.: interlúdio :. ConSertão – Elomar / Arthur Moreira Lima / Paulo Moura / Heraldo do Monte

.: interlúdio :. ConSertão – Elomar / Arthur Moreira Lima / Paulo Moura / Heraldo do Monte

elomar_consertaoVou contar uma coisa para vocês… Eu gostava muito deste disco nos anos 80. Porém, ao ouvi-lo novamente agora, fiquei muito decepcionado com a atuação de Arthur Moreira Lima e seu sotaque clássico em meio aos autênticos — e maravilhosos — Heraldo, Paulo Moura e Elomar. Acho que a grife de Arthur foi importante durante certa época para dar credibilidade a projetos de músicos que saíam fora dos padrões das gravadoras, mas hoje realmente não gosto da presença do moço. Há coisas maravilhosas neste LP duplo da Kuarup. Abaixo, copio descaradamente o texto de Mahatma Bode, do falecido blog Aristofonia (RIP):

Escrevo esse texto com o intuito de valorizar a música nordestina, a música do sertão, sim, SERTÃO, não essa virulenta (também no sentido da capacidade de reprodução) música supostamente chamada de sertaneja, que só para constar, nem do sertão é. Tenho certeza que uma das principais identidades da sonoridade brasileira é a nordestina, a qual recebeu muitas influências, das mais variadas origens, sem perder, certamente, suas raízes. A parte dessa cultura que vou lhes introduzir é muito amalgâmica, muito diferente em melodias e harmonias. Música essa que bebeu da cultura ibérica e árabe, vindas com a colonização portuguesa, extraindo elementos específicos de cada civilização, destacando principalmente o ritmo desenvolvido pelo povo oriental juntamente com suas escalas.

O grande expoente desse estilo musical é Elomar Figueira Mello, compositor, violeiro, violonista e cantor, nascido em Vitória da Conquista, Bahia no sangue, no ano de 1937. Esse baiano – que cresceu nas intimidades do sertão, habituado com a seca e com dificuldade da vida sertaneja – conseguiu transpassar, com suas canções de cordel, todo o sofrimento desse infausto povo, salientando a necessidade da religiosidade e da fé e, unindo ao seu violão, criou um diálogo entre o folclore musical medieval e nordestino. Expôs sua musicalidade em diversos discos, começando em 68, porém, há um que devemos não só escutar, como também parar, sentar, sentir-se confortável, para então, prestar atenção e ouvir.

Eis o “um”: ConSertão, de 1982. Neste álbum Elomar chega a seu ápice musical e, juntamente com Arthur Moreira Lima, Paulo Moura e Heraldo do Monte, cria uma obra tão única em suas características, que é muito difícil não simpatizar com ela. Deveras é um álbum muito peculiar, resultado da soma das composições do Elomar e das virtudes dos outros instrumentistas, entretanto, o grande feito do álbum é a liberdade optada pelos músicos na hora das gravações, visto que, segundo o próprio Arthur Moreira Lima, as músicas mostram a capacidade deles de arranjar, improvisar, bordar, enfeitar, tecer tramas e enredos musicais sobre temas pouco conhecidos, mas de valor musical incontestável. Ou seja, de maneira mais simples, uma jam session nordestina. Algo mais original? E não é uma simples jam session, nela estão presentes solos de piano e cravo, de Artur Moreira Lima; sax e flauta, Paulo Moura; violão e viola, Heraldo do Monte; não esquecendo da voz entristecida e surrada de Elomar.

Um álbum de música basicamente nordestina, com solos jazzísticos de sax e melodias barrocas no cravo, tem que ter seu verdadeiro valor reconhecido.

ConSertão – Elomar / Arthur Moreira Lima / Paulo Moura / Heraldo do Monte

1. Estrela maga dos ciganos/Noite de Santo Reis (Elomar)
2. Na estrada das areias de ouro (Elomar)
3. Campo branco (Elomar)
4. Incelença pra terra que o sol matou (Elomar)
5. Trabalhadores na destoca (Elomar)
6. Pau-de-arara (Luiz Gonzaga)
7. Festa no sertão (Villa-Lobos)
8. Valsa da dor (Villa-Lobos)
9. Leninia (Codó)
10. Valsa de esquina nº 12, em fá menor (Francisco Mignone)
11. Espinha de bacalhau (Severino Araújo)
12. Pedacinhos do céu (Waldir Azevedo)
13. Corban (Elomar)

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The Big Four
The Big Four

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Elomar Figueira Mello (1937): Na Quadrada das Águas Perdidas (1978)

Com esta postagem do trovador renascentista do sertão baiano sinto que completo um ciclo de explorações sobre “o clássico fora do clássico” – ciclo que incluiu a kora ou harpa africana de Toumani Diabaté, as elaborações de cantos indígenas de Marlui Miranda, um balé instrumental de Gilberto Gil, os grupos instrumentais Quinteto Armorial e Uakti.

Não se trata do mesmo conceito das postagens usualmente rotuladas como “interlúdio” neste blog, que incluem jazz, blues, algumas coisas da chamada MPB – coisas que a maior parte de nós sente, mesmo sem saber explicar por quê, serem uma outra arte, como que paralela ao “clássico”, embora não necessariamente de menor valor ou grandeza. E é do mesmo modo difícil de explicar que sinto que certas coisas deveriam ser reconhecidas como propriamente clássicas, embora venham de ou por fora fora da linhagem europeia a que se costuma atribuir a palavra.

A ideia de postar Elomar nesta série é antiga, mas – confesso – eu vinha adiando por medo de escrever sobre ele, cuja arte ao mesmo tempo me encanta e perturba, causa uma estranheza inquietante. Mas hoje, ao atender um pedido de revalidação do link do disco “Música Renascentista para Alaúdes, Vielas e Bandurra”, senti que não podia deixar passar a oportunidade: ouçam os dois discos, e acredito que “ouverão” que não foi sem razões sonoras que liguei Elomar ao rótulo “renascentista”.

Nem sem razões históricas que o liguei ao rótulo “trovador”: sugiro uma visita à sua página oficial e (mais rápido) uma lida na sua biografia na Wikipedia, de onde destaco: “Elomar, assim como Glauber Rocha e [seu primo] Xangai, é descendente direto do bandeirante e sertanista João Gonçalves da Costa, fundador em 1783 do Arraial da Conquista, hoje a cidade de Vitória da Conquista”. Além disso, embora formado em Arquitetura na UFBA – justo no período em que esta fez de Salvador um dos maiores polos de efervescência cultural do país – nosso artista sempre deu preferência a viver em uma ou outra das três fazendas que herdou.

Ou seja, engana-se quem o liga à palavra “menestrel” – na Idade Média e Renascença um cantador e entertainer pertencente às classes populares, geralmente itinerante: Elomar vincula-se literalmente à tradição dos trovadores, sempre “filhos de algo” (isto é: nobres, proprietários de terras) com condições de estudar e se dedicarem a experimentações artísticas sem preocupações de sobreviver disso. E seu uso da linguagem sertaneja não tem nada de brotação espontânea: trata-se de um projeto artístico-intelectual tanto quanto o de Guimarães Rosa.

Por favor: com isto não estou nem valorizando nem depreciando a arte e a pessoa de Elomar: estou apenas caracterizando, e isso numa dimensão que nada tem a ver com valor ou desvalor!

Termino com uma observação musical e uma literária facilitadas pela marcante canção “Arrumação” – tão marcante, aliás, que acrescentei no final mais três versões, além da original que constitui a faixa 5 do disco (sendo que a releitura pelo próprio Elomar, com coral, me parece a menos brilhante das três – aproveitando ainda pra confessar que não gosto muito das duas primeiras faixas do disco e peguei o hábito de começar a ouvir pela terceira – mas isso vai naturalmente do gosto de cada um!).

A observação musical: começo a suspeitar que boa parte da estranha pungência melódica de Elomar deriva do seu frequente uso da escala menor melódica, cujos 6º e 7º graus têm caráter de escala maior nas frases ascendentes e de menor nas descendentes – um recurso técnico do qual também Bach extraía efeitos de pungência.

A literária: não se confunda esta exploração literária do dialeto sertanejo por um estudado com um certo “fazer gênero ‘povo’ falando ‘errado'” – pois, antes de mais nada, quem estudou mesmo sabe que não há propriamente “errado” em línguas. Mas a coisa aqui vai além das variantes de classe social: está-se lidando com um falar que descende de um português migrado para o Brasil antes da codificação clássica da língua. Quem estudou um pouco de linguística românica sabe que há bem umas duas dezenas de falares derivados do latim além dos cinco oficializados como idiomas nacionais. E porque cargas d’água é chique quando um francês chama de ail (pronúncia “ái”) o tempero que em latim se chamava allium, e seria errado quando mãe Prudença pede a sua neta Jusefina “vai cuiê u ái, ái de tua vó”?

Pra mim, pelo menos, o que é é arrepiantemente belo.
E deixo vocês com Elomar.

Elomar Figueira Mello: NA QUADRADA DAS ÁGUAS PERDIDAS
LP duplo, 1978

1. A Meu Deus Um Canto Novo
2. Na Quadrada Das Aguas Perdidas
3. A Pergunta
4. Arrumacao
5. Deseranca
6. Chula No Terreiro
7. Campo Branco
8. Parcelada
9. Estrela Maga Dos Ciganos
10. Função
11. Noite De Santo Reis
12. Cantoria Pastoral
13. O Rapto De Joana Do Tarugo
14. Canto De Guerreiro Mongoio
15. Clariô
16. Bespa
17. Dassanta
18. Curvas Do Rio
19. Tirana
20. Puluxias
EXTRAS:
21. Arrumação – versão de 1989 (Elomar em Concerto)
22. Arrumação – versão de 1988 com Francisco Affa (Cantoria 2)
23. Arrumação – realização instrumental do grupo Uakti, 1996

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Ranulfus