Depois da expansividade dos complexos quartetos Opp. 130 a 132, que redefiniram o gênero, e da visionária Grande Fuga, a aparente simplicidade do Op. 135 pode causar estranheza. Tanto em tamanho quanto em transparência das partes, ele é mais afeito aos primeiros quartetos do Op. 18 do que a qualquer um que Beethoven tenha escrito com grisalhos. Além disso, ele tem tão só os tradicionais quatro movimentos, na ordem em que ele os preferia na maturidade, com o Scherzo antes do movimento lento. As aparências, no entanto, são somente superficiais, pois só um consumado e experiente mestre poderia criá-lo – como se, depois de ousadas jornadas de expansão, Ludwig se voltasse agora para a concentração.
Transparência é quase tudo o que se ouve no melífluo primeiro movimento, repleto de delicadas filigranas e que, apesar da riqueza de detalhes das partes, desenvolve-se com leveza, sem a menor sugestão de prolixidade. Ele nos faz baixar a guarda completamente, a fim de que o enérgico e sincopado Scherzo – num gesto beethoveniano bem típico – nos surpreenda com sua energia crua, particularmente no alvoroçado solo de violino no Trio. Segue-se um belíssimo movimento lento, na distante tonalidade de Ré bemol maior, à guisa da Cavatina do Op. 130 ou do Cântico do Op. 132. Não há aqui, entretanto, nada de caloroso ou consolador: o tema e as variações são constritos, como se tentassem manter-se sob controle após a explosão temperamental do Scherzo.
Nenhum desses movimentos, no entanto, deu tanto pano para manga quanto o finale. Não é à toa: além de colocar-lhe o críptico título Der schwer gefasste Entschluss (“A decisão tomada com dificuldade”), Beethoven escreveu sobre a partitura as frases Muss es sein?/Es muss sein! (“Tem que ser?”/”Tem que ser!”), atribuindo-lhes fragmentos melódicos ouvidos no início do movimento – a pergunta enunciada em Grave por viola e violoncelo, e a resposta estridentemente dada em Allegro pelos violinos.
Muito – mas muito mesmo – se conjecturou sobre o que levou Beethoven a fazer isso no encerramento da derradeira obra de seu catálogo. Da aceitação da morte iminente até uma piada interna a um amigo para o qual perdera uma aposta, o cardápio de achismos e anedotas é vasto. Há quem afirme que as inscrições são uma referência a um certo Dembscher, um músico amador que queria tomar emprestada de Ludwig a partitura do Op. 130. Como ele não tinha comparecido à estreia do quarteto, o compositor recusou-se, e só cederia as partes da obra até então inédita se o rapaz pagasse retroativamente o ingresso do concerto do Quarteto Schuppanzigh. Dembscher, então, perguntou-lhe se assim tinha que ser, e Beethoven lhe respondeu com um cânone:
“Tem que ser! Sim, sim, sim, sim: pegue sua carteira!”
Pitoresco? Sem dúvidas, mas também por demais prosaico para aparecer com tanto destaque numa partitura duma obra importante. Muitos biógrafos, assim, preferiram levar a sério o que escreveu o editor Schlesinger, trinta anos depois:
Em relação à frase enigmática Muss es sein? que surge no último quarteto, acho que posso explicar seu significado melhor do que a maioria das pessoas, pois possuo o manuscrito original com as palavras escritas por sua própria mão, e quando ele as enviou, ele também escreveu o seguinte; ‘Você pode traduzir o Muss es sein como uma demonstração de que tive azar, não só porque foi extremamente difícil escrever isso quando eu tinha algo muito maior em minha mente, e porque eu só o escrevi de acordo com minha promessa a você, e porque estou precisando desesperadamente de dinheiro – o que é difícil de conseguir; ocorreu também que estava ansioso para enviar-lhe a obra em partes, para facilitar a gravação, e em toda Mödling (onde ele vivia) não consegui encontrar um único copista, por isso tive de copiá-la eu próprio, e você pode imaginar que função foi isso!”
Imagino que alguma lágrima deva ter escapado a Schlesinger ao receber as partes passadas a limpo nos hieróglifos de Beethoven, mas o que ele alegava (e que não podia provar materialmente, pois o bilhete do compositor se perdera num incêndio) realmente tinha fundamento. Que Ludwig precisava desesperadamente de dinheiro, isso nunca foi qualquer novidade (e foram poucas as postagens em nossa série em que não mencionamos suas aperturas financeiras); e o algo “muito maior” em sua mente bem que poderia ser a tentativa de suicídio de seu sobrinho Karl, que continha mais um pedido de socorro do que uma verdadeira intenção de matar-se, e que certamente carcomeu qualquer improvável reserva monetária que tivesse. No entanto, Beethoven não estava em Mödling, e sim em Gneixendorf, o que indica que, talvez, Schlesinger tenha tomado algumas licenças poéticas para com sua memória.
Qualquer que fosse a difícil decisão, ela também envolveu alguma indecisão sobre como intitulá-la: Beethoven hesitou entre der gezwungene Entschluss (“a decisão forçada”) e der harte Entschluss (“a dura decisão”) antes de chegar ao título definitivo. E parece mesmo que ela não foi firme, pois – após a introdução com a pergunta lenta e a resposta exultante – o movimento segue lépido até que, surpreendentemente, o tema da pergunta retorna, como uma soturna nota de advertência. Por fim, ele parece repelido por um episódio à maneira de dança e uma coda imensamente assertiva.
Um dos primeiros biógrafos de Beethoven encontrou a seguinte nota, com a medonha letra do compositor:
Aqui, meu caro amigo, está o meu último quarteto. Será o último; e de fato me deu muitos problemas, pois não consegui compor o último movimento. Mas como as suas cartas estavam a lembrar disso, no final decidi compô-lo. E é por isso que escrevi o lema: “A difícil resolução – Deve ser? – Deve ser, deve ser!”
Embora alguns estudiosos afirmem que Beethoven pretendesse inaugurar com o Op. 135 uma nova série de quartetos, ele não deixou qualquer anotação legível para algum outro. O enigmático movimento “Tem que ser?” acabou por encerrar a última obra que completaria. Depois dela, ainda escreveria o “Pequeno Finale” do Op. 130 – aquele que substituiu a Grande Fuga, extirpada para publicação separada – e faria outros esboços na tranquilidade de Gneixendorf, a uns 60 km de Viena, onde seu irmão Johann tinha uma propriedade rural. A bucólica estadia, no entanto, chegou a fim num tradicional acesso de cólera beethoveniana – e, no caso, envolvendo não apenas um, mais dois Beethovens – que o levou a deixar Gneixendorf intempestivamente. Conta-se que, por questão de orgulho, Ludwig se recusou a tomar emprestada a carruagem de Johann, e voltou numa carroça de leite aberta, em passos de formiga, no gelado inverno austríaco. Como a carroça não o levaria até Viena – talvez porque o carroceiro tenha se cansado dele -, passou uma noite numa espelunca sem aquecimento. Quando enfim chegou em casa, seus cinquenta e seis explodidos anos e a exposição insensata ao frio apresentaram-lhe a conta: uma dor aguda nos flancos e muita tosse.
A morte, com que sua carcaça flertara por toda a vida, fora finalmente convidada a entrar.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Quarteto em Mi bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 127
Composto entre 1824-25
Publicado em 1826
Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Maestoso – Allegro
2 – Adagio, ma non troppo e molto cantabile – Andante con moto – Adagio molto espressivo – Tempo I
3 – Scherzando vivace
4 – Allegro
Quarteto em Fá maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 135
Composto em 1826
Publicado em 1827
Dedicado a Johann Wolfmayer
5 – Allegretto
6 – Vivace
7 – Lento assai, cantante e tranquillo
8 – Der schwer gefaßte Entschluß. Grave, ma non troppo tratto (“Muss es sein?“) – Allegro (“Es muss sein!“) – Grave, ma non troppo tratto – Allegro
Quarteto em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 130
Composto entre 1824-25
Publicado em 1827
Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1- Adagio, ma non troppo – Allegro
2 – Presto
3 – Andante con moto, ma non troppo. Poco scherzoso
4 – Alla danza tedesca. Allegro assai
5 – Cavatina. Adagio molto espressivo
6 – Finale: Allegro
Grande Fuga em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 133
Composto entre 1825-26
Publicado em 1827
Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria
7 – Overtura – Fuga – Meno mosso e moderato – Fuga – Coda
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Quarteto em Dó sustenido menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 131
Composto entre 1825-26
Publicado em 1827
Dedicado ao barão Joseph von Stutterheim
1 – Adagio ma non troppo e molto espressivo
2 – Allegro molto vivace
3 – Allegro moderato – Adagio
4 – Andante ma non troppo e molto cantabile – Andante moderato e lusinghiero – Adagio – Allegretto – Adagio, ma non troppo e semplice – Allegretto
5 – Presto
6 – Adagio quasi un poco andante
7 – Allegro
Quarteto em Lá menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 132
Composto em 1825
Publicado em 1826
Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
8 – Assai sostenuto – Allegro
9 – Allegro ma non tanto
10 – Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, in der Lydischen Tonart: Molto adagio – Andante
11 – Alla marcia, assai vivace – attacca:
12 – Allegro appassionato
Guarneri Quartet:
Arnold Steinhardt e John Dalley, violinos
Michael Tree, viola
David Soyer, violoncelo
Vassily
Muito obrigado por esta série maravilhosa. Essa parte final com os quartetos é a cereja do bolo de aniversário!!
Certamente não baixei tudo que queria e ainda vou demorar um bom tempo para ouvir tudo que baixei, mas aproveitei quase a totalidade dos textos. Sou antes de tudo um leitor do PQP, com certeza não o único.
Parabéns pelo trabalho.