Quem conhece “Fidelio” e ouve “Leonore” passa a concordar com os resmungos de Ludwig: reescrever a ópera para o triunfo de 1814 deu mais trabalho que daria escrever uma outra inteira. “Leonore” soa, com efeito, como uma obra diferente. Quem gosta de “Fidelio” tem um choque: a narrativa muito mais lenta, as árias mais cheias de floreios, tudo entremeado por longos diálogos em alemão. “Leonore”, afinal de contas, sempre foi um Singspiel, uma “peça-cantada” no feitio daquelas de Mozart: “O Rapto do Serralho” e, principalmente, “A Flauta Mágica”, o apogeu do gênero, sem o qual, parece-me, “Leonore” não teria sido possível.
Ainda que Fidelio, na trama, seja sinônimo de Leonore – a Leonore de calças, digamos assim -, as diferenças entre as obras são muitas. Elas começam pelo título: “Leonore” era o preferido de Ludwig, que acabou por alterá-lo para “Fidelio” ao estrear a versão definitiva para que não houvesse confusão com outra ópera, da lavra do italiano Ferdinando Paer (1771-1839). A hoje esquecida “Leonora, ossia L’amore coniugale” – que, como já adivinharam pelo título, baseia-se na mesma peça de Bouilly que inspirou a “Leonore” de nosso herói – fez tanto sucesso na época que Beethoven tinha sua partitura e provavelmente a consultou para esboçar sua trama.
Em segundo lugar, mas não menos importante: “Leonore” tem três atos, em lugar dos dois de “Fidelio”. Essa reestruturação consolidou-se já na segunda versão de “Leonore”, cujo texto foi amplamente tosado por Stephan von Breuning, amigo de Beethoven, para o relançamento em 1806. A “Leonore” original, obviamente, é uma ópera mais longa – dura quase meia hora a mais que “Fidelio”, na maioria das gravações. Ela inicia com a abertura que ficou conhecida como “Leonore no. 2” (mais sobre a numeração das aberturas “Leonore” numa postagem vindoura, à qual se segue imediatamente uma ária de Marzelline (“O wär ich schon”), e não o dueto em que ela faz aquela longa D.R. com Jaquino e lhe revela a vontade de se casar com Fidelio. Como se não fosse humilhação bastante para Jaquino, Marzelline prossegue, num diálogo adicional (“Höre Jaquino, ich muß dir rein heraus sagen”), e lhe explica por que não se darão bem juntos, e ele ainda por cima tem que ouvir de Rocco – o homem que quer ter como sogro – que ele não deve se casar por impulso, no trio “Ein Mann ist bald genommen”. As duas peças, que não são ouvidas em “Fidelio”, tornam mais patética a saída pela linha de fundo do pobre Jaquino, e o primeiro ato se encerra – sem o escanteado Jaquino, obviamente – com um trio entre Rocco, Leonore e Marzelline (“Gut, Söhnchen, gut”).
O segundo ato começa com um prelúdio que, por muito tempo, foi associado à música incidental para a peça “Tarpeja” de Christoph Kuffner, para a qual Beethoven também escreveu uma marcha triunfal (WoO 2a). Estudos de marcas d’água sugeriram, no entanto, que ele foi escrito, e com um tanto de pressa, para abrir o segundo ato de “Leonore”, quando o compositor percebeu que o primeiro ato do libreto de Sonnleithner ficara extenso demais e resolveu dividi-lo em dois. Com a passagem da foice que a levaria a tornar-se “Fidelio”, a ópera voltou a ter dois atos e o prelúdio tornou-se supérfluo e foi abandonado na zorra da papelada de Ludwig.
Em seguida, ouve-se talvez o mais belo dos trechos suprimidos da versão final: o dueto entre Marzelline e Leonore (“Um in der Ehe froh zu leben”), em que a primeira fala de casamento enquanto a segunda – que, lembremo-nos, está disfarçada de homem – lamenta estar enganando a moça sonhadora. A ária seguinte de Leonore, “Ach, brich noch nicht”, foi transformada na “Abscheulicher! Wo eilst du hin?” de “Fidelio”: a original é consideravelmente mais longa e virtuosística e, embora pareça-me melhor música, acaba atravancando o fluxo da narrativa. O ato termina com uma peça para Pizarro e o coro (“Auf euch nur will ich bauen”), que também não se ouve em “Fidelio”.
O terceiro e último ato começa com a ária de Florestan na masmorra (“Gott! Welch Dunkel hier!”), com texto modificado: em tom sentimental, Fidelio relembra os bons tempos com Leonore, mas, diferentemente da versão final, não tem qualquer visão em que a imagina vindo em seu resgate. Há também um recitativo (“Ich kann mich noch nicht fassen”) antes do dueto do casal (“O namenlose Freude”) que não se ouve em “Fidelio”. O final de “Leonore” também é diferente, muito mais iracundo: quando Don Fernando propõe que Pizarro seja preso na mesma masmorra em que manteve Florestan, a turba protesta alegando que a punição lhe seria muito branda, ao que Don Fernando decide enviar Pizarro para ser julgado pelo rei. A turba de “Fidelio”, como se percebe, é muito menos vingativa.
Esses tantos cortes, se eliminaram muitas belezas, tornaram a ópera mais concisa e dramaticamente mais efetiva. Por muito tempo considerada o broto de uma grande ópera, ou um “Fidelio” imperfeito, “Leonore” merece ter vida própria. Não achei maneira melhor de apresentá-la a vocês que essa impetuosa versão de René Jacobs, que, além de todos os méritos musicais, acabou também escrevendo os diálogos usados no Singspiel (quem não os quiser ouvir pode programar somente as faixas musicais). O time vocal é competente, muito bem dirigido por Jacobs – ele próprio um cantor de primeiríssima linha -, e os barrocos de Freiburg fazem toda diferença. Há uma atenção ao detalhe e uma verve que garantem o brilho à pérola renegada de Beethoven, que – assim espero – vocês apreciarão tanto quanto eu a adorei.
Sinopse: Florestan é um inimigo pessoal do governador da prisão, Don Pizarro, e homem de confiança do
ministro Don Fernando. Florestan conhece uma falta grave da parte de Pizarro, que o enxerga como uma ameaça. Pizarro quer eliminá-lo, mas, como não pode cometer um assassinado descarado,
ele aprisiona Florestan para que este morra de fome lentamente. Depois de dois anos, Florestan
é declarado morto; apenas sua esposa Leonore está convencida de que ele ainda está vivo. Ela se disfarça de homem e, sob o nome ‘Fidelio’, entra ao serviço do carcereiro Rocco como sua assistente – ela suspeita de que
Florestan está na prisão que Pizarro administra e espera poder libertar o marido.
PRIMEIRO ATO
Marzelline, filha única de Rocco, apaixonou-se por Fidelio e espera que seus sentimentos sejam recíprocos.
Ela rejeita firmemente o casamento proposto pelo carcereiro Jaquino. Rocco também não encoraja
as esperanças de Jaquino a esse respeito. Ele é levado pelo entusiasmo do estranho jovem pelo
trabalho, e ele oferece a Fidelio a possibilidade de se casar com Marzelline. Leonore
tenta manter-se impávida na situação embaraçosa. Rocco diz ao casal que não apenas o amor, mas também dinheiro é importante a vida conjugal. Fidelio exorta seu futuro sogro a acompanhá-lo a uma
masmorra secreta onde Leonore suspeita que seu marido está sendo mantido. Rocco promete obter a autorização de Pizarro para isso.
SEGUNDO ATO
Música marcial anuncia a chegada de Don Pizarro. Ele descobre, por uma carta anônima, que o ministro Don
Fernando, fará uma inspeção sem aviso prévio da prisão, por suspeitar que nela estão vítimas
de arbitrariedade. Pizarro ordena que o guarda toque a corneta assim que o ministro chegar. Pizarro tenta convencer Rocco a executar um plano diabólico – assassinar o prisioneiro secreto. Rocco recusa, mas concorda em cavar um poço em desuso para lhe servir como sepultura. Pizarro então decide
matar Florestan sozinho. Leonore está deprimida pela situação em que se envolveu e que lhe permitiu obter acesso a masmorra, e somente seu amor e a esperança de em breve encontrar o marido lhe darão uma nova coragem. Marzelline força Fidelio a conversar sobre fidelidade e confiança no casamento. Rocco diz a Fidelio que Pizarro concorda com o casamento e pede que Fidelio o acompanhe à masmorra, para cavar uma cova junto com ele.
TERCEIRO ATO
Florestan está definhando numa cela escura, pensando em sua esposa e aguardando a morte, quando Fidelio e Rocco vêm cavar a cova. A princípio, Leonore não reconhece o prisioneiro. Profundamente comovida, ela decide salvar este homem, quem quer que seja. Quando Rocco fala com o prisioneiro, ela reconhece
a voz do marido. Florestan descobre, através de Rocco que Pizarro é o governador desta prisão. Ele tem agora
certeza de que vai morrer e pede que Rocco envie uma mensagem para sua esposa Leonore. O carcereiro recusa, mas por compaixão lhe dá alguns restos de vinho. Fidelio consegue convencer Rocco a permitir que o
prisioneiro um pedaço de pão também. Ao sinal de Rocco, Pizarro entra para realizar o assassinato. Quando está prestes a apunhalar o prisioneiro, Leonore se joga na frente de Florestan para protegê-lo, revela sua verdadeira identidade e mantém o governador afastado apontando uma pistola para ele. Ao mesmo momento, a trombeta sinal anuncia a chegada do ministro. Pizarro foge; Rocco pega a pistola de Leonore e segue Pizarro. Marido e esposa permanecem sozinhos. Sem uma arma, Leonore acha que toda a esperança está perdida. O casal não consegue acreditar no reencontro, mas ainda assim se sente em perigo extremo, porque creem que os gritos de vingança que escutam destinam-se a eles. Eles decidem encarar a morte juntos. Então, acompanhado por Rocco, o ministro aparece na masmorra com Pizarro capturado e a turba.
O ministro deixa Leonore remover as correntes de Florestan, e marido e mulher atiram-se aos braços um do outro. Todos celebram Leonore, o amor conjugal e a busca incessante pela justiça.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Leonore, oder Der Triumph der ehelichen Liebe (Leonora, ou o Triunfo do Amor Conjugal), ópera em três atos, Op. 72
Libreto de Joseph Sonnleithner, baseado em “Léonore, ou L’amour conjugal” de Jean-Nicolas Bouilly
Diálogos por René Jacobs, baseados nas quatro versões do libreto de Sonnleithner e no texto original de Bouilly
1 – Abertura (Leonore no. 2)
PRIMEIRO ATO
2 – Diálogo: „Ich liebe dich, so wie du mich” (Marzelline, Jaquino)
3 – No. 1, Ária: „O wär’ ich schon mit dir vereint” (Marzelline)
4 – Diálogo: „Ich komme zu gar nichts mehr!” (Marzelline, Rocco, Jaquino)
5 – No. 2, Dueto: „Jetzt, Schätzchen, jetzt sind wir allein” (Jaquino, Marzelline)
6 – Diálogo: „Nein, nein und nochmals nein” (Marzelline, Jaquino) – „Schon wieder Krach, ihr Beiden?” (Rocco, Marzelline, Jaquino)
7 – No. 3, Trio: „Ein Mann ist bald genommen” (Rocco, Jaquino, Marzelline)
8 – Diálogo: „Ist Fidelio noch immer nicht zurück, Marzelline?” (Rocco, Jaquino, Marzelline) – „Das hat ewig gedauert” (Marzelline, Rocco, Leonore)
9 – No. 4, Quarteto:„Mir ist so wunderbar” (Marzelline, Leonore, Rocco, Jaquino)
10 – Diálogo: „Es ist klar, sie liebt mich” (Leonore, Rocco, Marzelline)
11 – No. 5, Ária: „Hat man nicht auch Gold beineben” (Rocco)
12 – Diálogo: „Es ist ein mächtig Ding: Das Gold!” (Marzelline, Leonore, Rocco)
13 – No. 6, Trio: „Gut, Söhnchen, gut” (Rocco, Leonore, Marzelline)
SEGUNDO ATO
14 – Alla marcia, ma non troppo presto (WoO 2b)
15- Diálogo: „Hauptmann, ich will drei Schildwachen auf dem Wall” (Pizarro, Hauptmann, Rocco)
16 – No. 8, Ária com coro: „Ha! Welch ein Augenblick!” (Pizarro, Die Wachen)
17 – Diálogo: „Hauptmann, kommen Sie!” (Pizarro, Hauptmann, Rocco)
18 – No. 9, Dueto: „Jetzt, Alter, jetzt hat es Eile!” (Pizarro, Rocco)
19 – Diálogo: „Ich bin zu feige, ihr die Wahrheit zu sagen” (Leonore, Marzelline)
20 – No. 10, Dueto „Um in der Ehe froh zu lebe” (Marzelline, Leonore)
21 – Diálogo: „Komm Fidelio, wir gehen spazieren” (Marzelline, Leonore) – „Wie grausam, dieses liebenswürdige Mädchen” (Leonore)
22 – No. 11, Recitativo e Ária: „Ach, brich noch nicht, du mattes Herz!” (Leonore)
23 – No. 12, Finale: „O, welche Lust, in freier Luft” (Gefangene)
24 – Diálogo: „Nun sprecht, wie ging’s?” (Leonore, Rocco)
25 — „Ach, Vater, eilt!” (Marzelline, Rocco, Jaquino, Leonore, Pizarro, Chor der Wachen)
TERCEIRO ATO
26 – Nr. 13, Introdução e Ária: „Gott! Welch Dunkel hier!” (Florestan)
27 – No. 14, Melodrama e Dueto: “Eiskalt ist es hier!” (Leonore, Rocco)
28 – Diálogo: „Er macht die Augen auf!” (Leonore, Rocco, Florestan)
29 – No. 15, Trio: Euch were Lohn in bessern Welten” (Florestan, Rocco, Leonore)
30 – Diálogo: „Alles ist bereit” (Rocco, Leonore, Florestan) – „Ist alles bereit?” (Pizarro, Rocco)
31 – No. 16, Quarteto: „Er sterbe!” (Pizarro) – Diálogo: „Folge mir Rocco!” (Pizarro) – „Die Waffe hab’ ich mir nehmen lassen” (Leonore)
32 – No. 17, Recitativo e Dueto: „Ich kann mich noch nicht fassen” (Florestan, Leonore)
33 – Diálogo: „Durch welches Wunder gelang es dir” (Florestan, Leonore)
34- No. 18, Finale: „Zur Rache, wir müssen ihn seh’n!” (Chor) – „Zur Rache, zur Rache!” (Chor, Rocco, Florestan, Leonore, Fernando, Jaquino, Marzelline)
Encarte com libreto em alemão, inglês e francês
Marlis Petersen, soprano (Leonore)
Robin Johannsen, soprano (Marzelline)
Maximilian Schmitt, tenor (Florestan)
Johannes Chum, tenor (Jaquino)
Dimitry Ivashchenko, barítono (Rocco)
Johannes Weisser , baixo (Pizarro)
Tareq Nazmi, baixo (Don Fernando)
Zürcher Sing-Akademie
Freiburger Barockorchester
René Jacobs, regência
Vassily
Muito obrigada pela sua postagem!
Você sabe me dizer se consigo este libretto de Leonore sem ser em alemão?
Olá, Karen!
Que bom que gostou da postagem!
O encarte da gravação de Jacobs tem a tradução do libreto em inglês e em francês. Você o encontrará aqui, e ele será adicionado à postagem.
Muitíssimo obrigada, Vassily!