Arthur Moreira Lima, um dos maiores brasileiros de todos os tempos (e percebam que nem mencionei seu instrumento!), completaria hoje 85 anos. Para celebrar seu legado extraordinário e honrar sua memória, publicaremos a integral da coleção Meu Piano/Três Séculos de Música para Piano – seu testamento musical – de hoje até 30 de outubro, primeiro aniversário de seu falecimento. Esta é a primeira das onze partes de nossa eulogia ao gigante.
Partes: I | II | III | IV | V | VI | VII | VIII | IX | X | XI
Se me perguntassem qual minha primeira memória de Arthur Moreira Lima, eu provavelmente lhes diria que ela é tão remota quanto a que eu tenho de um pianista. Nasci sob o Terror e cresci entre os ventos da Abertura que traziam de volta quem partira em rabos de foguete. Em minha casa ouvia-se muita música – nenhuma que atraísse cassetetes, e quase sempre daquela prevalente em elevadores e consultórios odontológicos. Ainda assim, era música bastante para que a aparição de um pianista na tela da TV, daquelas de antenas finamente ajustadas com palha de aço, não fosse sumariamente rechaçada por uma mudança de canal para a novela da vez. E o pianista, bem, ele era sempre o mesmo: aquele tipo de perfil pontiagudo, olhos a um só tempo alheios e dardejantes, de postura algo gibosa ao teclado e a drapejar sua cabeleira enquanto debulhava com os dedos coisas que eu não imaginava possíveis a mim, menino telespectador. Ele tocava de tudo, e em todo lugar, e ante centenas, milhares, dezenas de milhares de pessoas, e sozinho, e com orquestras, e em toda e qualquer companhia. No programa que teve na TV aberta, inimaginável nesses nossos tristes tempos de Tigrinho, dividiu a ribalta com chorões e roqueiros, seresteiros e jazzistas; mostrou-me Ney Matogrosso pela primeira vez de cara limpa e apresentou-me o semideus Raphael Rabello, que toca, como Gardel canta para os argentinos, cada dia melhor. Entre um número e outro, com o maroto sotaque que nunca renegou seu berço, entrevistava seus convidados com muita descontração – tanta que promoveu o seguinte diálogo entre meus genitores:
– Esse é aquele pianista?
– É.
– Bem informal, hein?
– Sim.
– Nem parece pianista…
O programa saiu do ar sem-cerimoniosamente, e eu, exceto por um LP e outro que encontrava em briques, fiquei sem saber do madeixudo carismático, até o dia em que, exaurido por um plantão no pronto-socorro e disposto a tudo para ver algo que não fosse sangue ou pus, encontrei um palco montado no meio do maior parque de minha Dogville natal. Sobre ele, um piano, e ante este – sim, adivinharam! – o pianista que nem parecia pianista, e que, contrariando tudo o que se dizia dele – que não estudava, que não se levava a sério, que estava decadente – despachava com segurança os arpejos do Estudo Op. 10 no. 1 de Chopin sob o olhar tietante duns gatos-pingados aos quais me juntei, lá na fila do gargarejo. Emendou, em seguida, o “Revolucionário“, o “Tristesse“, o das teclas pretas, e foi esgotando o Op. 10, estudo a estudo, inteiros ou em parte, até que faltou somente…
– O número 2, Arthur.
– Hein?
– Faltou o número 2.
– Cê me odeia, né? – gargalhava – Mas certamente não tanto quanto eu odeio o número 2.
E atacou o temido Op. 10 no. 2, com aquelas escalas rapidíssimas todinhas com os dedos fracos da mão direita, enquanto resmungava das tendinites que ele lhe trouxera.
– Que mais cês querem?
– …
– Digam logo, que daqui a pouco vão me levar à força pro camarim.
– Piazzolla, então!
E nos deu um Adiós Nonino com a mesma eletricidade que pôs suas madeixas em riste na memorável capa do álbum que dedicou a Astor. Ao terminar, com o produtor já a olhar com ganas de arrancá-lo do palco, um dos gatos-pingados lhe alcançou um número de telefone:
– Volto hoje para o Rio – explicava-se, enquanto guardava o papelucho na casaca – mas não deixo de te ligar.
– A costela está assando desde que saí de casa. Eu e ela te aguardamos.
– E a cerveja?
– Ela também. Mais gelada que em Moscou.
E foi arrastado para as coxias, de onde voltou para tocar um Tchaikovsky furioso com a Sinfônica de Dogville. Nunca soube se ele, enfim, telefonou para o churrasqueiro. Imagino que sim. Afinal, aquele ex-menino prodígio, de nobre arte forjada no Brasil e burilada na França e na União Soviética, capaz de dialogar com bolcheviques e mencheviques, maragatos e chimangos, cronópios e famas, sempre foi também um perfeito exemplo do que em minha terra se chama de “pau de enchente” – aquele tipo que, como os galhos de árvores levados pelas enxurradas, vai parando aqui e ali – e nunca perdeu qualquer oportunidade de falar, de ouvir e de aprender.
– Decadente.
– Quê?
– Sim. Olha aí: tá vendendo disco na Caras!
– Eita…
O brasileiro não é gentil com seus heróis, e desancaram o heroico Sr. Pau de Enchente quando ele lançou sua antologia pianística a preços módicos e acessível em qualquer banca de revistas. Onde outros viam dinheirismo e decadência, eu, seu desde sempre tiete, só via generosidade – a mesma que o fez tocar para aquelas centenas, aqueles milhares, aquelas dezenas de milhares de gentes, a brilhar na TV e matar de inveja tantos colegas de ofício, a implodir o Muro da Vergonha entre os assim chamados “erudito” e “popular’, e que o levaria, em seu caminhão-teatro feito Caravana Rolidei, a tocar para compatriotas que nunca tinham visto um piano na vida.
Eu nunca consegui lhe agradecer, que se dirá o bastante – se é que haveria gratidão suficiente para tanta dedicação aos ouvidos de seu país! Até tive oportunidades: afinal, tanto eu quanto Sr. De Enchente escolhemos a mesma ilha para passar nossos últimos anos. Por algum tempo, inclusive, compartimos a mesma praia em que, vez que outra, nossos percursos se cruzavam. Numa delas, ele jogava bola com uma criança que, com um pontapé somado ao vigor do Vento Sul, mandou a redondinha na minha direção. Eu, que tenho dois pés esquerdos, devolvi-a com uma vergonhosa rosca para os devidos donos. Já me conformava com a ideia de ir buscá-la ainda mais longe, quando, antes mesmo dela quicar no chão, aquele torcedor doente do Fluminense Football Club aparou a pelota com um golpe seco que orgulharia o Príncipe Etíope e, com um toque de letra digno de Super Ézio, devolveu-a à remetente.
– Valeu, meu bom!
Craque com as mãos e com os pés, o Pelé e o Garrincha do Piano Brasileiro, gênio da raça: também tocas cada dia melhor! Venero-te tanto que jamais te conseguirei ser crítico. Se os leitores-ouvintes o quiserem, que assim sejam – mas minha homenagem aqui, ela terá só carinho e saudade ❤️.
Em memória de Fluminense Moreira Lima (16 de julho de 1940, Rio de Janeiro – Florianópolis, 30 de outubro de 2024) em seu 85º aniversário.
ARTHUR MOREIRA LIMA – MEU PIANO/TRÊS SÉCULOS DE MÚSICA PARA PIANO
Coleção publicada pela Editora Caras entre 1998-99, em 41 volumes
Idealizada por Arthur Moreira Lima
Direção artística de Arthur Moreira Lima e Rosana Martins Moreira Lima
Volume 1: CLÁSSICOS FAVORITOS I
Johann Sebastian BACH (1685-1750)
Transcrição de Myra Hess (1890-1965)
Da Cantata “Herz und Mund und Tat und Leben“, BWV 147:
1 – Coral: Jesus bleibet meine Freude
Wolfgang Amadeus MOZART (1756-1791)
Da Sonata para piano no. 11 em Lá maior, K. 331:
2 – Alla Turca: Allegretto
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Bagatela em Lá menor, WoO 59, “Für Elise”
3 – Poco moto
Carl Maria Friedrich Ernst Freiherr von WEBER (1786-1826)
Da Sonata para piano no. 1 em Dó maior, Op. 24:
4 – Rondo: Presto (“Perpetuum mobile“)
Robert Alexander SCHUMANN (1810-1856)
Das Fantasiestücke, Op. 12:
5 – No. 3: “Warum?”
Ferenc LISZT (1810-1886)
Dos Grandes Estudos de Paganini, S. 141:
6 – No. 3: La Campanella
Jules Émile Frédéric MASSENET (1842-1912)
De Thaïs, ópera em três atos:
7 – Méditation (transcrição do compositor)
Jakob Ludwig Felix MENDELSSOHN Bartholdy (1809-1847)
Da Música Incidental para Ein Sommernachtstraum (“Sonho de uma Noite de Verão”), de William Shakespeare, Op. 61:
8 – No. 9: Marcha nupcial (transcrição do compositor)
Pyotr Ilyich TCHAIKOVSKY (1840-1893)
Das Dezoito Peças para piano, Op. 72:
9 – No. 2: Berceuse
Sergei Vasilievich RACHMANINOFF (1873-1943)
Dos Morceaux de Fantaisie, Op. 3:
10 – No. 2: Prelúdio em Dó sustenido menor
Anton Grigorevich RUBINSTEIN (1829-1894)
Das Duas Melodias, Op. 3:
11 – No. 1: Melodia em Fá maior
Alexander Nikolayevich SCRIABIN (1872-1915)
Dos Doze Estudos, Op. 8:
12 – No. 12 em Ré sustenido menor, “Patético”
Achille Claude DEBUSSY (1862-1918)
Da Suite Bergamasque, L. 75:
13 – No. 3: Clair de Lune
Manuel DE FALLA y Matheu (1876-1946)
De El Amor Brujo, balé em um ato:
14 – Dança Ritual do Fogo (transcrição do compositor)
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Volume 3: CLÁSSICOS FAVORITOS II
Johann Sebastian BACH (1685-1750)
Transcrição de Ferruccio Busoni (1866-1924)
Da Toccata e Fuga em Ré menor para órgão, BWV 565:
1 – Toccata
Giuseppe Domenico SCARLATTI (1685-1757)
2 – Sonata em Mi Maior, L. 23 (K. 380)
Carl Philipp Emanuel BACH (1714-1788)
3 – Solfeggietto em Dó menor, H 220, Wq. 117:2
Georg Friedrich HÄNDEL
Da Suíte para Teclado no. 5 em Mi maior, HWV 430:
4 – No. 4: Ária com Variações, “The Harmonious Blacksmith”
Ludwig van BEETHOVEN
5 – Seis Escocesas, WoO 83
Fryderyk Franciszek CHOPIN (1810-1849)
6 – Fantasia-Improviso em Dó sustenido menor, Op. 66
Gioachino Antonio ROSSINI (1792-1868)
Das Soirées Musicales:
7 – No. 8: La Danza (Tarantella Napolitana)
Felix MENDELSSOHN
Das Canções sem Palavras:
8 – Allegro non troppo (Op. 53 no. 2) – Allegretto grazioso (Op. 62 no. 6, Frühlingslied) – Presto (Op. 67 no. 4, La Fileuse)
Ferenc LISZT
Dos Liebesträume, Noturnos para piano, S. 541:
9 – No. 3 em Lá bemol maior
Edvard Hagerup GRIEG (1843-1907)
Do Peças Líricas, Livro III, Op. 43:
10 – No. 1: Papillon
Antonín Leopold DVOŘÁK (1841-1904)
Das Oito Humoresques, Op. 101:
11 – No. 7 em Sol bemol maior
Pyotr TCHAIKOVSKY
Das Estações, Op. 37a:
12 – No. 11: Novembro (Troika)
Sergey Sergeyevich PROKOFIEV (1891-1953)
Das Dez Peças para piano, Op. 12:
13 – No. 2: Gavota em Sol menor
Claude DEBUSSY
14 – La Plus que Lente, L. 121
Isaac Manuel Francisco ALBÉNIZ y Pascual (1860-1909)
Da Suíte Espanhola no. 1, Op. 47:
15 – No. 3: Sevilla
Volume 12: CLÁSSICOS FAVORITOS III
Johann Sebastian BACH
Concerto em Ré menor, BWV 974 (transcrição do Concerto para oboé de Alessandro Marcello):
1 – Allegro
2 – Adagio
3 – Allegro
Ludwig van BEETHOVEN
Transcrição de Ferenc Liszt (S. 464)
Da Sinfonia no. 5 em Dó menor, Op. 67:
4 – Allegro con brio
Franz Peter SCHUBERT (1797-1828)
Dos Improvisos para piano, Op. 90 (D. 899):
5 – No. 2 em Mi bemol maior
Robert SCHUMANN
6 – Arabeske em Dó maior, Op. 18
Ferenc LISZT
Das Soirées de Vienne d’après Schubert, S. 427:
7 – No. 6: Valse-caprice
Claude DEBUSSY
Das Deux Arabesques, L. 66:
8 – No. 1 em Mi maior
Christian August SINDING (1856-1941)
Das Seis Peças, Op. 32:
9 – No. 3: Frühlingsrauschen
Manuel de FALLA
De La Vida Breve, ópera em dois atos:
10 – Dança Espanhola no. 1 (arranjo do compositor)
Pyotr TCHAIKOVSKY
Das Estações, Op. 37:
11 – No. 6: Junho (Barcarola)
Sergei RACHMANINOFF
Dos Études-Tableaux, Op. 39:
12 – No. 9 em Ré maior
Arthur Moreira Lima, piano
Gravações realizadas na Saint Philip’s Church em Londres, Reino Unido, em 1998
Piano Steinway and Sons
Engenheiro de som: Peter Nichols
Direção Musical, produção, edição e masterização por Rosana Martins Moreira Lima
Fãs de Arthur encontram-se doravante INTIMADOS a ouvir o podcast “Conversa de Pianista”, do Instituto Piano Brasileiro, em que nosso ídolo conversa com o incrível Alexandre Dias, e que foi ao ar em 2020:
“1ª parte da entrevista do pianista Arthur Moreira Lima a Alexandre Dias, em que ele falou sobre como o piano começou em sua vida, suas primeiras aulas em família, seus primeiros recitais quando criança prodígio, e suas aulas com a grande professora Lúcia Branco, que o levou a participar do I Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro do 1957. Também comentou sobre grandes pianistas a que assistiu nas décadas de 1940 e 1950. Foram mencionados alguns dos assuntos que serão conversados nos próximos episódios, com especial atenção para sua rica discografia, e também sua premiação em importantes concursos internacionais de piano, como o Concurso Chopin (1965), Concurso de Leeds (1969) e o Concurso Tchaikovsky (1970). Nossa homenagem e agradecimento ao grande pianista Arthur Moreira Lima, que em 2020 completa 80 anos”.
Quem apreciar a entrevista encontra-se também intimado a apoiar o Instituto Piano Brasileiro, desde o Brasil ou do Exterior.

Vassily



Que crônica maravilhosa! Que presentão: muito agradecido.
Um artista genial, aberto, que merecia mais reconhecimento nesse país que prestigia tantos lixos musicais… Lembro, ainda garoto, de um concerto no Teatro Municipal de São Paulo, que ele tocou Quadros de uma Exposição e as Baladas de Chopin, inesquecível (tenho vários CDs dele, incluindo Nazareth, Beethoven e Chopin – desta série, tenho o CD que ele interpretou essas mesmas Baladas que vi ao vivo, mas na minha memória a interpretação daquela noite foi ainda mais arrebatadora)…