Ludwig van Beethoven (1770-1827) – Sinfonia no. 9 em Ré menor, Op. 125, “Coral”, retocada por Gustav Mahler – Järvi #BTHVN250

O regente da apresentação de hoje sente a necessidade de fazer alguns comentários sobre a interpretação da Nona Sinfonia que, depois da mais recente experiência, não parecem ser supérfluos. Para começar, gostaria de apontar que Beethoven, através de sua perda auditiva que se tornaria surdez completa, tinha perdido o necessário contato próximo com a realidade. Isso aconteceu exatamente no período de sua vida criativa em que, através duma elevação sem precedentes de suas concepções, ele avançou na busca de meios de expressão e no sentido de um tratamento até então desconhecido e drástico da orquestra. Isso é tão bem sabido quanto o fato de que os metais daquela época não permitiam certas frequências de sons necessários para a formação da melodia. A necessidade trazida por essas carências ao longo do tempo levou a um aperfeiçoamento desses instrumentos e parece-nos quase um crime não lançar mão dessa vantagem.

Richard Wagner tentou apaixonadamente toda sua vida, em palavras e ações, tirar as interpretações das obras de Beethoven do estado de negligência realmente insuportável no qual caíram. Ele explicou suas experiências e esforços para uma interpretação dessa obra na monografia “A Propósito da Interpretação da Nona Sinfonia”, uma monografia que é aparentemente pouco conhecida e estudada. Todos regentes modernos apropriaram-se, essencialmente, de seus ensinamentos e orientação.

O regente da apresentação de hoje, em sua mais plena convicção, também seguiu esse caminho. Ele deve decididamente protestar contra a insinuação de que ele, de alguma maneira, fez mudanças arbitrárias na instrumentação. Ele, ao contrário, empenhou todo esforço para, no todo e nas individualidades, seguir até as minúcias de indicações e prescrições do mestre (Beethoven) e não deixar se perderem quaisquer de suas intenções que estão frequentemente ocultas ao olhar superficial. Ele [o regente], por outro lado, lançou mão de todas vantagens da orquestra moderna e especialmente de todos os meios de que dispomos até um grau muito mais maduro, de modo a não ocultar as intenções de Beethoven em uma massa confusa de som, e sim trazê-las à vida sonora com uma exatidão que segue o mestre até o mínimo detalhe.

Ele sente que é seu dever, considerando o conjunto dos instrumentos de corda que recentemente cresceu de modo tão tremendo, dobrar as madeiras e as trompas, mas de modo algum dar uma nova voz a esses auxiliares.

A propósito, ele pode apontar que, com isso, ele está tão só seguindo o costume de seu antecessor nessa posição. Ele rejeita de modo enfático a acusação de que agiu descuidadamente em sua interpretação e na explicação das notações de Beethoven, e ele se dispõe a provar através da partitura que com cada mais diminuto desvio da prática tradicional, ele agiu com necessidade premente e que, no todo, sua interpretação usou da moderação necessária exigida pela veneração pelo mestre e por suas vontades”.


Mahler foi tão execrado pelos seus “retoques” (“Retuschen”) na sacrossanta Nona do “imexível” Beethoven que, ainda de orelhas quentes pelo escândalo da primeira récita de sua versão editada, fez questão de redigir essa nota para que fosse impressa e entregue ao público antes da segunda. Não adiantou muito: os vienenses seguiram tiriricas e, por mais que tenham tolerado ou viessem a tolerar Retuschen em obras de Smetana e Schumann, não admitiam que se mudasse uma semifusa sequer de seu cidadão adotivo mais ilustre.

Naquele início de século XX, os regentes tomavam amplas liberdades com as partituras, sem que isso causasse muita comoção. Toscanini, por exemplo, adotava amplamente a prática, mas nunca recebeu sequer uma fração do reproche que jorrou em Mahler, que chegara ao cargo musical máximo do Império e ainda levava tomates por sua atuação como diretor da Hofoper. A tomatina não se devia ao nível artístico, certamente muito elevado, mas a celeumas entre o regente e seus músicos, por conta do perfeccionismo e ataques despóticos, e pela impaciência de Mahler com as negociações e a exigência de mesuras e bajulação inerentes ao cargo. Além disso, o antissemitismo não lhe dera trégua, mesmo que o judeu secular tivesse, ao antever o ódio com que o receberiam em Viena, se convertido ao catolicismo alguns meses antes de mudar-se para a capital imperial.

Eu acho que compreendo as intenções de Mahler. Ademais, com a carreira dividida entre a regência e seu grande xodó, a composição, ele achava natural ajustar as partituras para maximizar o efeito daquelas que, em sua nada desprezível posição de mais célebre maestro de seu tempo, pareciam subutilizar os recursos da orquestra. E, de fato, contando com algumas dúzias de instrumentistas de cordas em cada naipe, fazia sentido que ele aumentasse o número de sopristas e propusesse mais pareamentos, como é, por exemplo, muito perceptível no Scherzo da Nona. As indicações metronômicas às vezes implausíveis de Beethoven são abolidas, e os cantores – que não tiveram qualquer mudança em suas partituras – recebem algumas bem-vindas pausas para respirar, que o Mestre de Bonn, notoriamente nada empático em seu tratamento da voz humana, não achou necessário conceder-lhes.

Ouvindo essa gravação, mais de um século depois do escândalo em Viena, nada encontrei para me chocar. Muita coisa soa diferente – o que não quer dizer melhor -, mas o uso da orquestra sinfônica parece, de fato, mais efetivo. Se isso era necessário, bem, aí é outra história. Os Retuschen de Mahler, afinal, não tinham a pretensão de “corrigir” as sagradas partituras, e sim de proporcionar-lhes, como ele próprio afirmou, o pleno uso dos recursos das orquestras e salas de concerto modernas. O resultado é claramente mais volumoso, em detrimento de nuances. Se sacrílego ou louvável, deixo ao leitor-ouvinte decidir – enquanto encerro, com esta postagem, o annus horribilis em que fui arroz de festa aqui no PQP Bach, e que espero ter tornado um pouco menos medonho com o que tentei trazer a vocês.


Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)

Sinfonia no. 9 em Ré menor, Op. 125, “Coral”
Retocada por Gustav Mahler (1860-1911)

1 – Allegro ma non troppo, un poco maestoso
2 – Molto vivace – Presto – Molto vivace – Presto
3 – Adagio molto e cantabile – Andante moderato – Andante moderato – Adagio -Lo stesso tempo
4 – Presto – Allegro assai – Presto (“O Freunde”) – Allegro assai (“Freude, schöner Götterfunken”) – Alla marcia; Allegro assai vivace (“Froh, wie seine Sonnen”) – Andante maestoso (“Seid umschlungen, Millionen!”) – Allegro energico, sempre ben marcato (“Freude, schöner Götterfunken” – “Seid umschlungen, Millionen!”) – Allegro ma non tanto (“Freude, Tochter aus Elysium!”) – Prestissimo (“Seid umschlungen, Millionen!”)

Gabriele Fontana, soprano
Barbara Hölzl, contralto
Arnold Bezuyen, tenor
Reinhard Mayr, baixo
Slovenský Filharmonický Zbor (Coro Filarmônico Eslovaco)
Tonkünstler-Orchester Niederösterreich
Kristjan Järvi,
regência

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Nota de Gustav Mahler aos espectadores, escrita após a estreia de sua versão retocada da Nona de Beethoven, para ser lida antes da apresentação seguinte, e que lhes traduzi mais acima.

BTHVN250, por René Denon

Vassily

7 comments / Add your comment below

  1. Es bastante obvio que Mahler escuchó un Beethoven mediado por la gran orquesta que él tenía a su disposición, un monstruo que Beethoven jamás imaginó y para el que jamás escribió. Todas las orquestaciones que hizo Mahler me parecen totalmente insatisfactorias, absurdas e injustificadas. No parece haber leído la partitura, sino simplemente escucharla a través de la gran orquesta que dominó desde ese fin de siclo vienés que él vivió hasta casi fines del siglo XX, en que casi todos los directores usaron el mismo tipo de orquesta: un panzer indetenible al que la música debía adaptarse. Su versión de la Novena es simplemente espantosa, sin matices, sin las delicadezas que Beethoven concibió. Es un Frankenstein para fetichistas. Eso es más que evidente cuando uno escucha las versiones con orquestas de cámara o con instrumentos de época. Lo mismo pasa con sus orquestaciones de Brahms y Schubert, monstruos insportables.

    1. É… Pode ser. Você apresenta bons motivos para achar os retoques de Mahler monstruosos.
      Mas, para usar uma palavra que você usou, no movimento historicamente informado com instrumentos de época também há uma tendência a um fetichismo (definindo aqui essa palavra como a busca da verdade nas coisas, e não nas pessoas. “Relação entre pessoas mediada por coisas”). Pois, até onde sei, não temos certeza se Beethoven estava contente com os instrumentos de sua época. No que diz respeito ao fortepiano, ao menos, ele trocou de instrumento mais de uma vez, buscando as novidades tecnológicas.
      No mesmo sentido, Bach (e um pouco Beethoven, como na revisão para piano e orquestra do concerto para violino) praticou várias transcrições ao longo da vida: o concerto que era para oboé é refeito para cravo, um fragmento de cantata vira outro concerto para oboé… De forma que quando Wendy Carlos grava Bach no sintetizador, não me parece um monstro insuportável, no máximo um monstro simpático.
      Quanto aos retoques de Mahler, ainda vou ouvir. Pelo menos ele teve a honestidade de assinar embaixo, ao contrário de outros regentes do século XX que retocavam por debaixo dos panos…

      1. Bach e Beethoven escreveram para aquilo que dispunham e não para o que não conheciam. Esse negócio de trocar de piano deve ter sido antes dos 30 anos do mestre, né? Por que depois tanto fazia. Ele não escutava mesmo!

        O Hammerklavier chama-se assim porque muita gente contemporânea de Beeth ainda tocava suas sonatas no cravo e ele indica “olha, gente, esta Sonata aqui é para o pianoforte”. Mas, OK, o piano era um conhecido dele.

        Então, este seria um movimento — quase um desejo — da uma época em relação ao futuro. Acho estranho. Bach pensando no futuro? Pensando em um paraíso instrumental? Beethoven imaginando Steinways? Acho que é forçar a barra.

        Já Mahler pega o passado e o adapta àquilo que dispõe. Ele está DE VERDADE no futuro e puxa a coisa para si. É o movimento contrário. E olha, fica monstruoso mesmo.

        Mahler tem umas transcrições para orquestra de obras de Bach para órgão. Tem uma delas que parece um clímax de 20 minutos, sem folgas. É um orgasmo interminável, é como esconder-se no orgasmatron do filme “O Dorminhoco” (“Sleeper”), de Woody Allen. Insuportável.

        Será que Mahler sonhava com sintetizadores, samplers, guitarras elétricas e orquestras de androides?

  2. Particularmente, gostei. Nada para alarde. Ouvirei mais vezes. Grato, Vassily. Confesso que não sou um grande admirador da música de Mahler, talvez com o tempo torne a sê-lo, mas passo a admirar essa sua faceta corajosa, embora seja de fato questionável a ideia de progresso orquestral; com o conhecimento cada vez mais especializado, imerso na competitividade mercantil, com a falta de perspectiva no horizonte, estimo bem mais a imperfeição de tal intromissão do que a perfeição do afã por autenticidade, muitas vezes gerador de interpretações sem vida e impessoais. Lembro então de uma daquelas traduções rígidas e incompreensíveis das tragédias gregas, um feito da excelência de uma banca acadêmica mas que nada nos diz. De qualquer forma, jamais pretenderia impor minha desimportante opinião, afinal sempre temos um leque para escolha, e celebro esta última postagem.

  3. Las transcripciones que Mahler hizo de la Novena de Beethoven y en particular de las obras de cámara de Brahms y Schubert son innecesarias, por decir lo menos, por muchos motivos. En estos dos últimos casos, porque pareciera que Mahler no entiende en absoluto el lenguaje de la música de cámara. El sentido de diálogo instrumental y de recogimiento e intimidad del cuarteto de cuerdas La muerte y la doncella es simplemente destruido al traspasarlo a la enorme orquesta que Mahler tiene en mente. Lo mismo pasa con el cuarteto para piano de Brahms convertido en concierto para piano. Es cierto que en su música de cámara pareciera que hay un deseo de romper la forma camerística, pero ese “pareciera” no significa que esa haya sido la intención de Brahms. Pierre Boulez ha llamado la atención respecto a esa tendencia teleológica, finalista, con respecto a la propia música de Mahler. En el caso de Beethoven y la Novena, tenemos la partitura, por un lado, y el movimiento “fetichista” (palabras vuestras) historicista. LO cierto es que Beethoven puede haber perdido el oído físico, pero no el oído musical interno, ese que en inglés llaman “perfect pitch”, o sea la capacidad de oír e identificar una nota de manera perfecta sin necesidad de escuchara físicamente. La partitura de todas sus sinfonías es muy clara, y en particular de la Novena. A manera de ejemplo, recuerdo que amigos músicos, que estudiaban en el conservatorio, señalaban la aparente incongruencia Beethoveniana de escribir una enorme cantidad de notas y detalles de sutileza en esa sinfonía, la Novena, no menos que desde su primera sinfonía, y se preguntaban por qué escribía con lujo de detalles todas esas sutilezas instrumentales si cuando las orquestas las tocaban no se podían escuchar. Cuando oyeron el primer ciclo que apareció en el mercado de sus sinfonías con instrumentos originales que les compartí, la de la Hanover Band, se sorprendieron porque en ese ciclo sí se escuchaban todos esos detalles que Beethoven había escrito y quería que oyésemos. En tiempos de Beethoven sí se oían esos detalles, y se oían con toda claridad. Beethoven puede no haber oído físicamente el estreno de su Novena, pero sabía perfectamente cómo debía sonar, y qué debían oír sus escuchas. Es falsa la pretensión Mahleriana de que Beethoven no sabía lo que estaba escribiendo. Sí lo sabía, lo sabía perfectamente por eso que Adorno llamó oído absoluto, el cual poseía en grado sumo Beethoven. De modo que sí sabemos perfectamente qué quería Beethoven que escuchásemos. Lo sabemos porque allí están las partituras que lo señalan, y están las grabaciones con instrumentos de época que lo muestran, y el movimiento históricamente informado que se hace eco de esa propuesta y ha reducido el tamaño de la orquesta Mahleriana, que dominó casi todo el siglo XX, hasta hacer que sean orquestas de cámara u orquestas reducidas las que interpreten sus sinfonías. Por no mencionar incluso la disposición de las cuerdas como Beethoven (y hasta Brahms) lo estableció: primeros violines a la izquierda, segundos a la derecha, y violas, violonchelos y contrabajos al centro a la derecha. De modo que una revisión atenta no sólo de la partitura sino del sonido mismo que esta escritura propone nos revela que Mahler se equivocó y asumió hacia Beethoven los mismos prejuicios que la comunidad vienesa de su época tuvo hacia él por ser judío. No es un asunto subjetivo, ni teleológico (“Beethoven estaba pensando en otro tipo de orquesta”, lo cual es indemostrable y falso), sino perfectamente objetivo y demostrable. Su reorquestación de la Novena es un adefesio. Por eso casi nadie, y en especial nadie de peso y renombre, le ha prestado atención ni la ha grabado.

    1. Totalmente de acuerdo José Manuel Recillas,solo prefiero Harnoncourt y Norrington a la revolucionária y pionera interpretación de la Hanover Band y Roy Goodman.

  4. Concordo com Otávio, quer dizer: Quanto aos tamanhos menores das orquestras de época, tudo bem, mas os timbres desses instrumentos são muito magros, “raquíticos” e os andamentos ficam acelerados demais, ao menos em obras barrocas. O ideal para mim seria o meio termo: orquestra média ou até pequena, mas com instrumentos modernos.

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