Ao contrário da Missa Solemnis, uma obra-prima que pouca gente sabe amar, a Nona Sinfonia foi ensandecidamente querida desde sua estreia, em 7 de maio de 1824 – no mesmo concerto em que, curiosamente, algumas fatias da Missa foram pela primeira vez ouvidas em Viena.
Embora Beethoven tenha se dedicado à sua composição entre 1822 e 1824, os primeiros gérmens duma sinfonia em Ré menor datam de 1812. Sua obsessão com a “Ode à Alegria” de Friedrich von Schiller, no entanto, era ainda mais antiga: colocá-la em música já estava em seus planos desde 1793, meros oito anos depois da composição do poema. Não é difícil entender por que o texto calou tão fundo no jovem idealista e universalista, que idolatrava tanto a “Ode” e seu poeta que acabou por afogar-se em reticências e inseguranças cada vez que tirava da gaveta os planos de musicá-la.
Tais reticências começaram elas próprias a afogar-se quando, em 1817, a Sociedade Filarmônica de Londres encomendou-lhe uma nova sinfonia. Em verdade, fora Ferdinand Ries, seu aluno e conterrâneo, que o convidara para visitar a cidade com promessas de lucrativas turnês e exibições ao feitio das que enriqueceram o professor de Ludwig, o velho Haydn. Sabendo o quão baixo era o apreço de Beethoven pelas ilhas britânicas e seus músicos, não fica difícil imaginar que a ideia de visitá-las, mesmo para ganhar uma boa grana, o repelia. O contexto geral também não o ajudava: desilusões amorosas, desesperos gerais com a vida, a surdez completa que o afastara das salas de concertos e sepultara sua reputação de melhor pianista de seu tempo – e, acima de tudo, a amarga briga pessoal e judicial com a ex-cunhada Johanna pela custódia de seu sobrinho Karl, filho de seu falecido irmão homônimo. Tudo isso lhe quebrara os nervos e os bolsos, e as preocupações com o sobrinho só cresciam, de maneira que não deixou de ser um alívio abrir mão da turnê para aceitar a encomenda da nova sinfonia.
Ludwig, no entanto, resolvera encerrar seu hiato composicional com a imensa sonata “Hammerklavier”, praticamente uma sinfonia para piano solo, e logo em seguida enrolou-se com outras duas promessas: as três sonatas para piano encomendadas pelo editor Schlesinger (que viriam a ser suas últimas) e, enrolação máxima, a enorme missa para a entrada solene do arquiduque Rudolph como arcebispo de Olomouc. Isso tudo significou que apenas em 1822 – cinco anos após a encomenda da Sociedade Filarmônica – os trabalhos na sinfonia de fato começaram, com dedicação febril e integral a ela entre abril de 1823 e fevereiro de 1824, quando enfim a deu por completa.
Apesar de instigada por londrinos, Beethoven pretendia apresentar sua nova obra em Berlim, por pensar que naquela corte teria melhor acolhida do que em Viena, onde achava-se um tanto demodé, tamanho era o frenesi causado pelas óperas de Rossini, um compositor pelo qual não tinha qualquer apreço. A notícia da nova obra e dos planos berlinenses se espalhou. Em breve, amigos e patronos organizavam-se para demovê-lo da ideia, no que, surpreendemente, tiveram sucesso. A legendária teimosia de Beethoven fora vencida pelo apreço que ele percebeu em seu público, ansioso por ouvir uma sinfonia nova do maior compositor da Europa, depois de mais de doze anos. O hype foi tamanho que, na estreia da obra, o Kärntnertortheater estava abarrotado a ponto de precisarem colocar cadeiras no palco, além de várias pessoas que ficaram de pé. Beethoven fez questão de reger a première e oficialmente conseguiu, embora o combinado com os músicos fosse que eles seguissem as indicações de Michael Umlauf – que acompanhara, anos antes, o patético desastre de um ensaio geral de Fidelio sob o compositor surdo, e decidira conduzir a obra longe de seu campo de visão. Aplausos irromperam ainda durante o scherzo, durante as intervenções dos tímpanos, que caíram no gosto do público. Ao final do terceiro movimento, ainda mais aplausos – e no fim, enquanto Beethoven ainda julgava estar a reger sua obra, a contralto solista tomou sua mão e mostrou-lhe a plateia que vinha abaixo em aclamação. O maior sucesso de sua vida, que o deixou irreconhecivelmente alegre, acabaria sendo sua última aparição pública ante uma plateia anônima.
Tanto se ama a Nona Sinfonia, e principalmente seu finale coral sem precedentes na história do gênero, que é difícil de imaginar que foi justamente ele o maior alvo de críticas. Muitos críticos e alguns colegas compositores não compartilharam o entusiasmo do público da estreia, e disseram (como Verdi, por exemplo) que Beethoven estragara a forte impressão dos três primeiros movimentos com um dantesco espetáculo de “partes mal escritas para vozes”. Outros, simplesmente, tascavam que, além de surdo, Beethoven ficara gagá e louco.
Não quererei ser eu a concordar com eles, inda mais quando se fala dum patrimônio universalmente amado da Humanidade, mas eu acho que compreendo os reproches. Os três primeiros movimentos, ainda que cheios de radicalidade, comportam-se como uma sinfonia tradicional – com o scherzo adiantado em relação ao movimento lento, como era costumeiro para o Beethoven maduro. Já o movimento coral parece inorgânico, alheio a tudo o que antecedera, rejeitando-o explicitamente, como mostram as breves recapitulações dos três primeiros movimentos – novamente algo sem precedentes – que parecem enxotadas pelos recitativos das cordas, ou a explícita afirmação do barítono, logo em sua entrada, com palavras escritas pelo próprio compositor, a conclamar os amigos a desprezarem “esses sons” entoarem algo mais agradável e alegre. Sem dúvidas, essa apoteose da alegria é uma conclusão convincente para uma obra que parece, no primeiro movimento, surgir dum vazio opressor. Por outro lado, o finale parece ter vida própria – e tanta que muitos que o conhecem de cor não têm ideia dos movimentos que o precederam. Ele funcionaria bem, inclusive, como uma sinfonia independente, pois ele dura mais que muitas das co da época, e não é impossível imaginá-lo com quatro movimentos: uma abertura (da introdução instrumental até “steht vor Gott”); um scherzo (da “música turca” de “Froh, wie seine Sonnen fliegen” até o final da estrofe com o coro, em “Wo dein sanfter Flügel weilt“); um movimento lento (de “Seid umschlungen, Millionen” até o início da fuga dupla); e a própria fuga dupla sobre “Seid umschlungen” e “Freude, schöner Götterfunken”, e tudo que se segue a ela, arrematando a “sinfonia dentro da sinfonia”.
O público de hoje parece não se importar essas picuinhas. Pelo contrário, parece haver uma tendência a supervalorizar o popularíssimo finale, com seu tema da “Alegria” que até meus gatos conhecem, em detrimento dos movimentos precedentes, principalmente o Adagio, um singelo tema com maravilhosas variações, que é o cerne da obra. Lembro duma senhora que, na saída duma récita da Nona, comentava com a filha que “o começo estava chato, mas depois que entraram os cantores ficou bonito”. Com a “Ode à Alegria” em toda parte, usada e abusada como um lugar-comum de tudo que é apoteótico, eu acho que a consigo compreender essa senhora, a buscar esperar o conforto do que lhe era familiar após longos minutos de grande, mas desconhecida música.
É preciso ouvir a Nona com tímpanos frescos, como se fosse a primeira vez – e preferencialmente, claro, desde o começo. Para facilitar-lhes esta experiência, resolvi alcançar-lhes não só as doze gravações que encerram as integrais paralelas que iniciamos há alguns meses, mas também algumas outras, das quais não dispunha quando publiquei a Primeira Sinfonia, lá em abril. Algumas foram pedidas – caso das versões de George Szell e aquela, extraordinária, de Hans Schmidt-Isserstedt. Outras, como as de Hermann Scherchen e René Leibowitz, porque são pioneiras nas tentativas de interpretação historicamente informada, mesmo antes desse movimento se consolidar como tal, com instrumentos originais, Lás diferentes de 440 Hz, e por aí vai. Há também a versão de Christopher Hogwood, que serve como contraponto às duas versões com instrumentos de época que já vínhamos publicando – as de Gardiner e aquelas da Hanover Band. E, por fim, a bonita série daquele discreto mestre da batuta, o versátil e eficiente Carlo Maria Giulini. Como não as imaginava postar por aqui num futuro próximo, tamanha a superdosagem de Beethoven que lhes propusemos neste ano, decidi que elas não trariam mais exagero a este nosso já tão esdrúxulo exagero de apresentar-lhe uma dúzia de versões.
Pretendo completar retrospectivamente a série com as novas-velhas versões em muito breve. Por ora, sugiro começarem pela especialíssima, ainda que jurássica, versão de Furtwängler gravada no Festival de Bayreuth. O legendário maestro nunca gravou a Nona em estúdio, por considerá-la digna tão só dos mais importantes eventos. Por isso, achou apropriado apresentá-la na reabertura do Festival de Bayreuth, em 1951, ocasião que marcava tanto a reestreia da Alemanha como um dínamo cultural, depois da infâmia da guerra, quanto sua própria reabilitação, depois de ter sido (e injustamente, que é o que nos dizem todas evidências razoáveis) considerado colaborador dos nazistas. Ao conduzir a obra no Festspielhaus, Furtwängler seguia o precedente do fundador do Festival: Richard Wagner adorava a Nona, muito por considerá-la uma precursora de sua própria concepção de Arte Total, e a regeu na inauguração da primeira edição, tradição que se manteve em todas edições subsequentes.
Espero que alguma dessas agora dezoito versões consiga lhes entregar o beijo que Schiller e Beethoven mandaram para o mundo inteiro.
Seid umschlungen, Millionen! Tschüss!
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sinfonia no. 9 em Ré menor, Op. 125, “Coral”
Composta entre 1822-1824
Publicada em 1826
Dedicada ao rei Friedrich Wilhelm III da Prússia
1 – Allegro ma non troppo, un poco maestoso
2 – Molto vivace – Presto – Molto vivace – Presto
3 – Adagio molto e cantabile – Andante moderato – Andante moderato – Adagio -Lo stesso tempo
4 – Presto – Allegro assai – Presto (“O Freunde”) – Allegro assai (“Freude, schöner Götterfunken”) – Alla marcia; Allegro assai vivace (“Froh, wie seine Sonnen”) – Andante maestoso (“Seid umschlungen, Millionen!”) – Allegro energico, sempre ben marcato (“Freude, schöner Götterfunken” – “Seid umschlungen, Millionen!”) – Allegro ma non tanto (“Freude, Tochter aus Elysium!”) – Prestissimo (“Seid umschlungen, Millionen!”)
Elisabeth Schwarzkopf, soprano
Elisabeth Höngen, mezzo-soprano
Hans Hopf, tenor
Otto Edelmann, baixo
Bayreuther Festspielorchester und Chor
Wilhelm Furtwängler, regência
Jarmila Novotná, soprano
Kerstin Thorborg, mezzo-soprano
Jan Peerce, tenor
Nicola Moscona, baixo
Westminster Choir
NBC Symphony Orchestra
Arturo Toscanini, regência
Inge Borkh, soprano
Ruth Siewert, contralto
Richard Lewis, tenor
Ludwig Weber, baixo
The Beecham Choral Society
Royal Philharmonic Orchestra
René Leibowitz, regência
Magda Laszló, soprano
Hilde Rössel-Majdan, contralto
Petre Munteanu, tenor
Richard Standen, baixo
Orchester der Wiener Staatsoper
Hermann Scherchen, regência
Phyllis Curtin, soprano
Florence Kopleff, contralto
John McCollum, tenor
Donald Gramm, baixo
Chicago Symphony Orchestra and Chorus
Fritz Reiner, regência
Adele Addison, soprano
Jane Hobson, contralto
Richard Lewis, tenor
Donald Bell, barítono
Cleveland Orchestra & Choir
George Szell, regência
Gundula Janowitz, soprano
Hilde Rössel-Majdan, contralto
Waldemar Kmentt, tenor
Walter Berry, baixo
Wiener Singverein
Berliner Philharmoniker
Herbert von Karajan, regência
Jessye Norman, soprano
Reinhild Runkel, mezzo-soprano
Hans Sotin, tenor
Robert Schunk, baixo
Chicago Symphony Orchestra and Chorus
Sir Georg Solti, regência
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Joan Sutherland, soprano
Marilyn Horne, contralto
James King, tenor
Martti Talvela, baixo
Wiener Staatsopernchor
Wiener Philharmoniker
Hans Schmidt-Isserstedt, regência
Julia Várady, soprano
Jard van Nes, mezzo-soprano
Keith Lewis, tenor
Simon Estes, baixo
Ernst Senff Chor
Berliner Philharmoniker
Carlo Maria Giulini
Edith Wiens, soprano
Hildegard Hartwig, contralto
Keith Lewis, tenor
Roland Hermann, baixo
Chor der Hamburgischen Staatsoper
Sinfonieorchester des Norddeutschen Rundfunks
Günter Wand, regência
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Lucia Popp, soprano
Carolyn Watkinson, contralto
Peter Schreier, tenor
Robert Holl, baixo
Groot Omroepkoor
Koninklijk Concertgebouworkest
Bernard Haitink, regência
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Arleen Augér, soprano
Catherine Robbin, contralto
Anthony Rolfe Johnson, tenor
Gregory Reinhart, baixo
London Symphony Chorus
The Academy of Ancient Music
Christopher Hogwood, regência
Eiddwen Harrhy, soprano
Jean Bailey, contralto
Andrew Murgatroyd, tenor
Michael George, baixo
Oslo Domchor
The Hanover Band
Roy Goodman, regência
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Ľuba Orgonášová, soprano
Anne Sofie von Otter, contralto
Anthony Rolfe Johnson, tenor
Gilles Cachemaille, baixo
Monteverdi Choir
Orchestre Révolutionnaire et Romantique
John Eliot Gardiner, regência
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Krassimira Stoyanová, soprano
Lioba Braun, contralto
Michael Schade, tenor
Michael Volle, barítono
Chor des Bayerischen Rundfunks
Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks
Mariss Jansons, regência
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Kateřina Beranová, soprano
Lilli Paasikivi, mezzo-soprano
Robert Dean Smith, tenor
Hanno Müller-Brachmann, baixo
GewandhausKinderchor
GewandhausChor
MDR Rundfunkchor
Gewandhausorchester Leipzig
Riccardo Chailly, regência
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Annette Dasch, soprano
Eva Vogel, mezzo-soprano
Christian Elsner, tenor
Dimitry Ivashchenko, baixo
Rundfunkchor Berlin
Berliner Philharmoniker
Sir Simon Rattle, regência
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Vassily
Vassily, muito obrigado, fechando a série com cgave de ouro!! A propósito, só um detalhe, o link de Goodman/Hannover Band abre o Hogwood de novo… Abr!!
Salve, Eduardo!
Problema resolvido.
Grato pela audiência! Abraço!
Oi Vassily, agradeço pela sua grande pesquisa de nos levar a tantas, e significativas, versões das nove sinfonias do mestre Beethoven !
Belíssimo trabalho !
Abração !
Obrigado!!