigiosamente, no mesmo ano (1806) em que obras-primas como a Quarta Sinfonia e os Quartetos Rasumovsky. Nos cadernos de esboços onde se encontra a maior parte da gênese deste concerto ainda se encontram anotações para o que seria a Quinta Sinfonia e a Sonata para Violoncello op.69. Sem dúvida, um período de sensibilidade ímpar, em que erupções de inspiração jorraram à terra, através do artista, na forma do néctar dos arquétipos sonoros mais sublimes.

Existem várias lendas sobre sua estréia, feita a 23 de dezembro de 1806 pelo violinista cômico Franz Clement, que, ao que parece, fez pouco caso do Concerto (Há uma versão que diz que ele interrompeu o concerto para tocar uma peça frívola de sua própria autoria, e outra que conta que ele o estreou sem nenhum ensaio), tanto que o Concerto demorou para ser aceito pelo grande público. Apenas em 1844 esta obra-prima começou a ser reconhecida, quando foi tocada por Joseph Joachim, sob a regência de Schumann, num contexto romântico, que se encaixa muito mais no espírito da obra.

Assim, seguem algumas opções para a apreciação desta magnífica obra:

1.Jascha Heifetz, Charles Munch: Boston Symphony Orchestra RCA 1955

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Esta é uma das gravações mais cultuadas deste concerto, um “clássico” da discografia mundial, e também uma das experiências pioneiras na gravação estereofônica. Sem dúvida, para um registro de 1955, a sonoridade espanta, mas, claro, a vedete é Heifetz, uma lenda do violino talvez só comparável a Kreisler. Sua sonoridade é maciça, mas ao mesmo tempo suave e decidida, com articulações acima de qualquer comentário, e um fraseado de precisão rítmica incomparável. Mas seriam estas habilidades inegáveis suficientes para garantir a melhor das performances deste concerto? Bem, há controvérsias. Eu não gosto, por exemplo, dos tempos dos andamentos, muito rápidos e pouco reflexivos, para os requisitos espirituais desta obra. Munch, um maestro que tenho no mais elevado patamar de competência estética, é um mestre do romantismo, mas tenho dúvidas se ele conseguiu aqui traduzir todas as nuances de um compositor apaixonado, que parece ter sido o caso de Beethoven na época desta composição. É uma leitura que evoca muito pouco dos ecos românticos que Beethoven prenuncia, privilegiando o classicismo tardio. E Heifetz, sendo Heifetz, nunca iria dar o braço a torcer e tocar a Cadenza de seu arquirival Kreisler, e escolheu as cadências de Joachim e de Auer com pitadas de sua própria autoria, claro. De qualquer forma, é uma interpretação de referência que merece ser visitada. Vem de brinde o Concerto de Mendelssohn, que eu considero uma interpretação extraordinária e até melhor que a de Beethoven.

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2.Nigel Kennedy, Klaus Tennstedt: Symphonie-Orchester des NDR, EMI 1992

frontO único violinista não-judeu desta lista, é um inglês rebelde que flertava com a música pop e que se recusou a ser taxado de violinista clássico. Mas isso só aconteceu depois de uma gravação afortunada das Quatro Estações alcançar 2 milhões de cópias vendidas, a maior da história para esta obra. Famoso desde então, gravou os concertos de Brahms e de Beethoven (este), que considerou o auge de sua carreira clássica, e resolveu cortar o cabelo moicano e tocar jazz. E é exatamente essa vida atribulada e heterodoxa que acaba marcando esteticamente esta gravação: é a versão rebelde deste concerto (apesar de existir uma com Gidon Kremer tocando a cadência de Schnittke que, dizem, é pior), cheia de altos e baixos, de ritmos irregulares e variações de dinâmicas exageradas. Não deixa de ser uma versão interessante, pois é um Beethoven oposto do de Heifetz, sem a polidez e a elegância, mas com brilho e entusiasmo. Tennstedt, um maestro extraordinário, comprou muito bem o desafio, e ele mesmo tem uma visão bastante ousada dos tempos beethovianos. Apesar de ser uma gravação (ao vivo) que a princípio assusta (a cadência de Kennedy no último movimento é muito estranha), ela deixa o espaço necessário para a reflexão, e o resultado, espantosamente, acaba sendo equilibrado. Acompanha dois fragmentos de Bach no Bis. Versão para quem gosta de aventuras.

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3.Pinchas Zukerman, Daniel Barenboim: Chicago Symphony Orchestra DG 1977

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Zukerman é para mim um grande mistério. É um artista mediano, com uma sonoridade relativa e uma técnica nem sempre apurada. Por que razão ele é tão festejado, eis o mistério. Há muitos outros violinistas, melhores que ele, que não tem a mesma visibilidade. Confesso que gosto dele quando resolve tocar viola, mas ele preferiu a vida mundana e se rendeu à fama que o violino dá.
Zukerman gravou, poucos anos antes, as Sonatas para Violino e Viola de Brahms com Barenboim ao piano, e esta incursão se mostrou extremamente proveitosa, pois ambos estavam absolutamente à vontade, sem a pressão habitual dos produtores, e a música fluiu como néctar. Mas neste concerto, essa mágica não acontece. É bastante notório que ele está tímido e percebe-se o limite de sua técnica nos fraseados embolados, principalmente no final do Rondó. É, portanto, uma versão bem-comportada, mas que falta o brilho do violino em sua plenitude, e que tem ainda o freio de Barenboim para ajudar. Tem o mérito de ser uma versão honesta e sincera, que expõe os limites de Zukerman sem tentar mascarar nada. Vem de bônus as duas Romances para Violino, que Zukerman já consegue resultados bem mais convincentes, o que também ajuda a apreciar a gravação.

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4.Isaac Stern, Leonard Bernstein: New York Philharmonic SONY 1959

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Gosto muito desta versão, que envolve Bernstein e Stern em uma de suas suas fases criativas mais notáveis. Stern já era consagrado, e Bernstein, no auge de seus 34 anos, fazia um excelente trabalho em Nova York, levando música clássica ao público leigo com seus concertos comentados. Nesta fase, um Bernstein cheio de energia, conduz o Concerto com uma segurança incrível, contagiando até mesmo o experiente Stern com seu entusiasmo. Stern, um verdadeiro lorde, deixa espaço para Bernstein sem se anular, e esta gravação se configura como uma das mais harmônicas entre solista e regente que conheço. Não é uma leitura propriamente romântica, mas é brilhante e entusiasmada, e também não deixa de emocionar, pela notória comunhão entre os dois artistas que se reconheceram e se deixam envolver pelas virtudes um do outro. O bônus desta edição são algumas aberturas, sempre uma boa pedida.

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5.Shlomo Mintz, Giuseppe Sinopoli: Philharmonia Orchestra DG 1986

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Esta versão é para mim uma referência de qualidade, além de atestar como este concerto é versátil: nas mãos de Heifetz-Munch, ele é clássico, nas mãos de Mintz-Sinopoli, romântico. Mintz, acima de qualquer crítica, tem uma articulação primorosa, mas o que se destaca é a sustentação precisa das notas, pois Sinopoli imprime nesta gravação andamentos muito mais reflexivos, e os fraseados ficam mais longos. Esta, mais do que qualquer outra, é uma leitura contemplativa, que evoca o Beethoven romântico, cujos ecos que prenunciam a Pastoral são inegáveis. E a grande dificuldade de ir por este caminho, é justamente manter também um considerável domínio nas dinâmicas e nos ritmos, coisa que Sinopoli não desaponta e segura as rédeas com firmeza ímpar. Mintz acompanha em comunhão absoluta, tirando de cada tema uma emoção própria. Uma gravação que considero particularmente das mais bonitas deste concerto, e vem também com as Romances de brinde, sempre agradáveis. Excelente pedida.

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6.Itzhak Perlman, Carlo Maria Giulini: Philharmonia Orchestra EMI, 1981

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Consta nos anais da revista Gramophone que esta é a gravação dos sonhos deste concerto. Não é sempre que concordo com a revista, mas neste caso, devo dar o braço a torcer. Considero esta a versão mais límpida e equilibrada deste concerto. Perlman, como sabemos, é absolutamente irrepreensível, sem ser mecanicamente perfeito como Heifetz, e deixa a emoção dos fraseados à flor da pele. Sua articulação precisa, especialmente no Rondó, chega a arrepiar. É uma gravação que transpira emoção sem exagerar no romantismo, equilibrando como poucas a transição beethoviana entre a fluidez clássica e o devaneio romântico. E, conduzindo o cortejo orquestral, o mestre Giulini, regente de minha mais alta admiração. Consegue ser profundo sem ser afetado, revelar a densidade emocional com sutis variações dinâmicas, traduzir o intraduzível das sensações mais ocultas para a contemplação desta obra de arte. Perlman vibra na mesma frequência, e sentimos violino e orquestra um único corpo. Esta gravação não tem bônus, porque ela já é um.

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Guia de Gravações Comparadas P.Q.P. – Tchaikovsky: Symphony no.6 in B minor op.74 ‘Pathétique’

A última Sinfonia de Tchaikovsky é sua obra mais enigmática e também a mais dramática. Escrita entre 1892 e 1893 (estreada em outubro de 1893, uma semana antes de sua morte), é uma de suas derradeiras obras, permeada de histórias e lendas que a confirmam como um testamento autobiográfico musical de seu autor. Extremamente pessoal, é uma das sinfonias que, a despeito dos contrastes temáticos, a situam como uma espécie de canto do cisne do romantismo do século XIX. Apesar de ser um rigoroso crítico com tudo o que compunha, Tchaikovsky teve esta obra especificamente em alta conta, ao ponto de escrever: “Nunca na minha vida fiquei tão satisfeito comigo mesmo, nem tão orgulhoso, consciente de que fizera alguma coisa boa”. Tchaikovsky mesmo escreveu a seu irmão Modest (que, reza a lenda, deu o apelido de “Patética” à Sinfonia), nos seguintes termos: “É um enigma, que as pessoas têm que decifrar”.

Análises psicológicas da vida e da obra de Tchaikovsky apontam para uma obra em que finalmente ele tenha conseguido se expressar verdadeiramente em termos de angústias e tensões psíquicas, sem receios de ter seu orgulho ferido por uma rejeição pública (o que efetivamente aconteceu na estréia). Essa liberdade interior que ele desfrutou em seus últimos dias com certeza contribuíram para este resultado: uma sinfonia que alterna temas ultra-românticos cativantes com outros de dramaticidade épica, em contrastes tão densos que só um mestre da forma e da orquestração poderia transformar em uma obra artística sólida e perene.

Uma das histórias mais interessantes desta sinfonia é uma que conta parte do seu processo criativo, narrado por Robert Littel: “(…) uma noite, em 1892, quando viajava para Paris, ouviu na mente acordes que o fizeram chorar. Eram tão irresistíveis que em quatro dias ele tinha escrito o primeiro movimento de uma sinfonia e o restante, disse ele, estava claramente esboçado em seu espírito”. Esta é uma descrição (também) enigmática de uma inspiração, frequente e abundante na obra de Tchaikovsky, e que expõe sua sensibilidade incomum para estes fenômenos psíquicos.

De qualquer forma, a Sinfonia Patética é uma das grande obras musicais da humanidade, que soube como poucas traduzir a incrível contradição da experiência humana em termos estéticos, talvez como só Beethoven anteriormente tenha conseguido neste grau de sofisticação.

Como é uma obra imensamente gravada, aqui vão algumas leituras que considero icônicas desta Sinfonia:

1.Lorin Maazel, Cleveland Orchestra CBS 1982

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Esta é a versão genérica. Maazel não é propriamente um maestro que extrai densidades relevantes de suas leituras (apesar de haver exceções), e acaba sendo uma interpretação bastante irregular. Maazel já tinha gravado esta sinfonia antes com Viena na década de 60 pela DECCA, mas esta é ligeiramente superior, talvez pelo fato de Maazel estar mais à vontade, com quase 20 anos a mais de experiência desde a primeira gravação. Os andamentos são vigorosos, mas é preciso assinalar que se trata de uma leitura alternativa, com as dinâmicas artificialmente construídas e as passagens líricas ligeiramente forçadas. Lembra-nos o escárnio de Celibidache sobre Maazel: “é um moleque”. Cleveland responde muito bem à sua batuta, e, entre outras coisas, esta gravação se destaca pela simbiose aguçada entre maestro e orquestra. Não é de fato a gravação dos sonhos, mas é honesta em seus propósitos. E vale também pelo bônus, a Marcha Eslava e a 1812 (ótima na versão com coro), com a Filarmônica de Viena.

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2.Claudio Abbado, Chicago Symphony Orchestra SONY 1986

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Abbado é um menos genérico, mas também não chega a empolgar definitivamente. Apesar de ser uma leitura convincente, tem algumas particularidades que não gosto.As pratadas do 3o. movimento poderiam ser bem melhores, e seus momentos tensos e explosivos são mais contidos, e os momentos mais calmos são mais vigorosos. Essa inversão causa um estranhamento para quem já conhece a sinfonia por mãos mais habilitadas, e os contornos melódicos ficam um pouco prejudicados. Abbado já tinha, a exemplo de Maazel, gravado a Patética com Viena em 1974, pela Deutsche, mas é uma gravação que sofre do mesmo mal que a de Maazel: ele era muito mais jovem, menos experiente, e tentou, também como Maazel, causar boa impressão tentando dar profundidade emocional sem muita segurança. Nesta ele está bem mais desenvolto, e apesar de minhas críticas particulares, no final o resultado é muito convincente. Levando em conta as semelhanças, prefiro esta à de Maazel, apesar do bônus desta ser mais sovina, só com a Marcha Eslava.

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3.Sergiu Celibidache, Münchner Philharmoniker EMI 1992

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Agora sim estamos falando sério: esta é uma verdadeira interpretação, no melhor sentido do termo. Celibidache, famoso por ser totalmente avesso à indústria fonográfica, nunca deixou que suas gravações (todas ao vivo, algumas feitas sem que ele soubesse) fossem disponibilizadas comercialmente. Esta gravação, feita em 1992, só foi lançada em 1997, após a morte do maestro, numa série que procurava, com aval de seu filho, consagrar a grandeza de Celi.
Com efeito, é possível neste registro, primoroso, entender porque Celibidache é um mito da regência. Seus tempos mais lentos, ou mais reflexivos, abrem uma nova dimensão na escuta desta obra. É uma viagem a um novo universo, um Tchaikovsky desconhecido, transcendental. Sente-se a firmeza e a segurança na condução de toda a obra, revelando sua arquitetura sinfônica como uma grande catedral sonora, algo impensável sem a sensibilidade aguçada de Celi e a perfeita simbiose entre ele e sua querida Filarmônica de Munique. Com os contornos melódicos à flor da pele e uma vigorosidade rítmica ímpar, diria sem pudores que este registro é o melhor já feito, não fosse este também o mais heterodoxo. Apesar de ser altamente recomendável, é uma leitura para degustar com certa moderação, pois nunca se ouviu um Tchaikovsky como este, e pode até ser perigoso.

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4.Herbert von Karajan, Berliner Philharmoniker EMI 1972

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Agora, neste fórum de melômanos do PQP, tenho que confessar, humildemente, minha heresia (ou talvez blasfêmia) musical: sim, eu gosto de Karajan. Mas todo Karajan? Claro que não. O Karajan da DG é, com raríssimas exceções, pífio, um fast-food musical que desconsidera qualquer profundidade emocional relevante em suas leituras. Entretanto, por algum motivo, talvez místico, que eu realmente não sei explicar, tudo o que Karajan gravou em sua breve passagem pela EMI na década de 70 é incrivelmente superior, de um gosto apurado e de uma leitura realmente inspirada. Isso sem falar da sonoridade. Aparentemente, os engenheiros ingleses eram mais ousados que os alemães, e a Filarmônica de Berlim também se mostra mais espontânea e virtuosa em sua massa sonora do que em qualquer outra época. Não me perguntem por quê. Mas, no frigir dos ovos, por conta disso, esta gravação é uma das minhas preferidas: não apenas Karajan resolveu fazer direito, como a orquestra de Berlim está de tirar o fôlego. Este registro, de 1972, é a melhor Patética que Karajan fez em toda a sua vida.

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5.Evgeny Mravinsky, Leningrad Philharmonic DG 1960

tchaikovsky_symph456_mravinsky_smallNa década de 50-60, em plena guerra fria, a competição entre URSS e EUA não ficava apenas no plano político e tecnológico. Nas artes, era muito comum uma troca de provocações indiretas (ou mesmo diretas), à superioridade estética de entidades ou artistas de cada um dos lados. E, por conta da dificuldade de acesso ao confronto direto (os artistas não podiam circular livremente na URSS), muitos desses confrontos acabavam ficando no plano imaginativo. Um deles, na música, era a propaganda que se fazia da superioridade sonora da Filarmônica de Leningrado e seu mítico maestro, Evgeny Mravinsky. Foram necessários anos de negociações até que o Kremlin permitisse uma tournée pela Europa. A primeira, em 1956, resultou numa gravação monaural primorosa das Sinfonias 4, 5 e 6 de Tchaikovsky, pela DG, em que toda a emoção do ineditismo (tanto de um lado quanto de outro) fica evidente. Quatro anos depois, Elsa Schiller, produtora da DG, conseguiu, não sem muito esforço, que o grupo voltasse para gravar em estéreo as mesmas obras, já que a primeira vez impressionou profundamente os europeus. E realmente, esta é uma leitura acima de qualquer crítica. Além da intimidade evidente dos músicos com estas obras, a precisão e sensibilidade de Mravinsky, um dos maestros mais elegantes que já subiram ao pódio, torna esta leitura indispensável em todos os sentidos. Soma-se a isso um aspecto levantado por Norman Lebrecht, que a torna ainda mais fascinante: sob pressão política, os registros evidenciam a tragédia do finale da Patética com profundeza ímpar, e a marcha bélica do terceiro movimento com uma esperança aterradora. É ver pra crer.

Se eu tivesse que escolher “a” Patética, mesmo considerando as limitações da gravação dos anos 60, seria esta. O álbum da DG vem com a Quarta e a Quinta Sinfonias, que deixo de bônus porque dá muito trabalho separar os arquivos e subir de novo. Sorte de vocês.

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Guia de Gravações Comparadas P.Q.P. – J.S.Bach: 4 Orchestral Suites BWV1066-1069

As 4 Suítes (ou Aberturas) para orquestra de Bach são suas únicas obras escritas exclusivamente para conjunto orquestral, sendo todas as demais obras sacras, concertantes, sonatas e árias de câmara ou para instrumentos solo (cravo, órgão, lute, violino e cello). A origem do gênero é obscura, o Guia da Música Sinfônica aponta Johann Jakob Froberger (1616-1667) como seu criador, ao passo que Gudrun Becker cita Agostino Steffani (1654-1728) como sendo o primeiro a compilar trechos de danças de suas óperas em uma “Suíte”, fazendo-as preceder de uma “Overture”, que acabou consagrando o nome.

O fato é que a “Overture” se tornou extremamente apreciada, provavelmente por ter sido um dos primeiros gêneros a combinar danças folclóricas populares com o gosto erudito das cortes e da aristocracia, e logo surgiram inúmeras composições deste gênero por toda a Europa. Telemann gabava-se de ter escrito 200 delas, e Mattheson (rival de Haendel) escreveu longamente sobre ela em seu livro “Nova Orquestra”.

Johann Sebastian Bach, por sua vez, não quis ficar de fora e também presenteou o mundo com exemplos do gênero. Bach, sendo Bach, evocou suas características mais elementares: primou pela qualidade e não pela quantidade, e fez de suas únicas 4 Aberturas as mais famosas Suítes orquestrais barrocas da história da música ocidental.

A composição delas também é algo obscura: não foram escritas juntas, havendo indícios de que a primeira e a última datam da época de Köthen, ao passo que as intermediárias datam da época de Leipzig. Mas são dados controversos, e que os autores também não chegam a uma conclusão. Há quem a acredite, por análise da partitura autógrafa (sem datação), que todas foram escritas em intervalos de tempo grandes, mas já em Leipzig. De qualquer forma, o consenso é que elas não formam um conjunto fechado, pois foram escritas para ocasiões diversas (como comprovam as diferenças na instrumentação e nas danças), e Bach já estava bastante ocupado para ficar pensando em ciclos de obras. Mesmo assim, a unidade estilística de todas é marcante, como não poderia deixar de ser neste caso.

As aberturas seguem o padrão francês lento-rápido-lento, sendo, a nível de Bach, o andamento rápido sempre uma fuga. Elas são seguidas de uma série de danças, tradicionalmente partes formais da suíte que Bach também usou em diversas outras obras, como as Suites Francesas, Inglesas e as Suites para Cello.

Aqui apresento 4 gravações que considero fundamentais para a apreciação desta obra:

1.Karl Richter, Münchener Bach-Orchester DG (ARCHIV) 1960-62

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Essa é a versão mais clássica das Suítes: foram gravadas no início da década de 60, numa época em que as versões “autênticas” não estavam em moda, e Richter clamava para si o monopólio da interpretação “correta” de Bach. Com isso, ele se tornou uma espécie de Karajan para Bach: suas leituras são lineares, ao ponto de se tornarem insípidas, quase assépticas, mas também bastante convincentes pela limpidez dos contornos. Neste caso, entretanto, as Suítes soam como uma obra clássica. Os contrastes entre a introdução lenta e a fuga rápida das aberturas não chega a comover, aliás, quase não se nota diferença. Igualmente se pode dizer das dinâmicas, em que ele explora muito pouco o chiaroscuro barroco, e ficam com certa aparência mais clássica que barroca. A Ária da Suite 3 pelas mãos de Richter fica quase romântica. Entretanto, é uma leitura vigorosa e com a potência sonora de uma orquestra aumentada, típica das adaptações feitas nos anos 60. Se quiserem uma leitura sem surpresas, bem-comportada, estilo genérico de um fast-food, fiquem com esta.

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2.Karl Münchinger, Stuttgart Kammerorchester, DECCA 1985

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Karl Münchinger é um maestro enigmático: especialista também em música barroca, principalmente em Bach, insiste em leituras híbridas que mesclam, de certa forma, um barroquismo que se diz “autêntico” (instrumentação, andamentos), mas por outro lado abusa do classicismo, ao estilo de Richter, nas dinâmicas, por exemplo. Suas leituras são também “corretas” no mesmo sentido de “assépticas”, optando sempre por uma média confortável que não chega a chocar o ouvinte, mas também não empolga. É uma leitura correta e até menos afetada que a de Richter, mas ele não faz os ritornellos das aberturas, diminuindo assim o tempo e fazendo caber tudo num único CD. Inclusive há quem ache chato o excesso de repetições dos andamentos lentos e prefere esta versão. Eu não. Apesar de tudo isso, gosto dela genericamente.

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3.Frans Brüggen, Orchestra of the Age of Enlightenment, PHILIPS 1994

bach_4_orchestral_suites_bruggen_coverBrüggen faz a interpretação autêntica mais exagerada que conheço, quase datada a Carbono-14. As dinâmicas barrocas ficam extremamente evidenciadas e a instrumentação é quase uma viagem ao tempo de Bach. Os contornos melódicos se mesclam com os timbres de forma quase orgânica, e os ritmos parecem germinar espontaneamente sabe-se lá de onde. Se você quiser uma versão chocante, diferente de tudo o que já ouviu, fique com esta. Nunca imaginei um barroco tão barroco, e nem sei se era mesmo assim. Mas é uma leitura extraordinária, vívida e de sonoridade vigorosa, que se contrapõe diretamente às leituras clássicas de Richter e Münchinger. Coisa fina.

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4.Trevor Pinnock, The English Concert, DG (ARCHIV) 1979-80

front coverEntre o ultra-romantismo de Richter e o mega barroco de Brüggen, Pinnock se revela de um equilíbrio estupendo. Não é um barroco autêntico exagerado, mas também não é uma leitura clássica. É a versão que considero mais equilibrada, e a mais convincente do ponto de vista estilístico. Seu conjunto The English Concert é um dos melhores grupos instrumentais de época do mundo, tendo gravado uma enorme quantidade de títulos barrocos com um apuro técnico e estético altamente elaborados. A versão dele para os Concertos de Brandenburgo é uma das mais precisas e bem gravadas da história da música. As suítes não ficam para trás. Poderão estranhar, se ouvirem primeiro a versão de Richter ou Münchinger, os andamentos mais rápidos das introduções das Aberturas. Mas é aí que ele mostra a que veio, contrapondo o tom solene à animação irresistível das fugas no desenvolvimento, revelando um barroco talvez até mais autêntico que o de Brüggen. Para todos os efeitos, esta é a escolha do Chucruten.

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Guia de Gravações Comparadas P.Q.P. – Mahler Symphony no.1 in D major ‘Titan’

A Primeira Sinfonia, dita Titan, é uma das obras mais executadas de Mahler, não apenas por sua beleza intrínseca (que aliás não é exclusividade dela), mas basicamente porque é uma das mais curtas, além de ser extremamente otimista, escrita numa linguagem acessível ainda do romantismo pós-wagneriano, e sem necessidade de solistas vocais e grandes coros. Como Otto Maria Carpeaux assinalou, todas as orquestras que querem mostrar certo virtuosismo mas tem dificuldades de produzir as exigências sonoras das demais sinfonias, optam pela Primeira.

Mas além disso, é também uma sinfonia muito interessante no contexto da vida e da obra de Mahler: ela funciona como um prefácio literário ao universo mahleriano, pois há nela ecos resumidos de basicamente tudo o que se ouvirá, melodica e harmonicamente, nas sinfonias posteriores. O termo prefácio literário não é força de expressão; do ponto de vista narrativo, ela trabalha com a ideia de um personagem heróico, descrito musicalmente através de seus temas e resoluções harmônicas tipicamente mahlerianas. É a expressão psíquica de seu autor, em que sua obra, permeada por este alter-ego heróico, apresenta uma ideia-fixa (ou um leitmotif) cujo objetivo é uma expressão de um universo ideal. É patente, através desta narrativa, sua busca incessante pela redenção, uma vez reconhecida a natureza imperfeita e efêmera do ser humano. E assim, passa por todos os conflitos filosóficos da humanidade (as angústias da sociedade, o amor, a morte, a religião), temas estes presentes em todas as suas obras, e, muito a propósito, já expresso nesta sinfonia, que termina numa espécie de cantus firmus de júbilo e alegria, até então único na história da música ocidental, informando ao público a que vem este tal Gustav.

Mahler é uma das mais contundentes respostas musicais às transformações científicas e filosóficas da virada do século XX, absorvendo, ainda que inconscientemente, as ideias da recente revolução psicológica de Freud (tendo ele mesmo sido seu paciente) e, claro, das não menos revolucionárias ideias postuladas por Planck e Einstein que abalaram os pilares da ciência física.

Escrita entre 1887 e 1888, teve diferentes versões apresentadas, começando por estrear como um poema sinfônico em duas partes, donde vem seu subtítulo, Titan, por conta da inspiração literária da obra de Jean Paul. Uma revisão de 1893 a colocou na forma sinfônica tradicional com um movimento a mais, o Blumine, depois suprimido. Após as revisões feitas até a publicação tardia em 1898, a Sinfonia finalmente adquiriu a forma como hoje a conhecemos, e nunca mais foi chamada por Mahler pelo subtítulo. Mas apesar disso, a despeito da imponência do nome, este acabou sendo incorporado como recurso de marketing.

O site gustavmahler.net.free (uma dádiva para os mahlerianos) cita nada menos que 274 gravações diferentes para a Primeira Sinfonia, nem todas, claro, disponíveis no mercado. E, no que diz respeito à possibilidade de ouvir alguma delas na internet, considerando os sites de streaming, o You Tube, a Amazon e os downloads genéricos, é possível achar pelo menos 40 versões. Para que os ouvintes tenham alguma orientação, trago algumas opções que gosto bastante:

1.Bernard Haitink, Concertgebouw PHILIPS 1972

61S7jofvU6L._SL500_SX300_Esta é uma gravação clássica, já está fora do catálogo e de vez em quando é relançada em algum compêndio, como a caixa da integral da sinfonias ou, neste caso, na coleção Abril de Grandes Compositores. Esta gravação, dos anos 70, faz parte do primeiro e único ciclo completo de Haitink, pois o segundo, na década de 90, não foi completado por conta do desmonte da indústria fonográfica, em especial o da música clássica, que foi o que sofreu a maior bancarrota (ver Norman Lebrecht, “Maestros, obras-primas e loucura”). Haitink na verdade gravou esta Sinfonia várias vezes de forma isolada, entre 1962 e 2007, mas esta de 72 desponta como uma de suas mais respeitáveis leituras.
É sem dúvida uma leitura inspirada, sendo tratada de forma muito mais solene que jocosa, e por isso tem um ar bruckneriano que permeia toda a execução. O frenesi dos finais do primeiro e último movimentos, expressões legítimas de uma Mahler jovem e apaixonado, são executados como se fossem reflexões profundas e conflitantes de um Mahler tardio, como o da Sétima ou Oitava Sinfonias. Apesar disso, é um registro que prima pela pureza de timbres e contornos melódicos, deixando, não obstante a maior lentidão rítmica, uma impressão bastante singular. Haitink, sempre distinto, não deixa a peteca cair. Os trompetes desafinam nas fanfarras do finale, mas este é um detalhe menor neste conjunto. A gravação desta edição acompanha o Lieder eines fahrenden gesellen, na voz imponente de Hermann Prey. Assim como em outras gravações, este lieder é sempre bem-vindo por ter sido uma das inspirações originais para temas da Primeira Sinfonia.

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2. Kurt Masur, New York Philharmonic TELDEC 1992

mahler_symph1_masur_smallEsta foi uma das gravações que marcaram a chegada de Kurt Masur na Filarmônica de Nova York em 1991. A gravação é do ano seguinte, mas evoca o mesmo sentimento de frescor recém-casado. A escolha de Masur, pelos músicos de Nova York, se deu para tentar fazer da Filarmônica novamente uma experiência mais “requintada”, uma vez que seus antecessores, Zubin Mehta e Leonard Bernstein eram dados a concertos populares, e Pierre Boulez, muito moderno. Naquela época o público patrono se incomodou com isso. Trazendo a sobriedade do alemão especialista em Beethoven, a ideia era fazer a Filarmônica deixar de parecer uma orquestra crossover, e escolheu a 7a. de Bruckner para estrear com toda a pompa. Hoje este fato soa um pouco anacrônico, mas fazia sentido naquele contexto. De qualquer modo, é um registro primoroso, de quem sabe o que está fazendo. A firmeza rítmica se impõe como um rolo compressor, e acaba deixando a obra mais fria que o desejado. Talvez Masur estivesse tentando causar boa impressão aos americanos, e se manteve cauteloso nas escolhas das dinâmicas. De qualquer forma é uma performance das mais eloquentes, e merece ser visitada, até porque também vem com as Canções do Viandante, na voz do barítono sueco Håkan Hagegård.

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Entretanto, um pequeno parênteses para a questão da performance fria. Kurt Masur também é o responsável pela performance mais quente que conheço da Primeira Sinfonia de Mahler. Aconteceu em 2005 no Festival de Inverno de Campos do Jordão, em que Masur foi o maestro convidado, tendo ao seu lado Roberto Minczuk. Os bolsistas do festival, todos ainda amadores em fase de profissionalização, tinham pouca experiência com prática de orquestra, principalmente em se tratando de orquestras do tamanho exigido pela Primeira. Entretanto, ao invés de uma performance morna para cumprir exigências acadêmicas e agradar aos pais dos bolsistas, o que se ouviu foi uma performance das mais contundentes, que num nível de percepção sensível, transbordava a emoção e o entusiasmo daqueles músicos em tocar pela primeira vez uma obra daquela envergadura. Percebe-se, ao mesmo tempo, tanto a inexperiência e a ingenuidade quanto uma vontade sobre-humana de se superarem, coisa que acabam conseguindo com força descomunal, fazendo do finale desta gravação um dos mais emocionantes da história. Kurt Masur chorou nos aplausos, consciente do esforço que cada músico empreendeu. Esta gravação vale a pena porque é possível sentir toda essa carga emotiva no registro, coisa que muitas orquestras profissionais não conseguem. Infelizmente é um disco que está esgotado, então disponibilizo aqui também. Ele vem com outras obras executadas no mesmo festival (incluindo uma estréia de Almeida Prado), mas eu diria que a Titan é que interessa.

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CD Duplo – Arquivo FLAC 661Mb

3. Leonard Slatkin, St.Louis Symphony Orchestra TELARC 1981

mahler1slatkinEsta é a pior de todas: Slatkin é um bom regente, tenta dar um ar sóbrio e distinto ao frenético finale, mas no fim, não consegue. Boa parte do problema é a orquestra, St.Louis tem metais com uma sonoridade bem fraca, e Slatkin ainda puxa o freio de mão. Aí não dá mesmo. As fanfarras não empolgam, e parecem contidas como se precisassem fazer pouco barulho para não atrapalhar os vizinhos. Mas a gravação tem méritos: a Telarc é um selo americano que foi o absoluto pioneiro na gravação digital, sendo deles o primeiro LP lançado comercialmente que teve sua matriz gravada digitalmente, em 1978. Este know-how fez de suas gravações verdadeiras referências para o desenvolvimento de uma metodologia de gravação na era digital, e a clareza de seus registros é até hoje apreciada. Mas a recomendação é clara: só para fãs.

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4.Rafael Kubelik, Symphonie-Orchester des Bayerischen Rundfunks DG 1968

mahler_symphony1_titan_kubelik_coverHá um certo consenso sobre a superioridade desta gravação, que foi inclusive indicada, recentemente, pela revista Gramophone, como a melhor Titan de todos os tempos. Mas toda a classificação é relativa, e acredito ser impossível uma unanimidade. Claro, a gravação tem méritos indiscutíveis, mas acho um pouco de exagero tanto crédito. Kubelik é um maestro dos mais competentes, um dos grandes “monstros sagrados” (expressão que na minha época era corriqueira) da regência do século XX. De origem tcheca, tem todos os requisitos para entender esta música até o último fio de cabelo. E ele realmente a entende como poucos, fazendo principalmente do scherzo e da paródica marcha fúnebre momentos de rara e fina ironia. Mas venhamos e convenhamos, a sonoridade da tecnologia de gravação de 1968 fica um pouco a desejar, principalmente deixando evidente certa estridência dos trompetes, uma limitação que nem toda gravação desta época possui ou incomoda, mas esta possui – e incomoda. Outra: Kubelik é famoso por seu rubato, ele costuma diminuir o andamento com algum exagero antes dos clímax ou das repetições dos temas essenciais. Em alguns casos, funciona que é uma maravilha, em outros, considero o resultado cafona. Não posso dizer que achei ruim seu rallentando na retomada do tema no primeiro movimento, mas também não vou dizer que não estranhei. Confesso que não tenho opinião definitiva, mas no fim das contas não é minha gravação dos sonhos. Mas se vale a pena? puxa, se vale! E a gravação também tem o Lieder eines fahrenden gesellen, mas na voz de ninguém menos que Dietrich Fischer-Dieskau. Aí fica covardia não ouvir.

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5.Zubin Mehta, New York Philharmonic CBS 1982

mahler_symphony1_mehtaA grande zebra é esta gravação de Zubin Mehta, feita pela CBS em 1982. Uma verdadeira jóia. Outras leituras de Mehta, como a da DECCA com Israel, não chegam aos pés dessa. É uma leitura precisa, clara, entusiasmada e empolgante. Os trompetes de Nova York estão em ótima forma – melhor que na gravação de Masur – e executam as fanfarras com convicção ímpar, em que ouvem todas as notas com clareza e limpidez. O registro deixa aflorar o Mahler sonhador da juventude como poucos, coisa até rara em se tratando de Zubin Mehta, mas é preciso admitir: neste caso é quase impossível não se deixar contaminar pela empolgação da sonoridade desta gravação. Mehta, apesar de não ser um mahleriano convicto, é responsável por várias leituras memoráveis, e esta é uma delas. Não há meio termo, é uma leitura brilhante, ou se adora ou se ignora. Os puristas podem objetar que Mehta não faz o ritornello do primeiro movimento, mas devo dizer que também é um detalhe menor. Compensa todo o crime.

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6.Klaus Tennstedt, London Philharmonic Orchestra EMI 1977

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Esta gravação é primorosa. Klaus Tennstedt era um mahleriano não apenas convicto, mas devoto e praticante. Norman Lebrecht explica bem esta relação meio doentia: “após um sério colapso nervoso, encontrou apoio na música de Mahler, que se tornou o leitmotiv de sua ansiosa vida”. Com efeito, o Mahler de Tennstedt é altamente intuitivo, sempre inesperado e avassalador, tirando das profundezas da alma os mais insondáveis sentimentos. Por algum motivo alheio à minha percepção (talvez pela própria personalidade trôpega de Tennstedt), ele nunca foi muito festejado do grande público, tendo sempre um time restrito de admiradores fiéis mas recatados, e normalmente suas performances escapam de uma análise pública mais abrangente. Mas devo dizer, poucas Titans tem a força desta: a impressão é de um vulcão prestes a explodir, e que efetivamente explode nos clímax adequados. Apesar de carismática, é uma interpretação bastante pessoal, em que há o perigo do ouvinte não interagir com a espontaneidade proposta. Neste caso, será uma leitura esquisita. Mas garanto: soltem-se e deixem-se levar pelos delírios do sr. Tennstedt, e estarão diante de uma performance única na história.
Obs.: A edição da Primeira que disponibilizo aqui faz parte da caixa com as 10 Sinfonias, então não estranhem o bônus do primeiro movimento da Segunda, obra que comentarei em outra ocasião.

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7.Sir Georg Solti, Chicago Symphony DECCA 1983

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Considero esta, ao lado da de Bernstein (1974) com a Wiener Philharmoniker (que infelizmente – ou felizmente – só tenho em DVD), a gravação que combina o melhor de todos os mundos: tem a sonoridade dos áureos tempos dos míticos engenheiros da DECCA, tem o equilíbrio preciso entre a espontaneidade e a fidelidade à partitura, tem o encanto do frescor juvenil do Mahler apaixonado, e tem a sobriedade de um registro convicto. Se eu fosse escolher a gravação mais equilibrada, e que satisfaz a maioria dos requisitos mahlerianos com louvor, ficaria com esta, com a possível alternativa de Bernstein. Mas para mim esta tem um trunfo a mais: as pratadas de Chicago são mais eficazes que as de Viena, e a eloquência da juvenília mahleriana fica em plena ebulição. Esta é, portanto, a escolha do Chucruten.
Bom divertimento!

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