Para honrar a memória e celebrar o legado extraordinário de Arthur Moreira Lima, um dos maiores brasileiros de todos os tempos, publicaremos a integral da coleção Meu Piano/Três Séculos de Música para Piano – seu testamento musical – de 16 de julho, seu 85° aniversário, até 30 de outubro de 2025, primeiro aniversário de seu falecimento. Esta é a quinta das onze partes de nossa eulogia ao gigante.
Partes: I | II | III | IV | V | VI | VII | VIII | IX | X | XI
Nem como o general de pijama que sempre brincava que seria, se tivesse largado a Música e seguido feito um Dodge a partir do Colégio Militar, nem assim Arthur Moreira Lima teria colecionado tantas medalhas – o que se torna no mínimo curioso quando nos apercebemos do quão cético ele, de longe e com sobras o mais laureado pianista brasileiro, era quanto a capacidade da diminuta janela de um concurso mostrar com justiça os horizontes artísticos dos jovens aspirantes que, sob os tomates do júri, passam por sua esteira rolante…
… ou corredor-polonês.

O corredor-polonês de Arthur foi, por óbvio, o VII Concurso Internacional Chopin em Varsóvia, realizado em 1965 durante um inverno de trincar os dentes. Durante os dois anos em que se preparou, sob a supervisão de vários veteranos do concurso e do onipresente mestre Rudolf Kehrer, nosso herói estudou até dez horas por dia e submeteu-se a simulações das etapas da competição, tocando seu programa completo ante auditórios lotados de exigentes plateias moscovitas. O carioca de Estácio chegou a Varsóvia, em suas próprias palavras, na ponta dos cascos, e já nos teria enchido de orgulho por tão só capitanear a delegação de concorrentes do mítico Conservatório de Moscou naquela competição amplamente dominada por pianistas da sovietosfera até a edição anterior, vencida por um socialista milanês de 18 anos que, nas palavras do jurado Arthur Rubinstein, tocava “mais que qualquer um de nós”.

Arthur, que sempre estranhou o silêncio de seus compatriotas enquanto estudava em Moscou, foi surpreendido por um convite, a meros dois meses do embarque para Varsóvia, para representar o Brasil no Chopin’65. O jovem até então inscrito, um mineirinho de tenros vinte anos, desistira de participar, e só então se lembraram do mais tricolor dos moscovitas, a quem ofereceram uma ajuda de custo que sumiu no éter tão rapidamente quanto o próprio convite.

Especialista no extraordinário, o carismático brasileiro que tocava mais russamente que os próprios russos tornou-se instantaneamente o favorito das plateias de Varsóvia, tão pouco afeitas a russos quanto prontas a acolher quem honrasse a arte de seu mais célebre gênio. Bem mais que um concurso para jovens músicos, o Concurso Chopin é sobretudo uma festa nacional polonesa, uma celebração de orgulho de uma nação que uma vez mais se reconstruía após agressão estrangeira, e era um cenário ideal para que o rapaz de mãos destemidas e pontiagudo e chopiniano perfil causasse sensação cada vez que pisava o palco.

Arthur venceu com facilidade a primeira etapa, que selecionou 36 candidatos, e classificou-se em segunda posição na segunda, ao fim da qual restaram doze candidatos. A terceira etapa, que previa a execução da peça de confronto, obrigatória a todos os candidatos (o Noturno em Mi bemol maior, Op. 55 no. 2), e de uma Sonata a escolher, foi um triunfo. Enquanto todos os concorrentes preferiram a brilhante Sonata em Si menor, Arthur foi o único a tocar a doída Sonata em Si bemol menor. A Marcha Fúnebre e o Finale, com as frenéticas figurações em oitavas paralelas, causaram frenesi no público, cujos aplausos chamaram o Chopinzinho de volta ao palco quatorze vezes. Nosso homem em Varsóvia venceu a etapa, o prêmio especial do júri pela melhor interpretação de uma sonata, e qualquer resistência que ainda pudesse haver a ele na imprensa polonesa:
Interpretou [a Sonata] de maneira extremamente bela, dir-se-ia fantástica”
“Não foram ouvidos [no Concurso] concentração e silêncio iguais (…) ao decorrer de sua execução da Marcha Fúnebre da Sonata em Si bemol menor”
“Tocou o Noturno de maneira formidável, e a Sonata (…) ultrapassou todas as previsões”
“Incomparável (…) o som parecia sair acima do piano, sem toques ao teclado”
“Foi o herói principal de ontem”
“… em sua interpretação da ‘Sonata em Si bemol menor’ somos forçados a usar a palavra ‘genial'”
Chegou favoritíssimo entre os seis finalistas e, para a prova final com orquestra, também fez uma escolha muito pessoal: em lugar do Concerto em Mi menor, algo mais brilhante, tocado por nove entre dez finalistas do Concurso, preferiu o Concerto em Fá menor, camerístico e intimista, e seu favorito desde que o estudara sob sua mestra em Paris, Marguerite Long. Arthur não foi nada mal, mas cometeu alguns erros, e seu piano, engolido pela orquestra, não brilhou como nas etapas anteriores. Classificou-se em quinto na final e conquistou o segundo lugar geral. Entre 2100 pontos possíveis, ficou apenas meio ponto atrás da vencedora, uma argentina que era um verdadeiro huracán e, a despeito duma preparação tumultuada após maternidade, divórcio, disputas pela guarda da filha e alguns anos longe do piano, era uma máquina de acertar e, como muitos já sabiam, uma das maiores pianistas de todos os tempos.

Ficar com a prata e apenas meio ponto atrás duma figura tão genial em nada chateou Arthur. Ao final do corredor-polonês, viu-se catapultado, juntamente com a guapísima bonaerense, para a fama mundial. Qualquer ressaca que restasse após vinte e três dias de tanta tensão e concentração teria sido liquidificada pela turnê pós-concurso, em que, aliviado pelo dever cumprido, deu com imensa alegria dez recitais, todos abarrotados de poloneses ansiosos para ver e ouvir o brazylijski Szopen. O retrogosto deixado por aqueles quase dois meses em Varsóvia renderia numerosos retornos ao país para concertos e recitais, uma das mais estupendas gravação do Rach 3 em todos os tempos (que já publicamos aqui) e outras duas participações no Concurso Chopin. Na primeira delas, em 1975, deu um recital como pianista convidado – e façam um favor a si mesmos e escutem esse noturno, que nunca ouvi mais lindo em minha vida:
Na outra, em 2021, participou como jurado, substituindo Martha Argerich e Nelson Freire. Sua ex-concorrente, de quem se tornara amigo, estava no Rio para cuidar de Nelson no que infelizmente seriam as últimas semanas de vida do mestre brasileiro, e indicou Arthur para as cadeiras que deixaram no júri.

De sua participação sensacional na sétima edição do Concurso Chopin conheciam-se, por muito tempo, apenas as gravações publicadas na coleção da Caras em 1999, que encontrarão no final dessa postagem. Posteriormente, o Instituto Nacional Fryderyk Chopin de Varsóvia (NIFC) traria a conta-gotas algumas outras, incluindo o lançamento comercial da eletrizante prova final do duelo portenho-carioca, que lhes ofereço aqui. Os ouvidos do mundo precisaram aguardar sessenta anos para que a integral das provas de Arthur viesse à tona, numa parceria entre o NIFC e – sempre ele – o Instituto Piano Brasileiro, do inestimável Alexandre Dias:
O “Chopin Brasileiro” também brilharia no Concurso Internacional de Leeds em 1969. Muito mais descontraído que suas disputadas contrapartes no Leste Europeu (Arthur sempre se lembrava dum jurado que dizia aos concorrentes que tivessem calma, porque a vida era bem mais que tão só tocar piano), o Concurso adolescente recém chegava a sua terceira edição. Cheio de idiossincrasias, em especial pelo fato dos concertos na final não serem tocados na íntegra, acabou marcado por uma decisão controversa: em lugar dos três finalistas previstos no regulamento, a última etapa incluiu cinco participantes. Virada de mesa ou marmelada? Deixo para vocês decidirem. Apenas lhes digo que ela aconteceu por pressão dos patronos do Concurso para corrigir o que consideraram um erro crasso dos jurados, que eliminaram um jovem pianista romeno que era o favorito do público e, no final, sairia vencedor:

Nosso herói, que estava entre os três finalistas originais, escolheu tocar uma vez mais o fatídico Fá menor de Chopin, e classificou-se em terceiro lugar. Não conhecemos qualquer gravação das provas, mas parte do repertório do Concurso foi gravado pelos laureados em estúdio logo após a premiação, e veio à tona graças a – cornucópia de tesouros do (de quem mais?) Instituto Piano Brasileiro. Amo as interpretações de Arthur, mas são os Improvisos de Schubert sob o mago Lupu – seu amigo e colega no Conservatório de Moscou – que me assombram e me fazem quase assinar embaixo da virada de mesa. É ouvir para crer:
A glória final de Arthurzinho, o Concurseiro, dar-se-ia em território muito familiar: a Grande Sala do Conservatório Tchaikovsky de Moscou, onde ele – para usar um dos termos futebolísticos que lhe eram tão caros – “jogaria em casa” no Concurso com o nome de Pyotr Ilyich, que chegava à sua quarta edição em 1970. Com trinta anos e já no limite superior da idade para esse tipo de evento, ele participou da equipe do Conservatório, capitaneada por Vladimir Krainev, que acabaria por dividir o primeiro prêmio com o britânico John Lill. Não obstante, fez bonito num repertório que tocaria de olhos vendados, e conquistou o terceiro lugar. De sua participação conservaram-se gravações de duas etapas – incluindo a final, uma supermaratona pianística com o Concerto no. 1 de Tchaikovsky e o no. 3 de Rachmaninov tocados em sequência, e que nos foi trazida pelo – surpresa, surpresa – Instituto Piano Brasileiro:
IV Concurso Internacional Tchaikovsky – Primeira Etapa (e eu miacabo com a expressão de Rudolf Kehrer)
IV Concurso Internacional Tchaikovsky – Terceira etapa (final)




ARTHUR MOREIRA LIMA – MEU PIANO/TRÊS SÉCULOS DE MÚSICA PARA PIANO
Coleção publicada pela Editora Caras entre 1998-99, em 41 volumes
Idealizada por Arthur Moreira Lima
Direção artística de Arthur Moreira Lima e Rosana Martins Moreira Lima
Fryderyk Francyszek CHOPIN (1810-1849)
Grande Valsa Brilhante para piano em Mi bemol maior, Op. 18
1 – Vivo
Grandes Valsas Brilhantes para piano, Op. 34
2 – No. 1 em Lá bemol maior
3 – No. 2 em Lá menor
4 – No. 3 em Fá maior
Grande Valsa para piano em Lá bemol maior, Op. 42
5 – Vivace
Três Valsas para piano, Op. 64
6 – No. 1 em Ré bemol maior
7 – No. 2 em Dó sustenido menor
8 – No. 3 em Lá bemol maior
Duas Valsas para piano, Op. 69
9 – No. 1 em Lá bemol maior
10 – No. 2 em Si menor
Três Valsas para piano, Op. 70
11 – No. 1 em Sol bemol maior
12 – No. 2 em Fá menor
13 – No. 3 em Ré bemol maior
Valsas para piano, Opus póstumo
14 – Em Mi menor, Op. Posth., B. 56
15 – Em Mi maior, B. 44
16 – Em Lá bemol maior, B. 21
17 – Em Mi bemol maior, B. 46
18 – Em Mi bemol maior, B. 133
19 – Em Lá menor, B. 150
Arthur Moreira Lima, piano
Gravação: American Academy Hall, Nova York, Estados Unidos, 1982
Produção e engenharia de som: Judith Sherman
Supervisão: Jay K. Hoffman
Piano: Steinway & Sons, Nova York
Remasterização: Rosana Martins Moreira Lima (1998)
Fryderyk CHOPIN
Dos Três Noturnos para piano, Op. 9:
1 – No. 2 em Mi bemol maior
2 – No. 3 em Si maior
Dos Três Noturnos para piano, Op. 15:
3 – No. 2 em Fá sustenido maior
Dois Noturnos para piano, Op. 27
4 – No. 1 em Dó sustenido menor
5 – NO. 2 em Ré bemol maior
Dos Dois Noturnos para piano, Op. 48:
6 – No. 1 em Dó menor
Dois Noturnos para piano, Op. 55
7 – No. 1 em Fá menor
8 – No. 2 em Mi bemol maior
Dos Dois Noturnos para piano, Op. 62:
9 – No. 1 em Si maior
Noturno para piano em Dó sustenido menor, Op. Póstumo
10 – Lento con gran espressione
Arthur Moreira Lima, piano
Gravação: Rosslyn Hill Chapel, Hampstead, Londres, Reino Unido, 1998
Engenheiro de som: Peter Nicholls
Idealização e direção musical: Arthur Moreira Lima
Idealização, direção musical, produção e edição: Rosana Martins Moreira Lima
Piano: Steinway & Sons, Hamburgo
Remasterização: Rosana Martins Moreira Lima
Fryderyk CHOPIN
Duas Polonaises para piano, Op. 26
1 – No. 1 em Dó sustenido menor
2 – No. 2 em Mi bemol menor
Duas Polonaises para piano, Op. 40
3 – No. 1 em Lá maior, “Militar”
4 – No. 2 em Dó menor, “Fúnebre”
Polonaise para piano em Fá sustenido menor, Op. 44
5 – Moderato
Polonaise para piano em Lá bemol maior, Op. 53, “Heroica”
6 – Maestoso
Polonaise-Fantaisie para piano em Lá bemol maior, Op. 61
7 – Allegro maestoso
Arthur Moreira Lima, piano
Gravação: American Academy Hall, Nova York, Estados Unidos, 1983
Produção e engenharia de som: Judith Sherman
Supervisão: Jay K. Hoffman
Piano: Steinway & Sons, Nova York
Remasterização: Rosana Martins Moreira Lima (1998)
Fryderyk CHOPIN
Dos Doze Estudos para piano, Op. 10:
1 – No. 8 em Fá maior
2 – No. 12 em Dó menor, “Revolucionário”
DosDoze Estudos para piano, Op. 25:
3 – No. 5 em Mi menor
4 – No. 10 em Si menor
Sonata para piano no. 2 em Si bemol menor, Op. 35
5 – Grave – Doppio movimento
6 – Scherzo
7 – Marche funèbre: Lento
8 – Finale: Presto
Dos Vinte e quatro Prelúdios para piano, Op. 28:
9 – No. 21 em Si bemol maior
10 – No. 22 em Sol menor
11 – No. 23 em Fá maior
Scherzo para piano no. 2 em Si bemol menor, Op. 31
12 – Presto
Arthur Moreira Lima, piano
Gravação ao vivo no VII Concurso Internacional Fryderyk Chopin, na Grande Sala da Filarmônica de Varsóvia, Polônia, entre fevereiro e março de 1965.
Remasterização: Carlos Freitas (1998)
Das Quatro Mazurcas para piano, Op. 17:
13 – No. 4 em Lá menor
Das Quatro Mazurcas para piano, Op. 30:
14 – No. 4 em Dó sustenido menor
Das Quatro Mazurcas para piano, Op. 68:
15 – No. 4 em Fá menor
Das Quatro Mazurcas para piano, Op. 41:
16 – No. 1 em Dó sustenido menor
Arthur Moreira Lima, piano
Gravação: Moscou, União Soviética, 1971
Remasterização: Carlos Freitas, 1999
“5ª parte da entrevista do pianista Arthur Moreira Lima a Alexandre Dias, em que ele falou sobre como foi participar de grandes concursos de piano entre 1965 e 1970, e sobre sua histórica premiação no IV Concurso Tchaikovsky, em Moscou, Rússia, em que tocou na final o 1º Concerto de Tchaikovsky e o 3º Concerto de Rachmaninoff, sendo aclamado pelo público. Falou sobre o efeito que isto teve sua carreira, abrindo novas oportunidades para tocar na URSS e na Europa, e comentou algumas importantes gravações que realizou no início da década de 1970, incluindo o Concerto No.1 de Villa-Lobos. Além disso, mencionou alguns recitais de grandes pianistas a que assistiu na época, como por exemplo Rubinstein e Michelangeli, e falou um pouco sobre sua própria filosofia como intérprete. Comentou sobre sua mudança para Viena, Áustria, tendo tocado inclusive no Musikverein. Por fim, falou sobre a gravação antológica que realizou em 1975 de músicas de Ernesto Nazareth para a gravadora Marcus Pereira, mudando a história deste compositor, do piano brasileiro, e de sua própria carreira, devido aos novos caminhos que lhe foram abertos. Arthur comentou sobre como foi o processo de gravação em Londres, a escolha de repertório com a colaboração do pesquisador Mozart de Araújo e do próprio Marcus Pereira, e a repercussão que os discos causaram no Brasil.”

Vassily









uma bela homenagem prestada pelo vassilão. sempre com textos muito informativos.
Linda homenagem!
Queria muito saber onde consigo comprar e baixar o álbum dele tocando Piazzolla