.: interlúdio :. BASIE JAM 2 & 3, 1976

Um país que concede carteira de habilitação automobilística a um sujeito como eu, ‘barbeiro de carteirinha’, não pode ser um país sério, embora hoje, nesta data de 2 de janeiro de 2022 d.C., saibamos o quanto podemos ser seríssimos (pelo menos em pouco mais de 50% da população). Permitam-me contar, a propósito da tal credencial, que há alguns anos, quando ainda não aprendêramos a duríssimas penas o quanto poderíamos ser tão sérios, precisei renovar a carteira de motorista. Aproveitando o ensejo de estar num Taxi, indaguei ao chofer como andavam as coisas quanto a ‘renovação de carteira’. Ele me olhou ‘seríssimo’ e de olhos esbugalhados, me falou: “Ah, isso agora é uma DEMOCRACIA!”. Eu jamais cometeria a indelicadeza de rir do meu seríssimo informante e condutor, decerto desabituado a utilizar o termo ‘burocracia’; apenas me veio a ideia de que contaria o ocorrido a alguns colegas do meu círculo musical e eles dariam boas gargalhadas. Hoje, sob o lábaro do nosso gratíssimo momento histórico, me vem a lembrança deste divertido episódio, mais a referência de um ótimo livro de Tom Holland (historiador inglês, não o ator do Homem Aranha mais insosso do cinema). Em seu formidável “Fogo Persa”, Mr. Holland nos traz detalhes sobre a criação da Democracia (por vezes um verdadeiro presente de grego, mas ainda assim a melhor filosofia). Na lente da História os antigos nos sabem a semideuses. O fato é que onde há poder e porfia pelo mesmo, há veneno. Clístenes, filho de dona Agarista de Sicião com o compadre Mégacles, assomou pelos milênios como um dos pais, senão o pai, da chamada Democracia. Clístenes, vendo-se quase que literalmente com a peixeira no pescoço, num momento de sagacidade digna do Odisseu, lançou à multidão a ideia democrática e cativou o público. Angariando, todavia, o ódio dos asseclas com os quais chegara a Atenas aspirando a tirania. Enfim, em nossa História, só foi santo J. S. Bach. Evoco a Democracia nessa postagem, não apenas porque é a palavra do momento e a virtude cívica pela qual devemos primar. Trago o termo também porque não existe gênero musical mais democrático do que o Jazz.

Também não existe gênero musical mais difícil de se classificar, analisar e definir, quanto o Jazz – que um dia foi Jass. Fosse um termo indecoroso referente ao refocilo da carne ou uma referência aos jasmins dos cabelos das ninfas de ébano de New Orleans, este derivado do blues com o ragtime cumpriu uma celeríssima evolução no espaço de poucas décadas, na dinâmica de um século vertiginoso. Fazendo o século XX, como diria Dizzy Gillespie, soar como nenhum outro. No Jazz temos estilos conforme o tempo e lugar, e dentro de cada estilo intérpretes, os quais, cada um em si constitui um universo particularíssimo de manifestação musical. Não há também estilo mais gregário e dúctil, aberto a influências conforme diferentes culturas e veículo de novas expressões – únicas, a cada artista que o cultiva. Para além disso, o Jazz é dificílimo de se conceituar. Existem intérpretes que mal usam o material do blues, elemento considerado fundamental no gênero, embora seu espírito esteja presente. Defender que a preeminência da improvisação define o Jazz é plausível, todavia, a peça Fontainebleau, de Tadd Dameron, é escrita com o rigor de uma fuga barroca, sem espaços para improviso, e é Jazz. Mais inúmeros arranjos de orquestras e big-bands estruturadíssimos, apesar dos momentos de solo. O elemento do swing pode ser apontado como fator determinante para definir o que seria Jazz, porém que swing? New Orleans Style, Be-bop, Hard Bop, Jazz Manouche, Fusion… Louis Armstrong, Django Reinhardt, Basie, Ellington, Moacir Santos, Hermeto Pascoal… Impossível capturar uma definição precisa. Convenhamos, nada menos aplicável a uma arte do que um dogma. Assim sendo, melhor seguir o conselho do meu tio Wilde e aproveitar a rosa, ao invés de ficarmos analisando suas raízes num microscópio.

O mais puro exercício de democracia em música acontece numa Jam Session, onde cada um tem a sua vez na construção musical. Mesmo que parte da chamada cozinha, bass e drums, não se pronunciem em solo em todas as faixas, haverá sempre seus momentos, o que os ressalta de forma especialíssima. Não há ostracismo na Jam Session. Os longos movimentos em Tacet, onde o pobre tocador de pratos numa certa sinfonia de Tschaikovsky fica de castigo até o último momento. O chorus (o bloco harmônico a ser utilizado ao longo de certo número de compassos) é dividido em número pré estabelecido entre os solistas, e a ordem de atuação deve ser respeitada. Cada nota é um voto pela construção da obra total e, grande lição, pelo bem comum. Não há partidos numa Jam Session. E o único roubo se dá quando um solista aproveita e desenvolve uma ideia tocada pelo outro ao final do seu solo. Na verdade, uma reciclagem motívica.

Esta postagem traz dois tesouros da Pablo Records, que tantas maravilhas jazzísticas nos legou, envoltas em suas características e belas capas em preto e branco: Basie Jam 2 e 3 de 1976. Escolhi estes e não o Basie Jam 1, de 1973 (que poderá vir futuramente) porque ambos, 2 e 3, trazem o mesmíssimo grupo em ação e foram gravados em sequência. Temos aqui um brilhantíssimo exemplo da democracia musical supracitada, nas mãos de verdadeiros tótens do Jazz, liderados por Sua Majestade (sem qualquer apologia monárquica) Count Basie. Certa vez lhe indagaram como desenvolveu o seu lacônico estilo ao piano. Sutis tilintares no mar sereno da condução rítmica e harmônica, monossilábicas blue-notes que dizem tudo o que precisamos saber – ou sentir. Ele respondeu que tocando nas noites se via obrigado a revezar a sua mão direita entre o piano, o copo de whisky, o charuto e as mãos dos que vinham cumprimentá-lo. Ora, o que para outros gêneros musicais poderia ser uma limitação, no Jazz transmuta-se em estilo. Orbitando o piano de Basie, um gigante do trompete, o queridíssimo Clark Terry. Um daqueles artistas reconhecíveis com apenas duas notas. Dono de uma habilidade e verve que marcaram a história do gênero. Aqui deflagrando estonteantes solos repletos de feeling. Ao seu lado, no sax tenor, Eddie “Lockjaw” Davis, também chamado “Jaws” (nada a ver com o cara dos filmes de 007), devorando os solos como se come pelas beiradas um delicioso pastel quente. No trombone, Al Grey, egresso das melhores big bands, especialmente de Count Basie, onde se notabilizou pelo som vibrante, pelo contagiante swing dos seus solos e pelo uso da surdina plunger (desentupidor de pia), com a qual tecia verdadeiros e quase vocálicos comentários no efeito ‘wa-wa’. Integrando essa constelação, o grande Benny Carter no sax alto. Um dos músicos mais representativos do Jazz, como multi-instrumentista, compositor e arranjador, além de uma personalidade ímpar e admirável. Junto com Johnny Hodges foi pioneiro no seu instrumento (embora deva ser lembrado Frank Trumbauer, colega de copo e de orquestra do genial Bix Beiderbecke, que tocava algo similar, um chamado Sax Melody). Carter foi um dos mais destacados, prolíficos e queridos músicos do Jazz. Por trás desta quadra de ases, à guitarra, Joseph Anthony Jacobi Passalaqua, mais conhecido como o fenomenal Joe Pass. Outro dos mais relevantes e atuantes criadores daquele idioma musical, especialmente no seu instrumento, do qual é, inegavelmente e junto a Django Reinhardt, Charles Christian e Wes Montgomery, um dos maiores e influentes nomes – um daqueles nomes dos quais duas ou três postagens ainda seria pouco para se falar. No Double Bass, John Heard, baixista, mas também artista plástico. Pintor e escultor. Músico de extensa atuação junto a demarcados artistas e que aqui se ressalta especialmente pela virtude que se espera de um grande contrabaixista: uma base fidelíssima e cheia de swing, que a certa altura percebemos ser fundamental; sem a qual nada poderia acontecer na linha de frente. Finalmente, no trono da bateria, um dos brilhantes nomes desse instrumento junto a Chick Webb e Gene Krupa, o ítalo-americano Luigi Paulino Alfredo Francesco Antonio Balassoni: Louis Bellson, com sua ‘discretíssima’ e famosa peruca. Drumer, bandleader, compositor e arranjador, educador musical (ufa!); ah, e pioneiro no uso de dois Bass Drums, os tambores maiores da bateria. Como podemos ver, amigos, num time desses só falta o Rei Pelé – que Deus o tenha!

Dedico esta postagem ao amigo José Maria Avallone (em memória), clarinetista e artista plástico, um dos maiores amantes e conhecedores do Jazz que conheci.

BASIE JAM 2
1 Mama don’t Wear No Drawers (Basie, Carter, Terry)
2 Doggin’ Around (Battel, Evans)
3 Kansas City Line (Basie)
4 jump (Basie, Carter, Tery, J.J. Johnson)

BASIE JAM 3
1 Bye Bye Blues (Bennet, Gray, Lows)
2 Moten Swing (Bennie Moten)
3 I Surrender Dear (Berris, Clifford)
4 Song of the Islands (Charles King)

BASIE JAM 2
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BASIE JAM 3
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Nada mais democrático que o Jazz.

WellBach

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