Cada vez que penso no Máli não consigo deixar de lembrar que a primeira caracterização desse país que uma enciclopédia me ofereceu começava dizendo: “um dos países mais pobres do mundo” – afirmação seguida, naturalmente, de uma série de números que, pela mentalidade ocidental dominante, resumem tudo o que existe de relevante no real.
Por isso vocês hão de imaginar meu espanto quando mais tarde descobri que há não tantos séculos assim esse era o nome de um nos impérios mais extensos e poderosos do mundo. Ao ver fotos de crianças lindas e evidentemente bem nutridas às margens do Rio Níger. Ao saber da imensa diversidade étnica e cultural que a região contém, e que se mostra exuberantemente todos os anos no Festival sur le Niger, na cidade de Segu ou Ségou. Diante da espantosa arquitetura em adobe de Djenné ou de Mopti, e dos 600 mil manuscritos remanescentes da universidade medieval de Tombúktu – etc. etc. E, talvez mais que tudo, diante da sutil e refinada tradição de música instrumental que se expressa, por exemplo, em Toumani Diabaté, de que já fiz uma postagem aqui.
O som que trago hoje parecerá menos “clássico” – quem sabe já por envolver palavra cantada em vozes não impostadas -, e não estranharei se alguém disser que “parece tudo igual”. Caso isso aconteça, pedirei antes de mais nada que o ouvinte lembre de conceitos como “minimalismo” antes de descambar pra palavras como “primarismo”; e em segundo lugar que microscopize um pouco mais sua atenção e seus ouvidos, lembrando que, segundo dizem, não apenas o diabo mas também Deus mora nos detalhes (hora em que cabe invocar o desafio de não lembro qual compositor dos anos 60-70 que o Padre Penalva lançava sempre aos seus alunos: “quando estiver achando uma música monótona, desconfie de si mesmo”).
Bassekou Kouyaté já trabalhou com Toumani Diabaté mas não toca a espécie de harpa que é a kora, toca ngoni, instrumento de cordas com braço. Seu conjunto de ngonis, percussão e voz se chama Ngoni Ba, e conta com a participação vocal da sua mulher Ami Sacko. O CD, premiado como o melhor de “world music” em 2007 pela BBC3, tem “blue” no nome. Um disco de blues?
Não. Ou… quem sabe talvez. Ou talvez de certa forma sim… Querem saber? Ouçam! Mas sugiro que também “ouvejam” o primeiro dos vídeos abaixo: no calor da interpretação ao vivo diante da multidão, parece gritante um caráter de blues – e na quietude “cool” da gravação de estúdio onde é que ele foi parar? É a mesma música… Minha impressão é que o tal caráter não está ausente, mas como que “virado para dentro”; ou em estado latente, potencial.
Algum bluesman que tocou com Bassekou (não lembro qual, desculpem, li faz anos) saiu declarando que havia descoberto a região de origem do blues. Suspeito que seja exagero. Quando falo de “ancestralidade” no título não quero dizer que essa música do Máli seja avó do blues ou do jazz ou algo assim, e sim que têm ancestralidade em comum. Afinal, Bassekou Kouyaté vive hoje, nasceu quando Muddy Waters e Howlin’ Wolf já tinham mais de 50 anos (cada!), e as vias que unem a África ao resto do mundo não são de mão única. Bassekou é um cultor atual da música de raiz de sua terra, mas nesse cultivo não deixa de levar em conta o aroma dos frutos que a mesma árvore produziu quando transplantada a outros continentes. E muito mais que um avô, eu o veria como um primo dos jazzmen e bluesmen desse mundo.
Bom, essa a minha impressão – e agora é com vocês.
Bassekou Kouyate & Ngoni Ba: SEGU BLUE (2007)
01 Tabeli te
02 Bassekou
03 Jonkoloni
04 Juru nani
05 Mbowdi
06 The River Tune
07 Andra’s Song
08 Ngoni fola
09 Banani
10 Bala
11 Segu tonjon
12 Sinsani
13- Lament For Ali Farka
14- Segu Blue (Poyi)
. . . . . . . BAIXE AQUI – download here
Ranulfus
Estou muito curioso para ouvir. É uma merda ter que trabalhar…
O Mali é o máximo. Morro de vontade de passar um tempo por lá. Ainda que me interesse a música de vários países africanos (sobretudo Etiópia, Nigéria, Camarões e Angola), a música no Mali é uma outra coisa. Há uma densidade, uma sensualidade que não encontrei ainda sistematicamente em nenhum outro país do continente. Qualquer dia poste uma Kandia Kouyaté, Ranulfus. Eu ia ficar contente que só de vê-la por aqui.
Sabe onde encontro pra baixar ou comprar (cartão visa) a partitura do magnificat de bach (bwv 243), o solo da soprano II “et exultavit spiritus meus” reduzida pra PIANO?
Realmente, mesmo no mundo dos blogs musicais, não existe site igual a esse.
Só na página principal de hoje temos postagens inéditas e incríveis, desde barrocos absolutamente essenciais e pouco conhecidos (Biber etc), passando pelo Quinteto Armorial, até essa grande postagem da música do Mali. E obviamente, todo o resto.
O comentário do itadakimasu também me deixou curioso sobre a música no resto do continente africano.
Obrigado a todos por compartilharem sua sabedoria e seus tesouros musicais!
Simone, a partitura completa do Magnificat está aquí:
http://imslp.org/wiki/Magnificat_in_D_major,_BWV_243_%28Bach,_Johann_Sebastian%29
Faço minhas as palavras do violistaruim. Vida longa ao PQP Bach!
Oi, Ranulfus.
Já conhecia o Bassekou Kouyate. Ainda sim, achei bem interessante a abordagem que fez da música de Mali. O vídeo sobre o festival sur le niger é bem intessante, quanta diversidade em um único país.
um abraço!