Se não levei pedrada com todo Glenn Gould que postei mês passado, será agora que minha carcaça receberá, em uma só prestação, todo o monolito que merece sobre si: música de Bach, o Demiurgo da Música, tocada num sintetizador.
Não é qualquer sintetizador, claro, nem um intérprete qualquer: é o pioneiro Moog de Wendy Carlos, que tanto colaborou para seu desenvolvimento ao lado de seu inventor, Robert Moog, como deu-lhe um senhor cavalo de batalha na forma do estrondoso sucesso dessa gravação.
Ninguém na Columbia levava muito a sério o obstinado trabalho de Carlos, dotada de formação privilegiada para a empreitada: pianista e compositora, com diplomas em Música e Física e estudos sob Vladimir Ussachevsky, um dos pioneiros da música eletrônica. A natureza monofônica do sintetizador Moog tornava qualquer acorde frugal um exaustivo trabalho de overdubbing, e todos os crescendos e decrescendos eram frutos de meticulosa filtragem e ajustes. Ainda assim, Carlos e seus colaboradores fizeram questão de gravar Bach nota por nota, sem outros aditivos. A honrosa exceção foi o segundo movimento do Concerto de Brandenburg no. 3, para o qual Bach forneceu somente uma sucinta cadência de dois acordes, por talvez esperar que o cravista do contínuo improvisasse a sua própria, e na qual Carlos insere efeitos de “virtuosidade eletrônica” que não considerou apropriados às outras faixas do disco. Em 1979, ao relançar este Concerto como parte de “Switched-on Brandenburgs”, ela, arrependida do que considerou um excesso, incluiu uma outra cadenza, mais sóbria.
O sucesso do álbum, lançado com pouquíssimo alarde, foi tremendo, e “Switched-on Bach” tornou-se a primeira gravação de música clássica a chegar ao topo das paradas desde a triunfal estreia de Glenn Gould com as “Variações Goldberg” em 1955. Gould, aliás, virou tiete de Carlos, talvez porque o trabalho dela trouxesse não só a clareza e transparência na realização das partes polifônicas, que eram parte importante do ideal artístico do canadense, e também porque era o produto de exasperante atividade de estúdio, que Gould tinha como cenário ideal para fazer música, já que abandonara os palcos ainda nos anos 60.
Talvez os leitores-ouvintes tenham impressão diferente da minha, mas eu sou um eterno fascinado por esta gravação que não envelhece. Desde a cintilância da abertura com a Sinfonia da Cantata no. 29, passando por Invenções a Duas Vozes transparentes e pela célebre Ária da Suíte no. 3 com timbres de madeiras, e concluindo com um Concerto de Brandenburgo tão sui generis que se pode até suspeitar da fidelidade estrita ao original bachiano, este “Switched-on Bach” – relançado numa caprichada edição remasterizada e meticulosamente comentada por Carlos em áudio e no encarte – ainda soa sanguíneo e fresco como um dos mais importantes álbuns da história fonográfica.
SWITCHED-ON BOXED SET: SWITCHED-ON BACH
Johann Sebastian BACH (1685-1750)
01 – “Wir danken dir, Gott, wir danken dir”, Cantata BWV 29 – Sinfonia
02 – Suíte no. 3 em Ré maior para orquestra, BWV 1068 – Aria
03 – Invenção a duas vozes no. 8 em Fá maior, BWV 779
04 – Invenção a duas vozes no. 14 em Si bemol maior, BWV 784
05 – Invenção a duas vozes no. 4 em Ré menor, BWV 775
06 – “Herz und Mund und Tat und Leben”, Cantata BWV 147 – Coral: “Jesus bleibet meine Freunde”
07 – O Cravo bem Temperado, livro I – Prelúdio e Fuga em Mi bemol maior, BWV 852
08 – O Cravo bem Temperado, livro I – Prelúdio e Fuga em Dó menor, BWV 847
09 – “Wachet auf, ruft uns die Stimme”, Prelúdio-Coral BWV 645
10 – Concerto de Brandenburg no. 3 em Sol maior, BWV 1048 – Allegro
11 – Concerto de Brandenburg no. 3 em Sol maior, BWV 1048 – Adagio [cadenza de 1968]
12 – Concerto de Brandenburg no. 3 em Sol maior, BWV 1048 – Allegro
13 – Concerto de Brandenburg no. 3 em Sol maior, BWV 1048 – Adagio [cadenza de 1979]
14 – Experimentos iniciais (em inglês, narração de Wendy Carlos)
Wendy Carlos, sintetizador Moog (em colaboração com Rachel Elkind e Benjamin Folkman)
Vassily Genrikhovich
Já tive em vinil. Obrigado, Vassily, pela oportunidade do reencontro com essa gravação!
Mil vezes a capa original.
Deu saudade…
Vassily, sabe aquela piada que eu contei aqui sobre Jesus e a mulher adultera? Das pedras que iriam ser atiradas na adúltera? Pois aguarde que desta vez tem pelo menos 15 portugas te olhando fixamente!
Tambem me lembrei dessa capa…abraços!
manuel
Nossa! Gosto muito da Wendy Carlos, estou felicíssimo com essa coleção! E concordo com a visão de Gould: a clareza que Wendy Carlos consegue nas músicas é fabulosa. Ouve-se claramente tudo o que está acontecendo em cada frase, e isso para a música de Bach é particularmente emocionante.
Adoro essa clareza, amo essa transparência. Bach nota a nota, como nunca fora ouvido antes.