Alessandro Scarlatti (1660-1725): Obra completa para teclado – CDs 4 e 6 de 7

Vimos na postagem anterior que as toccatas de Alessandro Scarlatti podem ser descritas como obras onde as regras do contraponto coexistem com improvisos muito livres, ainda que o uso da palavra improviso seja anacrônico: melhor dizer que são obras dominadas pela fantasia, palavra muito comum nos séculos de Frescobaldi, A.Scarlatti e Bach.

O chamado stylus phantasticus é uma definição que aparece na obra de Athanasius Kircher (1601-1680), um padre jesuíta alemão nascido na Turíngia, que estudou em Colônia (Köln) e passou a maior parte de sua vida em Roma estudando e ensinando sobre música, matemática, física e sobre o antigo Egito. Em sua obra Musurgia Universalis (1650), um grande compilado dos conhecimentos sobre música de sua época, ele ensina que havia vários estilos musicais, relacionados aos diferentes objetivos da música e meios sociais onde ela era executada, incluindo: stylus ecclesiasticus (música sacra), stylus madrigalescus (ligado a afetos amorosos e dolorosos, e ele cita exemplos ilustres: Lassus, Monteverdi, Gesualdo), stylus hyposchematicus (danças, balés e festas), stylus dramaticus (que daria origem à ópera)… e finalmente o stylus phantasticus que, segundo o jesuíta, é “apropriado para instrumentos. É o mais livre método de composição, não se submete a nada, nem a palavras e nem ao desenvolvimento de temas”.

Já nos nossos tempos, o organista, cravista e regente Ton Koopman resume assim: “O Stylus phantasticus busca entreter o público com efeitos especiais, surpresas, vozes irregulares, dissonâncias, variações rítmicas e imitações. É um estilo livre, improvisatório, que força a audiência a ouvir com atenção se perguntando ‘como isso é possível?’ ” (Koopman, 1991)

A palavra fantasia, então, descrevia o tipo de música livremente concebido por um músico solista. Nas obras do holandês Sweelinck e do alemão Telemann, encontramos fantasias para instrumentos de teclado e também para instrumentos de cordas ou flauta, mas sempre cada um desses instrumentos sozinho, sem acompanhamento, fugindo da prática do baixo continuo (Telemann por exemplo publicou as para violino com o aviso: “senza basso” – sem baixo). Na música de J.S.Bach são comuns as obras do tipo “Fantasia e Fuga”, ou ainda “Toccata e Fuga”, que resumem de forma bastante esquemática e racional (como é comum na obra do mestre de Leipzig) o contraste entre o stylus phantasticus e as regras do contraponto, normalmente com uma ordem programática que começa no caos e termina com a ordem. Na obra de seus filhos C.P.E. Bach e W.F. Bach são abundantes as Fantasias para teclado (sem fugas), que em meados do século 18 eram tocadas às vezes no clavicórdio, às vezes no pianoforte, às vezes no cravo.

Se estamos gastando tanto tempo com essas preliminares, é porque o estilo das Toccatas de A. Scarlatti tem muito a ver com o que a pena dos alemães definia como Phantasie, Fantasye, Fantasie, Phantasia… Ainda que ele próprio não utilize nenhuma dessas variantes do termo em seus manuscritos para teclado que chegaram até nós. Mas, considerando todas essas características do stylus phantasticus que vimos até aqui, podemos entender que a música para teclado de Scarlatti corresponde perfeitamente às definições acima do padre jesuíta do século 17 e do holandês Koopman. Há alguns poucos momentos de sonoridade mais ligada à dança ou à música vocal (o cantabile vai aflorar muito mais na música para teclado de seu filho Domenico Scarlatti), e há também, com mais frequência, fugas em que o mestre napolitano mostra seus conhecimentos da arte do contraponto desenvolvida por Palestrina, Sweelinck e outros. Mas o que predomina é sempre a fantasia, com peripécias rítmicas e harmonias inventivas e inesperadas. Considerado pelo compositor Johann Adolph Hasse (1699-1783) o maior mestre em harmonia na Itália e no mundo, o “velho Scarlatti” (expressão usada para diferenciá-lo de seu filho) realizou em suas toccatas diversos tipos de combinação estrutural entre o estilo livre e o contraponto. Enquanto nas toccatas para órgão de Buxtehude e de Bach (como respectivamente a BuxWV 155 e a BWV 565) há um caminho previsível do caos e da espontaneidade em direção à ordem, com contrastes violentos e floreios improvisatórios na primeira metade e o pulso firme a as regras estritas do contraponto na segunda metade, nas obras para cravo e órgão de Alessandro Scarlatti, também há uma tendência das fugas a ficarem mais para o final, mas em muitos casos a ordem dos movimentos é imprevisível: após a fuga pode vir um minueto (faixa 7 do CD6), ou pode vir uma série de variações (partite) sobre a folia de Espanha (última faixa do CD1).

Várias toccatas de A.Scarlatti têm um movimento “arpeggio”, normalmente no início da obra mas às vezes no meio. Esse tipo de sonoridade das notas arpegiadas soa muito idiomático, é claro, nas harpas mas também nas cordas pinçadas do cravo: lembremos do nome inglês harpsichord. O arpejo no início deixa clara a tonalidade de cada toccata e seu temperamento: um arpejo em lá menor (faixa 3 do CD4) não soa como o outro em dó maior (faixa 8 do CD4) ou ainda o outro em ré menor (faixa 8 do CD6). Outra característica do arpejo: quase o tempo todo nesses movimentos, ouvimos a livre fantasia de uma única voz, apenas raramente acompanhada pela outra mão do instrumentista. Na fuga é o contrário: sempre duas vozes seguindo as regras do contrapondo. E em muitos allegros há, com mais liberdade que na fuga, jogos de imitação entre as vozes. Se formos associar esses tipos de movimentos das toccatas de Scarlatti com as origens das formas instrumentais italianas, temos o seguinte:

Arpeggio – movimento de uma só voz, idiomático e típico de instrumentos de cordas como a harpa ou o alaúde, instrumentos esses de antiquíssima tradição mediterrânea, aparecendo em hieróglifos egípcios, na lira do mundo grego (instrumento de Orfeu, figura legendária que teria origem na Trácia, região que vai da atual Bulgária até Istambul) e também em instrumentos do mundo islâmico, que deram origem ao alaúde quando chegaram à Europa cristã por intermédio da Andaluzia, do sul da França e da Sicília, ilha onde nasceu Alessandro Scarlatti;

Fuga – movimento com duas ou mais vozes se imitando, uma seguindo, procurando a outra que foge na frente (daí o nome fuga, conferir também o nome italiano ricercare, análogo ao francês rechercher, em português procurar), forma musical com origem na música vocal cristã, seguindo as regras do contraponto. Este último, do latim punctos contra puntum (nota contra nota), surge na época em que o cantochão ou canto gregoriano começou a ser substituído nas igrejas pelo canto com mais do que uma linha melódica (voz);

Allegro e, mais raramente, Andante, Adagio, Presto, etc. – movimentos em que com frequência há imitações entre vozes, mas com muito mais liberdade e fantasia do que na fuga. Tratam-se, nesse nosso esquema explicativo, de movimentos que misturam aspectos do Arpeggio de origem instrumental mediterrânea (grega, egípcia, árabe, persa, etc) e da Fuga de origem vocal nas igrejas e monastérios cristãos.

A música europeia como conhecemos, ou seja, música escrita, foi apenas vocal por muito tempo, com as formas de música instrumental sendo escritas – e, depois, publicadas – muito tempo depois. Um grande revolucionário nesse sentido foi o cravista e organista da Basílica de S. Pedro do Vaticano, Girolamo Alessandro Frescobaldi (1583 – 1643), cujas obras instrumentais foram impressas em grandes tiragens que alcançaram a Inglaterra de Purcell e a Alemanha de Bach. Frescobaldi e o alemão Johann Jacob Froberger (1616 – 1667) foram os mais famosos compositores de música instrumental da primeira metade do século 17, e não só isso, mas os primeiros a alcançarem fama internacional com música instrumental em toda a história da música europeia. Na Europa do Norte, Sweelinck (1562 – 1621) é considerado um inovador ao compor fugas, fantasias e outras obras para teclado, mas nada disso ele imprimiu em vida, era tudo manuscrito.

A catedral de Palermo, provável cidade natal de Alessandro. Na foto abaixo, uma inscrição em árabe em pilastra da catedral

Mas não se deve, com isso, supor que toda música instrumental anterior ao século 17 fosse popular no sentido de estritamente não erudita, simplória, tocada por músicos amadores e sem estudo, bêbados em tavernas. As tradições de música instrumental de outros povos, como os indianos e os muçulmanos da Arábia e Norte da África, remontam a tempos muito mais antigos e essas tradições exteriores ao mundo musical cristão – que entravam na Europa, como vimos, por vários poros: Espanha, Marselha, Sicília – provavelmente tiveram algum peso na formação de Alessandro Scarlatti, um habitante de cidades portuárias mediterrâneas: Palermo, onde passou a infância, e Nápoles onde passou a maior parte da vida exceto alguns longos períodos em Roma.

O stylus phantasticus de A.Scarlatti se expressa principalmente em toccatas onde o imprevisível é a regra, mas também em algumas obras de variações: é o caso, no CD6, das 22 variações sobre a Folia, e das 10 “Partite sopra Basso obligato”. A primeira obra é uma das três que chegaram até nós nas quais Alessandro alça voos sobre o simples tema da Follia di Spagna, que provavelmente se originou em Portugal. E a segunda, com 10 partite (partes) sobre um outro tema, bem mais típico de Scarlatti com suas várias modulações. E outra obra do CD6 que parece única no corpus do compositor é o conjunto de 17 Introduttioni p[er] sonare, e mettersi in tono Delle Composizioni.

Instrumento da família do alaúde, de tradição muçulmana, na Capela Palatina, em Palermo

São pequenos prelúdios improvisativos, com a função explícita de ajudar o músico (e seus ouvintes) a meter-se no tom das composições. Me chama a atenção o número desleixado, enquanto Bach e Chopin compuseram prelúdios em grupos de 24, um em cada tom, e até fora dessa armadura das tonalidades, Debussy compôs dois livros de 12 prelúdios. Também Scriabin compôs 24 prelúdios e Shostakovich tem dois conjuntos de 24, o segundo também com 24 fugas. Alessandro Scarlatti, por outro lado, parece não se preocupar se seriam 12, 24 ou 17, como seu filho aliás, que gerou sonatas com a mesma irregularidade orgânica de uma árvore dando frutos.

Na mais longa toccata destes dois CDs de hoje, a toccata em sol maior (CD4, faixa 7), como explica Francesco Tasini no encarte do álbum, estão presentes todas as cartas na manga de A.Scarlatti: “passagens com efeitos brilhantes intercaladas com amplos arpejos de harmonia extravagante e bizarra”. Essa harmonia extravagante dos arpejos combina com a liberdade rítmica das fantasias de que temos falado, correspondente à liberdade dos préludes non mésurés (prelúdios sem compasso) da música francesa do século 17.

Podemos supor que as harmonias das óperas de A. Scarlatti são mais previsíveis, mais atentas ao gosto popular, enquanto na música para teclado, de um âmbito mais do lar, as harmonias são mais extravagantes, mais sonhadoras e às vezes dissonantes.

Alessandro Scarlatti (1660-1725): Obra completa para teclado, CD 4

  1. Moderato in Do minore
  2. Toccata per Cembalo del Sig.r Cav.r A.Scarlatti in Do magg. (Tempo di Minuetto, Fuga)
  3. [Toccata IV] in La Minore (Arpeggio, [Allegro], Fuga)
  4. Vivace in La minore
  5. [Toccata] Scarlatti P[rim]o Tono ([Adagio], [Allegro], [Fuga])
  6. Allegro in Sol minore
  7. [Toccata III] in Sol magg. ([Allegro], Arpeggio, [Allegro], Arpeggio, [Presto], [Allegro], [Presto]
  8. Toccata in Do magg. (Arpeggio, [Allegro], Fuga)
  9. [Toccata] in La minore (Largo, Allegro, [Presto], Corrente)
  10. [Toccata] Alessandro Scarlatti in Re minore (Allegro, [Andante], Presto, Arpeggio, [Fuga])
  11. Toccata Per Cembalo Del Sig.r Scarlatti in Fa magg. (Adagio, Andante, Adagio, Allegro)
  12. [Toccata] in Sol magg. ([Allegro], Spiritoso, Presto)

Francesco Tasini – cravo (clavicembalo italiano de anonimo, Ferrara, XVIII secolo)

CD 4 – BAIXE AQUI — DOWNLOAD HERE

Alessandro Scarlatti (1660-1725): Obra completa para teclado, CD 6

  1. Toccata Per Cembalo del Sig.r Cav.e Scarlatti in La minore (Grave, Allegro, Presto)
  2. [Toccata II] in La minore (Arpeggio, [Allegro])
  3. [Arpeggio] in Sol minore e [Toccata] Scarlatti in Sol minore (Largo, All[egr]o)
  4. Varie Introduttioni [17] p[er] sonare, e mettersi in tono Delle Composizioni
  5. [Toccata V] in Sol maggiore ([Allegro], Fuga, Minuetto)
  6. [10] Partite sopra Basso obligato in Re minore
  7. Toccata Sesta in Sol maggiore ([Allegro], Arpeggio, [Fuga])
  8. Toccata da Cimbalo in Re minore ([Arpeggio], all[egr]o, presto, Spiritoso, all[egr]o)
  9. Toccata Quarta in La maggiore ([Allegro], Minuet)
  10. [Toccata] Scarlatti e Follia in Re minore (Arpeggio, Allegro, Arpeggio, [22] Partite sulla Follia di Spagna])

Francesco Tasini – cravo (clavicembalo italiano de anonimo, Ferrara, XVIII secolo)

CD 6 – BAIXE AQUI — DOWNLOAD HERE

O cravo usado nessas gravações, fabricado em Ferrara no século 18, tem um som leve e claro, menos “aveludado” do que os cravos da França e de Flandres

Pleyel

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