Nas partituras usadas há séculos na música de concerto ocidental, muita coisa é escrita e lida em termos bastante racionais: uma oitava é uma oitava, pausa é uma pausa… Na música tonal, é mais ou menos evidente a função de uma pausa, de uma oitava, de uma dissonância resolvida na tônica, etc. Mas quando se trata de timbre e orquestração, muitas vezes as intenções dos compositores podem ser misteriosas e relacionadas com fatos específicos das suas vidas. Mozart, por exemplo, escreveu para clarinete só quando já vivia em Viena: tanto o quinteto como o concerto foram compostos para um clarinete-baixo que poucos anos depois caiu em desuso, de modo que a versão publicada em 1801, transcrita para clarinete tradicional (mais agudo) é aquela que é tocada quase sempre até hoje. Já Haydn, por volta de 1795, quando já tinha composto mais de cem sinfonias e umas dez missas, resolveu incluir partes para tímpanos bem mais proeminentes na Sinfonia nº 103 e na Missa “em tempos de guerra”, como comentei aqui.
J.S. Bach, ao escolher os instrumentos e vozes humanas para suas obras, também seguiu caminhos muitas vezes misteriosos. Ninguém tem certeza do que ele quis dizer com “flauti d’echo” no seu 4º Concerto de Brandenburgo: essa expressão não é usada em qualquer outra obra. Harnoncourt entendia que eram duas flautas doces tocando afastadas dos outros músicos, criando um efeito de eco, já outros especialistas chegaram a outras conclusões.
Outro mistério: por que, na sua coleção de mais de 200 obras vocais que, em sua maioria, misturam movimentos corais com árias para solistas*, Bach compôs três obras para alto com órgão obbligato estreadas em Leipzig em três domingos entre julho e outubro de 1726?
* No século XIX, quando foram editadas, as obras que não se encaixavam como “Paixão”, “Missa”, “Magnificat” ou outra categoria foram classificadas sob o guarda-chuva “Cantata”: essa provavelmente não era a palavra mais usada por Bach. Também data do século XIX a numeração dos “BWV”, que é mais ou menos arbitrária: tirando a ordem da reedição no século XIX, não há qualquer motivo para a cantata de BWV 35 (estreada em setembro de 1726) ter numeração distante das 169 (outubro de 1726) e 170 (julho de 1726).
São poucas as informações sobre os solistas que Bach tinha à disposição nas igrejas onde trabalhava. A hipótese de que, naquele ano, Bach se entusiasmou com a voz de um cantor é apenas isso, uma hipótese sem se apoiar em outros documentos além dessas cantatas. E o motivo para Bach ter escrito complicadas partes para órgão tampouco é claro. Apenas podemos imaginar que, na cabeça do mestre de Leipzig, os sons do órgão combinavam especialmente com a voz de alto (correspondente às contraltos e mezzo-soprano, para as mulheres, e, para os homens, ao contratenor e ao haute-contre no barroco francês).
JOHANN SEBASTIAN BACH (1685 –1750)
Gott soll allein mein Herze haben BWV 169 [22’59]
1 Sinfonia [7’23]
2 Arioso e Recitativo Gott soll allein mein Herze haben [2’48]
3 Aria Gott soll allein mein Herze haben [5’45]
4 Recitativo Was ist die Liebe Gottes? [0’48]
5 Aria Stirb in mir [4’33]
6 Recitativo Doch meint es auch dabei [0’28]
7 Choral Du süße Liebe, schenk uns deine Gunst [1’11]
HEINRICH SCHÜTZ (1585 –1672)
8 Erbarm dich mein, o Herre Gott SWV447 [4’00]
DIETERICH BUXTEHUDE (c. 1637–1707)
Klag-Lied BuxWV76b [13’03]
9 Verse 1 Muss der Tod denn auch entbinden [1’48]
10 Verse 2 Unsre Herzen sind die Väter [1’50]
11 Verse 3 Solcher ist mir auch gewesen [1’50]
12 Verse 4 Dieser nun wird mir entrissen [1’47]
13 Verse 5 Und dass er nun den empfangen [1’50]
14 Verse 6 Er spielt nun die Freuden-Lieder [1’50]
15 Verse 7 Schlafe wohl, du Hochgeliebter [2’04]
JOHANN SEBASTIAN BACH (1685 –1750)
Geist und Seele wird verwirret BWV35 [25’08]
16 PART I Sinfonia [5’02]
17 Aria Geist und Seele wird verwirret [7’38]
18 Recitativo Ich wundre mich [1’34]
19 Aria Gott hat alles wohlgemacht [3’18]
20 PART II Sinfonia [3’12]
21 Recitativo Ach, starker Gott [1’16]
22 Aria Ich wünsche nur bei Gott zu leben [3’06]
IESTYN DAVIES countertenor
with CAROLYN SAMPSON soprano / JOHN MARK AINSLEY tenor / NEAL DAVIES bass-baritone
TOM FOSTER organ
ARCANGELO / JONATHAN COHEN conductor
Recorded in St Jude-on-the-Hill, Hampstead Garden Suburb, London, 2020
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Pleyel
Contratenor não é o tipo de voz que mais amo, mas estou ouvindo o CD e tentando apreciar ao máximo. A instrumentação “canta” tanto quanto a voz humana.
Que texto massa o da postagem! Sempre me pergunto sobre as intenções dos autores…